TRATADO TEOLÓGICO - BARUCH SPINOZA (RESUMO)


O que se segue é um resumo dos capítulos I ao XV do Tratado-Teológico-Político de Baruch Spinoza, a parte do tratado que trata de teologia. O texto do resumo seguiu as mesmas divisões dos capítulos, esta obra é considerada de grande importância para a crítica bíblica das fontes, na medida em que ela questiona a visão tradicional da autoria de determinados livros bíblicos. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original. 

I. DA PROFECIA 

Ler a Bíblia significa, antes de mais, identificar os conhecimentos que aí se nos oferecem. Podemos definir profecia ou revelação como o conhecimento certo de alguma coisa revelada por Deus aos humanos. O que podemos saber a respeito da revelação profética, deve ser retirado exclusivamente das Escrituras, pois até onde se sabe hoje em dia não existem mais profetas.  
Ao nos voltarmos para as Escrituras, verificaremos que tudo o que Deus revelou aos profetas foi revelado, ou por palavras, ou por figuras, ou de ambos os modos. Assim, ninguém, além de Cristo, recebeu qualquer revelação de Deus sem o recurso à imaginação, quer dizer, a palavras ou imagens. 
As Escrituras nos informam que os profetas nos falaram por meio do “Espírito de Deus”. Isso significa que os profetas eram dotados de uma virtude singular e acima do comum e que eles percebiam a mente e a intenção de Deus. Assim, podemos entender “espírito” como significando virtude, mente ou intenção. 

II. DOS PROFETAS 

profeta é aquele que interpreta as coisas que Deus revela para aqueles que dele não podem ter um conhecimento certo. Os profetas não foram dotados de uma mente mais perfeita, mas sim de uma potência de imaginar mais viva.  Na medida em que a profecia está relacionada com a imaginação, ela não torna os profetas mais sábios, nem implica uma certeza. O que fazia os profetas terem certeza da revelação era um sinal, não a própria revelação. 
Toda a certeza dos profetas se fundamentava em três elementos: (i) no imaginarem as coisas reveladas de forma extremamente viva, da mesma forma que nós costumamos ser afetados pelos objetos durante a vigília; (iino sinal e; (iii) no terem o ânimo voltado unicamente para a justiça e o bem. 
As profecias variam em função da imaginação, do temperamento, das opiniões e da eloquência de cada profeta. Essas diferenças explicam porque a cada profeta cabia um determinado tipo de revelação e também o fato de Deus ter concedido a um profeta o dom de profetizar em grau muito mais elevado que a outro. Assim, Deus adaptou as revelações à compreensão e às opiniões dos profetas. 

III. DA VOCAÇÃO DOS HEBREUS E SE O DOM DA PROFECIA TERÁ SIDO UM PRIVILÉGIO EXCLUSIVAMENTE SEU 

A verdadeira felicidade e beatitude de cada um consiste unicamente na fruição do bem e não na glória de ser o único a fruir, enquanto os outros são excluídos; quem, na verdade, se julga mais feliz porque as coisas lhe correm bem só a si, e não aos outros, ou porque é mais feliz e mais afortunado que os outros, ignora a verdadeira felicidade e beatitude. Assim sendo, quando a Escritura diz que Deus escolheu somente os hebreus, desprezando outros povos, isso significa que eles não conheciam a verdadeira beatitude.   
eleição dos Judeus não tinha a ver senão com a liberdade e a felicidade temporal, quer dizer, com o Estado, com o modo e os meios através dos quais eles o conseguiram, e bem assim com as leis, na medida em que eram  necessárias para a estabilidade desse Estado particular, e com a  maneira, enfim, como estas foram reveladas. Assim, entendemos que os Hebreus não foram escolhidos por Deus senão no que diz respeito à sociedade e ao Estado. 
 Deus é igualmente propício para com todos, um judeu, considerado isoladamente e à margem da sociedade e do Estado, não possui qualquer dom divino a mais do que os outros, nem existe qualquer diferença entre ele e um pagão. Visto que Deus é propício para com todos, é evidente que todas as nações tiveram profetas e que o dom de profecia não foi um privilégio exclusivo dos judeus. Os Judeus não possuem absolutamente nenhuma razão para se considerarem acima das outras nações. 

