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COMO SABER SE O QUE OS EVANGELHOS RELATAM SOBRE JESUS É HISTÓRICO OU NÃO?

 

Como saber se uma passagem encontrada nos Evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) é histórica ou não? Como podemos saber, do ponto de vista de critérios históricos objetivos, se uma narrativa sobre Cristo realmente aconteceu na História literal? Ou se o Jesus Histórico realmente disse algo que está escrito que ele disse? Para responder a essas questões este artigo considerará: (i) a teoria fundamentalista sobre a historicidade dos evangelhos; (ii) como os evangelhos foram escritos; (iii) critérios para determinar a historicidade dos relatos evangélicos; e (iv) o que dizer dos milagres?


I. A TEORIA FUNDAMENTALISTA SOBRE A HISTORICIDADE DOS EVANGELHOS

           

            De acordo com a Teoria Fundamentalista sobre a Historicidade dos Evangelhos, podemos confiar que absolutamente tudo o que os Evangelhos canônicos dizem realmente aconteceu tal qual está relatado. Essa teoria se baseia na crença de que a inspiração dos Evangelhos implica sua inerrância ou infalibilidade, uma ideia que surgiu por volta do século XIX e início do século XX. Aqueles que subscrevem a Declaração de Chicago Sobre a Inerrância Bíblica, confessam o seguinte:

“Negamos que a infalibilidade e a inerrância da Bíblia estejam limitadas a assuntos espirituais, religiosos ou redentores, não alcançando informações de natureza histórica e científica.”

            Mas qual argumento racional pode ser apresentado a respeito da inerrância bíblica? O teólogo evangélico Norman Geisler, em sua Teologia Sistemática, apresenta o seguinte argumento:

1. Deus não pode errar.

2. A Bíblia é a Palavra de Deus.

3. Logo, a Bíblia não pode errar.

            Embora possa se discutir se a conclusão realmente se segue das premissas, o que não creio ser o caso, esse argumento ainda que fosse válido dependeria de aceitarmos a premissa de que a Bíblia é a Palavra de Deus. Qual argumento temos que prove que a Bíblia é a Palavra de Deus? Geralmente se argumenta que podemos crer que a Bíblia é a Palavra de Deus porque ela foi autenticada com milagres. Mas quais os milagres que autenticam o que a Bíblia diz? Os milagres que autenticam o que a Bíblia diz são aqueles relatados pela própria Bíblia. Se isso é assim, estamos numa petição de princípio. Podemos confiar na Bíblia porque ela foi autenticada por milagres. Podemos crer nos milagres porque eles estão relatados na Bíblia. Não há nada de errado em se crer que a Bíblia seja a Palavra de Deus pela fé, mas aqui nos limitaremos a pensar sobre argumentos racionais públicos.

            Alguns autores, como Willian Lane Craig, pontuam que pelo menos o milagre da Ressurreição de Cristo pode ser crido por critérios objetivos, sem depender da mera fé. Entre esses argumentos, os mais fortes, ao meu ver, são: (i) pregar que Cristo ressuscitou não atraía os pagãos nem os judeus ao Cristianismo no primeiro século: de modo que não era uma ideia interessante de se inventar; (ii) algumas testemunhas oculares foram torturadas e martirizadas, mas não negaram seu testemunho na ressurreição: Seria estranho que a crença consciente em algo que fosse uma fraude pudesse levar tantas pessoas a sacrificarem suas próprias vidas, e continuarem defendendo sua fé mesmo tendo razões mais que suficientes para não crerem assim. Assim, provada a ressurreição de Cristo objetivamente, logo estariam, nessa perspectiva, autenticados os Evangelhos e seus ensinos.

