UMA TEORIA CRÍTICA SOBRE A COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO
O objetivo deste texto é propor uma teoria crítica para tentar pensar em como foi produzido o Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodos, Levítico, Números e Deuteronômio) que, segundo a visão tradicional, teriam sido escritos por volta do ano 1400a.C. por um único autor, chamado Moisés. O objetivo deste texto é questionar essa visão tradicional e propor em seu lugar uma outra teoria que possa oferecer uma explicação mais satisfatória para a composição do Pentateuco.
Existem traços no Pentateuco que nos fazem pensar que ele não tenha sido escrito por Moisés, pelo menos não em sua totalidade, pois o texto possui trechos que só poderiam ter sido escritos por um ator muito posterior a Moisés. Em seu Trarado Teológico-Político, Baruch Spinoza apresenta dez evidências que mostram que Moisés não pode ter escrito pelo menos algumas partes do Pentateuco:
1. O prefácio do livro de Deuteronômio não pode ter sido escrito por Moisés porque ele não atravessou o rio Jordão;
2. O livro que Moisés escreveu não poderia ser tão extenso como o Pentateuco, pois, de acordo com Deuteronômio 27 e Josué 8,35, todo livro de Moisés foi transcrito com toda a nitidez na superfície de um único altar;
3. Há texto em que o Pentateuco fala de Moisés na primeira pessoa, mas há outros que estão em terceira pessoa, como Deuteronômio 31,9 em que está escrito que “Moisés escreveu a Lei”, palavras que parecem de um outro autor falando sobre Moisés;
4. Gênesis 12,6 diz “os cananeus estavam então naquela terra”, tais palavras devem ter sido escritas depois da morte de Moisés, numa altura em que os cananeus tinham sido expulsos e já não possuíam aquelas terras;
5. Em Gênesis 22,14, o monte Moriá é chamado “monte de Deus”, nome que esse monte não tinha antes de ser escolhido para edificação do templo;
6. Deuteronômio 3,11 menciona um leito de ferro que só foi encontrado no tempo de Davi;
7. Deuteronômio não só narra a morte de Moisés, como diz que ele supera todos os profetas que viveram depois dele;
8. Em Gênesis 14,14 lemos sobre a região de Dã, mas essa região só ganhou esse nome muito depois da morte de Josué;
9. Em Êxodo 16,34 lemos que os israelitas comeram maná até chegarem aos confins de Canaã, o que só aconteceu depois que Moisés morreu;
10. Em Gênesis 36,31 lemos: “estes são os reis que reinaram na terra de Edom, antes que reinasse rei algum sobre os filhos de Israel”, aqui o historiador fala dos reis que tiveram os edomitas antes de Davi os submeter muito tempo depois de Moisés.
Como alternativa à visão tradicional, Julius Wellhausen propôs uma teoria que ficou conhecida como Teoria Documentária segundo a qual o Pentateuco é a junção de documentos de quatro tradições, uma tradição que usa o termo “Elohim” para se referir a Deus, outra que se refere a Deus como "Javé", uma terceira constituída pela tradição sacerdotal e uma quarta de caráter legislativo. Essa teoria também é chamda de Teoria JEPD, cada letra se referindo a uma das tradições: Javista, Elohista, Priestly (sacerdotal) e Deuteronomista.
A tradição javista seria constituída especialmente por documentos em que Deus apareceria na figura antropormófica de Javé, um deus de ira e indignação. Textos relacionados a essa imagem da divindade seriam, por exemplo, a passagem em que Javé manda fogo sobre Sodoma e Gomorra ou quando Javé ameaça destruir todo o povo de Israel e só poupar Moisés.
A tradição elohista, por sua vez, seria constituída por diversos fragmentos e apresentaria uma visão mais abstrata de Deus. Enquanto a tradição javista apresentaria uma manifestação antropomórfica de Deus, nos textos da tradição elohista Deus se comunicaria com os humanos mais por meio de anjos. Um exemplo de texto dessa tradição seria a passagem em que Jacó vê uma escada entre o céu e a terra na qual os anjos sobem e descem.
Já a tradição sacerdotal seria composta pelos textos que tratam das leis cerimoniais, das origens dos santuários, dos rituais e das genealogias. Deus é apresentado por essa tradição como um ser majestoso, que estabeleceu uma Aliança com os hebreus para fazer deles um “reino sacerdotal”.
Por fim, a tradição deuteronomista não seria uma fonte única, mas a união de textos de diferentes historiadores. Esses historiadores seriam responsáveis por narrar a história dos hebreus, até mesmo para além do Pentateuco, e por terem deixado o código de leis de Israel com suas bênçãos e maldições. Essa tradição seria responsável pelos textos em que Israel aparece como um povo eleito a fim de ser uma teocracia regida por toda uma série de leis civis e sociais instituídas por Deus.