IV. DA LEI DIVINA 

A palavra “lei”, tomada em sentido absoluto, significa aquilo em conformidade com o qual cada indivíduo, ou todos, ou alguns de uma mesma espécie, agem de uma certa e determinada maneira. A lei depende, ou da necessidade da natureza, ou da decisão do humano. A lei que depende da necessidade da natureza é aquela que deriva necessariamente da própria natureza ou da definição da coisa; a lei que depende de uma decisão humana, e à qual se chamaria com mais propriedade direito, é aquela que os humanos, para viver mais segura e comodamente, ou por  outro motivo qualquer, prescrevem a si mesmos e aos outros. 
Podemos, assim, fazer uma distinção entre lei humana e lei divina. Chamamos de lei humana aquela que serve unicamente para manter a segurança do indivíduo e da coletividade e chamamos de lei divina uma regra que diga respeito apenas ao soberano bem, isto é, ao verdadeiro conhecimento e amor de Deus. 
A vontade de Deus e o seu entendimento são, na realidade, uma só e a mesma coisa, donde se segue que as afirmações e as negações formuladas por Deus envolvem sempre uma necessidade, ou seja, uma verdade eterna. Deus age e dirige todas as coisas unicamente pela necessidade da sua natureza e perfeição; os seus decretos, enfim, e as suas volições são verdades eternas e implicam sempre uma necessidade. A lei de Deus está gravada na natureza humana, assim, pela luz natural, o humano pode conhecer as leis de Deus e ter um guia daquilo que deve fazer e daquilo que deve evitar. 
Deus se revelou aos profetas por meio da imaginação, mas ele se revelou de maneira imediata, sem mediação de palavras ou imagens, à mente de Cristo. Nesse sentido, Deus não teve de se adaptar às características particulares de Cristo para se revelar, antes Cristo entendeu verdadeiramente as coisas reveladas e as leis reveladas por meio de Cristo foram dirigidas, não somente aos judeus, mas a todos os gêneros humanos. 

V. DA RAZÃO PELA QUAL FORAM INSTITUÍDAS AS CERIMÔNIAS E DA FÉ NAS NARRATIVAS HISTÓRICAS, OU SEJA, POR QUE MOTIVO E A QUEM É QUE ELA É NECESSÁRIA 

As cerimônias do Antigo Testamento foram instituídas exclusivamente para os hebreus e adaptadas de tal modo a seu Estado que a maior parte delas só podia ser celebrada pela sociedade em conjunto e não por um indivíduo isoladamente. Desse modo, é evidente que as cerimônias não pertencem à lei divina. 
O objetivo das cerimónias foi fazer com que os homens não fizessem nada por sua própria deliberação, mas tudo a mando de outrem, e reconhecessem, por contínuas ações e meditações, que não eram donos de si mesmos e estavam, pelo contrário, inteiramente submetidos ao direito de outrem. Os rituais nada adiantam para a beatitude e os do Antigo Testamento, até mesmo toda a lei de Moisés, têm unicamente em vista o Estado dos Hebreus e, por conseguinte, os bens materiais 
Quanto às cerimônias dos cristãos, tais como, o batismo, a ceia dominical, as festas, as orações públicas e outras semelhantes, que são e sempre foram comuns a todo o cristianismo, se de fato elas foram alguma vez instituídas por Cristo  ou pelos apóstolos (o que não está ainda bem esclarecido), foram-no apenas a título de sinais exteriores da Igreja universal e não como coisas que contribuam para a beatitude ou que tenham em si mesmas algo de santificante. 

VI. DOS MILAGRES 

Na natureza não acontece nada que seja contrário às suas leis universais. Tudo o que acontece na natureza acontece pela vontade e eterno decreto de Deus e isso significa que tudo ocorre na natureza segundo leis que implicam necessidade. Sendo as leis da natureza as próprias leis eternas de Deus, podemos entender “milagre” somente num sentido relativo, como algo cuja causa natural não podemos ainda explicar. 
Mas se falamos em milagre no sentido de algo que viola ou interrompe a ordem da natureza, isso seria contrário às próprias leis de Deus e seria oposto ao nosso conhecimento sobre ele. Alguns argumentam que o milagre é sobrenatural, mas não antinatural, no entanto, como um milagre teria que operar-se na natureza, seria necessário que ele interrompesse a ordem da natureza, de modo que qualquer coisa que se operasse na natureza que não fosse consequência das próprias leis naturais, ou seja todo acontecimento sobrenatural, teria de ser necessariamente contrário às leis da natureza e, assim, contrário as leis eternas e imutáveis de Deus.  
Desse modo, é impossível que Deus se faça conhecer por meio de milagres. Assim, os eventos que foram chamados pela opinião dos humanos como milagres foram, na verdade, fenômenos naturais. 