            Não é o objetivo deste texto discutir a confiabilidade desses argumentos, embora mais adiante tratarei da questão dos milagres. Pode ser um argumento convincente de que se Cristo não tivesse realmente ressuscitado, seus discípulos dificilmente se entregariam ao martírio por sua fé como pode haver outras explicações para isso, como, por exemplo, o argumento de que os discípulos se entregaram ao martírio, não porque criam na ressurreição de Jesus, mas sim porque creram na mensagem de Cristo (kerigma). Esse é um debate que não será tratado aqui. Mas suponhamos que tenhamos provado que a ressurreição de Cristo foi histórica, o que isso implica? Ora, isso implicaria nada mais que o relato sobre a ressureição de Jesus é histórica, e não necessariamente que todos os relatos dos Evangelhos são históricos. Então ainda fica em aberto a necessidade de critérios para saber se os demais relatos evangélicos são ou não confiáveis.

            Outros argumentos a favor da visão fundamentalista são os seguintes (acompanhado das críticas):

(i) Os Evangelhos foram escrito por testemunhas oculares contemporâneas aos eventos nele narrados: é importante pontuar, contrário a isso, que não sabemos quem escreveu os Evangelhos, portanto, não é certo que foram testemunhas oculares. Outro ponto é que os Evangelhos foram escritos 35 a 50 anos depois dos eventos narradas, dando tempo para distorções e acréscimos.

 (ii) Há uma falta de tempo necessária para a formulação de um mito, e que também poderia ser refutado pelas testemunhas oculares: primeiro, é preciso lembrar que mesmo com os discípulos vivos, no contexto antigo, não era fácil consultá-los para certificar-se da história, havia o abismo do idioma e da geografia, o fato de que a maioria da população era analfabeta não podendo escrever uma carta e mesmo que escrita poderia ser difícil fazê-la circular a tempo (Eles não tinham whatsapp para mandar mensagens aos discípulos e se tivessem, a maioria não sabia ler nem escrever rs). A comunicação não era, portanto, livre para haver um debate aberto com refutações e objeções. Também, a busca pelo Jesus Histórico não implica na ideia de que Jesus é um mito criado, não há dúvida de que Jesus Cristo foi uma pessoa real e histórica. O que se discute é se absolutamente tudo que foi escrito sobre ele nos Evangelhos corresponde mesmo ao que de fato aconteceu.

 (iii) As pessoas, os lugares e os eventos que rodeiam as histórias dos Evangelhos são descritos exaustivamente (Lucas 2.1; 3.1-2): a citação de lugares geográficos e sujeitos precisos, no entanto, não é razão suficiente para crer que tudo o que está escrito ocorreu literalmente. É completamente possível que algo seja datado e localizado especificamente, que se nomeie os envolvidos, que esse evento tenha até mesmo de fato acontecido historicamente, mas ao ser transmitido sofra acréscimos e alterações; bem como é possível encontrar até mesmo mitos que pretendem ter ocorrido em determinado lugar e data específicos com pessoas determnadas.

 (iv) Os Evangelhos narram fatos que são embaraçosos para os primeiros cristãos: Os Evangelhos citam coisas que seriam contrárias à intenção de alguém que quisesse vender uma ideia, como por exemplo, propor a crença num Messias que é um Servo sofredor, quando a experiência messiânica aguardava um Rei exaltado. Esse argumento pode dar confiabilidade aos fatos embaraçosos narrados e veremos adiante que esse é um critério de autenticidade, mas ele não se aplica a todo o Evangelho. Isto é, os fatos embaraçosos narrados nos Evangelhos tem grande chance de ser históricos, mas isso não significa que todas as narrativas  o são.

 (v) A existência de Jesus é confirmada por fontes históricas não – cristãs, tais como Josefo, Tácito, Plínio: é importante pontuar que não há dúvidas de que a existência histórica de Jesus é real. O problema é que essas fontes extrabíblicas infelizmente só mencionam que Jesus existiu sem dar muitos detalhes sobre sua história, ou seja, confirmam que Jesus é histórico, mas não confirmam quase nada a respeito de sua vida. Portanto, não são prova de que tudo o que os Evangelhos dizem seja histórico.