Essa teoria, no entanto, parece incompleta e ainda marcada por muitas suposições incertas, parece também que a visão tradicional não está necessariamente errada de propor uma autoria mosaica ao Pentateuco (embora não o seja em sua totalidade). Alguém que pode ter lançado luz sobre a composição do Pentateuco foi Sigmund Freud. Freud, em Moisés e o Monoteísmo, acredita na existência de dois Moisés, um primeiro, herdeiro de uma reforma religiosa monoteísta que teria ocorrido no antigo Egito e um segundo que teria introduzido a ideia de Javé, um deus de ira e indignação.
Associando elementos da visão tradicional, da teoria JEPD e da teoria freudiana, parece que podemos ter uma explicação mais satisfatória para a origem do Pentateuco. Provavelmente o Deus mosaico surgiu com a reforma religiosa egípcia realizada pelo faraó Aquenáton, por volta do ano 1300 a.C. Aquenáton propôs a ideia de que o deus Aton seria o único Deus, o sol resplandecente: "Aton vivo, não há outro exceto ele!" Aton era considerado um Deus do Universo inteiro, não sendo um mero deus regional.
Talvez um sacerdote de Aton, quando a reforma monoteísta perdia força no Egito, escolheu o povo hebreu para conseguir adeptos a fim de dar continuidade à religião de Aton. Esse sacerdote podemos chamar de Moisés I, que pode ter convencido os hebreus de que Aton os havia escolhido como povo especial a fim de libertá-los da escravidão no Egito. Movidos pela fé em um Deus-libertador, os hebreus lutaram contra a escravidão egípcia e conseguiram unidos e liderados por Moisés I, iniciar uma peregrinação rumo à Palestina. Herdeiro da religião egípcia, Moisés instituiu a prática da circuncisão entre os hebreus e disseminou a crença de que os hebreus eram um povo desde sempre eleito. A circuncisão no antigo Egito era feita em homens que eram iniciados ao sacerdócio, entre os hebreus a prática ganhou o significado de sinal da aliança entre Deus e seu povo, chamado para ser um reino sacerdotal particular.
Em algum momento durante a peregrinação rumo à Palestina, Moisés I morre e é substituído por um Moisés II, que na memória hebraica passa a ser identificado como o mesmo Moisés, por isso talvez a Moisés seja atribuída uma morte aos 120 anos. Moisés II provavelmente vinha ou tinha influência de uma religião que existia em torno do Monte Sinai, uma religião que adorava um Deus-vulcânico: Javé, um Deus colérico de fogo e ira. Aton então passou a ser substituído por Javé, um Deus Guerreiro que serviu como justificava para que os hebreus exterminassem os povos de Canaã por meio da guerra: "Javé é varão de guerra. Javé é seu nome".
Tanto Moisés I quanto Moisés II podem ter deixado registros dessa história, mesclada com elementos místicos. Eles também devem ter escrito histórias como as do Gênesis que incentivavam os hebreus em sua peregrinação e em seu sentimento de povo escolhido. Além desses escritos históricos, a tradição sacerdotal dos hebreus após a instituição formal da religião, com todo o sistema de sacrifícios, deve ter incluído nesses registros regulamentos cerimoniais. Após o estabelecimento dos hebreus como nação na Palestina, legisladores devem ter incluído nesses registros, leis morais e civis como sendo de autoridade divina. Além dos escritos de Moisés I (que podemos chamar de elohista), de Moisés II (que podemos chamar de javista), da tradição sacerdotal (que podemos chamar de sacerdotal) e dos regulamentos morais e civis (que podemos chamar de deuteronomista), esse registro passou a incluir alguns mitos babilônios, talvez durante o cativeiro dos hebreus na Babilônia. Todos esses documentos provavelmente foram unificados por Esdras, por volta de 450 a.C., num registro único, a Torah ou pentateuco, cuja autoria foi tradicionalmente atribuída a um Moisés único.
Essa é apenas uma teoria, uma proposta de explicação para a composição do Pentateuco. De qualquer modo, ela nos ajuda a pensar na importância de termos um olhar crítico para o Pentateuco, não o tomando como um escrito divino que teria caído do céu como uma lei e verdade eternas. A Bíblia precisa ser lida como um documento histórico, sujeito à crítica de qualquer pensador racional. Entender a constituição histórica desses livros nos ajuda a não os absolutizar como palavra inerrante de Deus, antes a entendê-los no interior de sua produção sociohistórica.
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