VII. DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA 

Muitos teólogos e outras pessoas, embora declarem que a Bíblia é a Palavra de Deus, distorcem sua interpretação para satisfazerem suas próprias ideias e fantasias. O método para interpretar corretamente a Bíblia não é diferente do método para interpretar a natureza assim como o método para interpretar a natureza consiste essencialmente em descrever a  história da mesma natureza e concluir daí, como dados certos, as definições das coisas naturais, também para interpretar a Escritura é necessário elaborar a sua história autêntica e, depois, concluir daí, como se fossem dados e princípios certos, o pensamento dos seus autores como legítima consequência.  
Todo conhecimento da Escritura deve ser extraído dela mesma. Nas Escrituras encontramos mais do que aquilo que conhecemos pela luz natural, nela encontramos milagres, que não são propriamente milagres, mas fatos insólitos da natureza adaptados à opinião do escritor e revelações também adaptadas à opinião do profeta. 
Para interpretar a Bíblia corretamente deve-se: (i) levar em conta o idioma original. (ii) coligir as informações contidas em cada livro e reduzi-las aos pontos principais; (iii) descrever numa só história as circunstâncias de todos os livros proféticos. Obtida assim a história da Escritura e firmemente decididos a não admitir como doutrina dos profetas senão o que se depreende dessa mesma história, ou que dela se deduz com maior clareza, o próximo passo consiste em investigar a mente dos profetas e do Espírito Santo. 

VIII. ONDE SE DEMONSTRA QUE O PENTATEUCO, ASSIM COMO OS LIVROS DE JOSUÉ, DOS JUÍZES, DE RUTE, DE SAMUEL E DOS REIS, NÃO SÃO AUTÓGRAFOS E, EM SEGUIDA, SE AVERIGUA SE ESTES LIVROS FORAM ESCRITOS POR VÁRIAS PESSOAS OU POR UMA SÓ E QUEM TERÁ SIDO 

Grande parte das pessoas têm acreditado que o Pentateuco foi escrito por Moisés. Que não foi Moisés quem escreveu o Pentateuco, isso pode ser demonstrado pelos seguintes pontos: (i) o prefácio do livro de Deuteronômio não pode ter sido escrito por Moisés porque ele não atravessou o rio Jordão; (ii) o livro que Moisés escreveu era outro, não o Pentateuco, pois, de acordo com Deuteronômio 27 e Josué 8,35, todo livro de Moisés foi transcrito com toda a nitidez na superfície de um único altar; (iii) há textos em que o pentateuco fala de Moisés na primeira pessoa, mas há outros que estão em terceira pessoa, como Deuteronômio 31,9 em que está escrito que “Moisés escreveu a Lei”, palavras que parecem de um outro autor falando sobre Moisés; (iv) Gênesis 12,6 diz “os cananeus estavam então naquela terra”, tais palavras devem ter sido escritas depois da morte de Moisés, numa altura em que os cananeus tinham sido expulsos e já não possuíam aquelas terras; (v) em Gênesis 22,14, o monte Moriá é chamado “monte de Deus”, nome que esse monte não tinha antes de ser escolhido para edificação do templo; (vi) Deuteronômio 3,11 menciona um leito de ferro que só foi encontrado no tempo de Davi; (vii) Deuteronômio não só narra a morte de Moisés, como diz que ele supera todos os profetas que viveram depois dele; (viiiem Gênesis 14,14 lemos sobre a região de , mas essa região só ganhou esse nome muito depois da morte de Josué; (ix) Em Êxodo 16,34 lemos que os israelitas comeram maná até chegarem aos confins de Canaã, o que só aconteceu depois que Moisés morreu; (x) Em Gênesis 36,31 lemos: “estes são os reis que reinaram na terra de Edom, antes que reinasse rei algum sobre os filhos de Israel”, aqui o historiador fala dos reis que tiveram os edomitas antes de Davi os submeter muito tempo depois de Moisés. Assim, fica claro que o Pentateuco não foi escrito por Moisés, mas por alguém que viveu muitos séculos depois dele. 
O livro de Josué também não parece ter sido escrito por Josué, as evidências de que o livro de Josué não é autógrafo são: (i) Josué 6,27 11,15 dizem que a fama de Josué se estendeu por toda terra, o que parece ser um texto de uma outra pessoa falando sobre Josué; (ii) Josué 8,35 diz em terceira pessoa que Josué observou tudo que Moisés havia prescrito; (iiio livro de Josué narra eventos que só ocorreram depois que Josué morreu, como que após ele ter morrido os israelitas prestaram culto a Deus enquanto viveram os velhos que o tinham conhecido e que Efraim e Manassés não expulsaram os cananeus que habitavam  entre os de Efraim, “até os dias de hoje pagando tributo” (Josué 16,10), sendo que a expressão “até os dias de hoje” indica que o autor está narrando algo antigo, também o caso que é relatado em Josué 22, 10 sobre a construção de um altar para além do Jordão parece ter ocorrido já depois da morte de Josué; (ivJosué 10,14 diz que nunca ouve outro dia como aquele em que Deus obedecesse a um homem, o que só poderia ter sido escrito muito depois do ocorrido. 
Em relação ao livro dos Juízes é muito óbvio que ele não foi escrito pelos próprios juízes, isso basicamente por dois motivos: (i) o epílogo de toda a história que aparece no capítulo 2 mostra, sem margem para dúvidas, que todo ele foi escrito por um único historiador; (iicomo o seu autor frisa repetidamente que naquele tempo não havia rei em Israel, está fora de questão que o livro foi escrito já depois de os reis terem ocupado o poder. Ao livro dos Juízes liga-se assim, como em apêndice, o de Rute: “e aconteceu naqueles dias, quando os Juízes governavam, haver fome naquela terra.” 
O livro de Samuel também não pode ter sido escrito por Samuel, já que a história decorre muito tempo depois de ele ter vivido, isso fica claro, por exemplo, quando lemos a observação que o autor faz em 1Samuel 9,9: “Antigamente em Israel, indo alguém consultar a Deus, dizia assim: Vinde, e vamos ao vidente; porque ao profeta de hoje, antigamente se chamava vidente”.  
Finalmente, os livros dos Reis, conforme consta deles próprios, são tirados dos livros dos feitos de Salomão (1 Reis 11,41), das crônicas dos reis de Judá (1Reis 14, 19 e 29) e das crônicas dos reis de Israel. Em conclusão, todos os livros que consideramos até aqui são apógrafos e as coisas que eles contêm estão narradas como antigas. 