(vi) O Novo Testamento, o que inclui os Evangelhos, é o escrito antigo mais bem documentado: é verdade que temos cópias suficientes para remontar o texto original dos Evangelhos com razoável exatidão. No entanto, o fato de conhecermos com muita confiabilidade o texto original, não estabelece como fato que os relatos desse texto sejam históricos. Durante a tradição oral que antecede o texto escrito distorções e alterações devem ter ocorrido.

            Dado os problemas com a Teoria Fundamentalista, é preciso considerar como os Evangelhos foram escritos. Isso nos ajudará saber se seus relatos são ou não confiáveis. O fato de não termos argumentos que provem que tudo que esteja nos Evangelhos seja histórico, não significa que eles não sejam fontes históricas úteis a respeito de Jesus. Talvez algumas partes sejam históricas e outras não. Como distinguí-las segundo critérios objetivos? Isto é o que buscaremos saber mais adiante.

 

II. COMO OS EVANGELHOS FORAM ESCRITOS?

 

Muito do que será dito de agora em diante terá como base a série de vídeos sobre o tema feita por Bart D. Ehrman disponível (aqui). Embora tradicionalmente se afirme que os Evangelhos foram escritos por Mateus, Marcos, Lucas e João, isso trata-se apenas de uma tradição. Na realidade, a autoria dos Evangelhos é anônima, e dado que os discípulos de Cristo eram pessoas iletradas e que a maioria das pessoas no tempo de Jesus não sabiam ler nem escrever, é improvável atribuir a eles a escrita dos Evangelhos. Ademais, os Evangelhos foram escritos em grego, não em aramaico que era a língua de Jesus e dos discípulos. Os Evangelhos provavelmente foram escritos por pessoas bem instruídas, mas que nos são desconhecidas.

Jesus Cristo morreu em algum momento por volta do ano 30 d.C. , a partir de então, as histórias a respeito de Jesus foram compartilhadas oralmente. Cristo e os discípulos falavam aramaico, mas essas histórias passaram a circular também em língua grega. Diferentes pessoas e em diferentes lugares abraçaram a fé em Cristo, e diferentes histórias a respeito de Jesus passaram a circular oralmente. Essa tradição oral, antes de ser colocada por escrito, se constituiu durante 40 a 50 anos.

Assim, as histórias a respeito de Jesus, antes de registradas por escrito, passaram por cerca de quatro ou cinco décadas de circulação e, não se pode negar, por acréscimos e modificações. Então, por volta de 75 a 130 d.C. houve um registro escrito dessas histórias em língua grega por escritores anônimos. A tradição oral prosseguiu depois disso, mas a partir de então passou também a circular tais registros escritos das histórias de Jesus, os quais foram copiados e suas cópias chegaram até nós hoje como os Quatro Evangelhos.

Algo importante a ser dito, é que de acordo com alguns eruditos, os Evangelhos canônicos podem ter se baseado em outras fontes. Alguns estudiosos defendem a hipótese de que os Evangelhos de Mateus e Lucas usaram outros documentos para compor seus relatos a respeito de Jesus (confira: Lucas 1:1-2). Alguns pesquisadores identificaram quatro possíveis fontes: o Evangelho canônico de Marcos e outras três fontes chamadas de Q, L e M.

A Fonte Q, segundo os pesquisadores, seria um Evangelho de Ditos de Jesus, semelhante, talvez, ao Evangelho Cóptico de Tomé. Nessa fonte estariam contidas ditos de Jesus que aparecem em Mateus e Lucas, mas que não aparecem em Marcos. Sabe-se que Mateus e Lucas usaram o Evangelho de Marcos como fonte, mas além de Marcos eles parecem ter conseguido informação em outra fonte, que é a Q. A Fonte Q conteria relatos como as Bem-aventuranças e a Oração do Pai nosso.

 Lucas, no entanto, além de Marcos e a Fonte Q, pode ter usado como base uma outra fonte, que tem sido chamada de Fonte L. A Fonte L conteria relatos que não se encontram presentes nem em Marcos nem em Mateus, como a parábola do bom samaritano e a parábola do filho pródigo. Já Mateus poderia ter utilizado mais uma fonte além de Marcos e Q, que seria a Fonte M. A Fonte M seria composta por relatos que não ocorrem nem em Lucas nem em Marcos, como a visita dos magos a Jesus. Assim, Mateus e Lucas teriam utilizado quatro diferentes fontes para compor seus textos:

1. O Evangelho de Marcos (usado por ambos)

2. A Fonte Q (usada por ambos)

3. A Fonte M (usada só por Mateus)

4. A Fonte L (usada só por Lucas)

 

III. CRITÉRIOS PARA DETERMINAR A HISTORICIDADE DOS RELATOS

 

Tendo entendido como os Evangelhos foram escritos, podemos agora considerar os critérios objetivos que podem nos ajudar a saber se um relato encontrado nos Evangelhos é histórico ou não. É importante, no entanto, observar que esses critérios não são perfeitos nem absolutos. É possível que uma narrativa preencha todos os critérios de autenticidade, e ainda assim não seja confiável. Como também é possível que uma narrativa não preencha algum critério e ainda assim seja confiável. Portanto, tais critérios só podem ser considerados em termos de probabilidade: o que preenche os critérios de autenticidade é provavelmente autêntico e o que não os preenche é provavelmente inautêntico.

Os critérios são:

1. Precocidade do Relato: quanto mais antigo um relato, mais confiável ele é. Esse é o motivo pelo qual os Evangelhos apócrifos, em geral, não são fontes históricas confiáveis. Evangelhos como de Pedro, Felipe, Judas etc. não são boas fontes para saber o que Jesus realmente disse e fez. Embora os Evangelhos canônicos sejam mais confiáveis que os apócrifos, o Evangelho canônico de João é menos confiável que os sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas). Assim, uma narrativa encontrada em João tem mais chance de não ser confiável do que uma encontrada em Marcos.

2. Independência teológica: o fato de um relato ter o interesse de atender a uma teologia ou ponto de vista específico o torna menos confiável. Por exemplo, Marcos diz que Jesus foi crucificado na hora terceira (Marcos 15:25) e João na hora sexta (João 19:14). Pelo critério 1, devemos preferir o relato de Marcos. Sabemos que João apresenta Jesus como o cordeiro pascal de Deus (João 1:9) e a hora sexta era o momento exato em que o cordeiro da Páscoa era sacrificado, temos uma indicação que João escolheu a hora sexta por uma razão teológica, o que torna sua descrição de que Jesus morreu nesse momento provavelmente não-confiável. João também enfatiza que Jesus se considerou um com o Pai (João 10:30), algo que não ocorre nos demais evangelhos. Isso pode significar que João disse isso para atender ao seu interesse teológico de apresentar Jesus como divino (João 1:1). Sendo assim, isso torna menos provável que Jesus tenha reivindicado ser Deus.

3. Multiplicidade do relato: um relato se torna mais confiável se ele é relatado por mais de uma fonte que o fez de modo independente. Muitos relatos dos Evangelhos são relatados por mais de uma fonte, mas isso não é suficiente. É preciso que os autores não tenham tido contato com o relato do outro. João, por exemplo, não teve contato com os sinópticos, assim, relatos em comum aos dois tem mais chances de serem autênticos, é o caso doo batismo de Jesus por João Batista (Mateus 3:13-17; Marcos 1:9; Lucas 3:21-22, João 1:29-33), o fato de que Jesus expulsou os cambistas do Templo (Marcos 11:15; João 2:15) e a crucificação de Jesus (Mateus 27:33-44; Marcos 15:22-32; Lucas 23:33-43; João 19:17-30), esta última também é testemunhada por Flávio Josefo e Tácito. O apóstolo Paulo também escreveu cartas sem ter tido contato com os Evangelhos, logo, quando ele concorda com os Evangelistas ao dizer que Jesus tinha irmãos e que um deles se chamava Tiago (1 Coríntios 9:5; Gálatas 1:19; Marcos 6:3; João 7:3), isso tem grande chance de ser histórico.

4. Prova da Dissimilaridade: segundo esse critério, um relato provavelmente é confiável se ele contradiz os interesses dos autores. Por exemplo, como já dito, a crucificação de Jesus é contrária aos interesses dos evangelistas de provar que ele é o Messias. Os judeus esperavam um Messias vitorioso, não alguém que seria morto e humilhado. Logo, a crucificação de Cristo tem as marcas de ser algo que realmente ocorreu. Outro exemplo, é o fato de Jesus ter sido batizado por João Batista. Aquele que batiza é considerado espiritualmente superior àquele que é batizado: é o Mestre quem batiza seus discípulos. Então, esse ato de humildade de Cristo parece realmente ter acontecido.

5. Credibilidade Contextual: significa que um relato que contradiga o que sabemos sobre a época provavelmente não é autêntico. Por exemplo, o recenseamento romano não exigia que as pessoas viajassem para a cidade de seus ancestrais, assim, o relato de Lucas 2:16-17 sobre a ida de José e Maria a Belém devido ao recenseamento não parece histórico, e ele também não cumpre o critério 2. Como observa Leonardo de Castro no artigo A procura do Jesus histórico (Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 05, Vol. 07): “Os impostos eram cobrados, nas cidades, das pessoas que nelas moravam. Nesse caso, quem se deslocava eram os censores (responsáveis pelo recenseamento). Não havia a necessidade de deslocamento das pessoas para outra região para fazer o censo, pois, se assim fosse, seria um desastre logístico. Então por que Lucas insiste na ideia de que Jesus nascesse em Belém? A resposta é para relacionar seu nascimento com a casa real de Davi.” 

 

IV. O QUE DIZER DOS MILAGRES?

 

            Um sexto critério tem sido adotado por alguns estudiosos naturalistas, ele consiste em entender que se uma narrativa contradiz as leis físicas, ele não é confiável. Há duas posições sobre isso:

(1) Que os milagres são exageros de eventos históricos: Segundo essa posição, os milagres são mal-entendidos sobre algo que realmente ocorreu. Por exemplo, a multiplicação dos pães e peixes (Mateus 15:32-39; Marcos 8:1-9) poderia significar que a multidão, comovida pela situação, passou a pegar os pães e peixes que tinham escondido e a repartir também com os demais. Outro exemplo, pode ser visto na narrativa de Jesus andando sobre as águas (Mateus 14:22-36). Estava de noite e chovendo, os discípulos, então, pensavam que estavam no meio do mar, quando na verdade estavam na beira da praia e, ao verem Cristo andando na beira da praia, se confundiram achando que ele estava andando sobre as águas.

(2) Que os milagres são mitos: de acordo com essa posição, os evangelistas precisavam provar aos gregos que Jesus era mais poderoso que seus deuses, assim, atribuíram a ele milagres que sobrepujavam aqueles da mitologia grega. Eles também poderiam ter inventado mitos miraculosos para transmitir ou dar suporte a algum interesse teológico ou espiritual. Por exemplo, ao narrar que Cristo acalmou a tempestade (Marcos 4:35-41; Lucas 8:22-25; Mateus 8:23-27), os evangelistas poderiam querer criar uma espécie de parábola para ensinar que Jesus está conosco trazendo calma nas situações tempestuosas da vida.

            Esse critério, entretanto, é questionável caso se admita que milagres são possíveis, no entanto, ele pode ter um papel metodológico. Isso significa dizer que, ainda que milagres possam ocorrer, um historiador não deve partir da pressuposição de que milagres são possíveis. Desse modo, evita-se contaminar a pesquisa acadêmica, cabendo ao cientista trabalhar a partir do que sabemos sobre a uniformidade das leis da física e sobre o papel do cientista de explicar os fenômenos sem deixar intrometer-se pressupostos religiosos. Essa concepção pode ser denominada como naturalismo metodológico, sem que isso implique um naturalismo ontológico.

            Podemos recorrer a uma versão modificada do argumento do filósofo David Hume sobre os milagres para estabelecer o naturalismo metodológico. Hume dizia que não podemos crer em milagres porque nenhuma evidência a favor de um ato sobrenatural pode ser maior do que toda evidência acumulada que possuímos de que as leis naturais são uniformes. Podemos considerar assim, que o papel do cientista é buscar explicações naturais para os fenômenos que estuda a partir do pressuposto da uniformidade das leis naturais. Sem esse pressuposto, a pesquisa científica estaria comprometida, visto que poderia haver uma intromissão de explicações sobrenaturais em fatos ainda não compreendidos pela ciência, impedindo o avanço científico. Isso não significa que um cientista, em sua dimensão pessoal, tenha de ser cético contra milagres. Ele pode, enquanto religioso, ser um fervoroso crente no sobrenatural, mas não deve levar essa crença para quando estiver fazendo ciência.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS


A pesquisa histórica a respeito da autenticidade dos Evangelhos, embora possa ter certas implicações para a teologia, não deve ser considerado algo que impede a fé. Os Evangelhos podem ser lidos de maneira devocional, por meio dessa leitura o Cristo da fé pode falar ao coração do leitor. O Cristo teológico é o Cristo kerigmático (Cristo da pregação). O que importa no âmbito da experiência religiosa é o Cristo da fé. Todo cristão pode continuar crendo em milagres e nos ensinos de Jesus, pode crer que ele é o Deus encarnado e que os Evangelhos são inspirados sem precisar se opor ao que tem sido descoberto sobre o Jesus Histórico.

Por exemplo, o filósofo cristão Michel Henry no livro Eu Sou a Verdade: por uma Filosofia do Cristianismo, diz que o cristão ouve a mensagem de Cristo nos Evangelhos somente se a ouve antes em seu coração. Ele pontua que esta é uma leitura espiritual do texto que independe do fato de o que lemos ser histórico ou não. Ele observa que o Jesus Histórico não é o que importa para a fé: “Porque a verdade do Cristianismo não é que um certo Jesus tenha caminhado de povoado em povoado, levando atrás de si multidões, suscitando entre eles a admiração tanto por seu ensinamento como por seus prodígios, reunindo em torno de si discípulos cada vez mais numerosos – até sua prisão por sacerdotes e sua crucifixão no Gólgota.” O que importa, segundo o autor, é a fé no Cristo divino vivo que é experimentado na experiência imediata e direta que a vida faz de si mesma.

O cristão não deve ter medo das pesquisas acadêmicas a respeito do Jesus Histórico, pois como diz um ditado: “a verdade não teme ser investigada”. A pesquisa sobre o Jesus Histórico também pode nos ajudar a questionar as imagens de Cristo construídas para fins espúrios. Podemos citar como exemplo, o Jesus Ariano. Um Jesus branco, louro de olhos azuis e cristão serviu aos propósitos nazistas de culpar os judeus de terem cometido o pior crime de todos: matar um homem cristão ariano que além de tudo era o próprio Deus (um “deuscídio”). Mas sabemos que esse não é o Jesus histórico, que era na verdade mais um camponês judeu vivendo na palestina. Portanto, o estudo sobre o que há de histórico ou não nos Evangelhos é de suma importância para nossa compreensão de quem realmente foi Jesus e o que ele ensinou.


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