IX. ONDE SE ANALISAM OUTRAS QUESTÕES A RESPEITO AINDA DOS MESMOS LIVROS,  EM PARTICULAR SE FOI ESDRAS QUEM OS CONCLUIU  E SE AS NOTAS À MARGEM QUE SE ENCONTRAM  NOS CÓDICES HEBRAICOS CONSTITUEM VARIANTES 


Parece que o verdadeiro autor do Pentateuco, de Josué, Juízes, Rute, Samuel e Reis é Esdras. Existem três características que nos fazem pensar que todos esses livros tenham um único autor: (i) a unidade do tema de todos esses livros; (ii) a sua interligação e (iii) o fato de serem apógrafos, escritos muitos séculos após os fatos que relatam. Que seja Esdras esse autor único é uma suspeita, no entanto, as evidências a favor dessa suspeita são: (i) o historiador prolonga a narrativa até à libertação de Joaquim e acrescenta, além disso, que se sentou à mesa do rei durante toda a vida deste; (ii) sabemos pela Escritura, que Esdras se dedicava não só a estudar a lei de Deus como também a comentá-la. 
Nesses livros históricos do Antigo Testamento existem discrepâncias sobre a contagem de anos de reinados e encontramos notas às margens dos textos. Essas notas provavelmente foram feitas por escribas, não só para pontuar versões duvidosas, mas em alguns casos para substituir palavras obsoletas. 

X. ONDE SE EXAMINAM OS RESTANTES LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO, TAL COMO SE EXAMINARAM OS ANTERIORES 

Quanto aos outros livros do Antigo Testamento, os Salmos foram reunidos e repartidos por cinco livros na época do segundo Templo. Quanto aos livros proféticos, as profecias que aí se encontram foram coligidas de outros livros e que nem sempre vêm transcritas segundo a ordem pela qual foram pronunciadas ou escritas pelos próprios profetas, além de que não estão lá todas, mas unicamente as que foi possível encontrar aqui ou ali. Tais livros constituem, portanto, apenas fragmentos das obras dos profetas. 
Quanto ao livro de , a questão sobre seu escritor está em aberto. Os livros de Daniel, Esdras, Ester e Neemias foram seguramente escritos pelo mesmo historiador, embora não saibamos quem foi esse historiador. 

XI. ONDE SE AVERIGUA SE OS APÓSTOLOS ESCREVERAM AS SUAS EPÍSTOLAS NA QUALIDADE DE APÓSTOLOS E DE PROFETAS OU NA QUALIDADE DE DOUTORES E SE MOSTRA DEPOIS QUAL A FUNÇÃO DOS APÓSTOLOS 

Não há dúvidas de que os apóstolos eram profetas, mas os profetas nem sempre falavam na qualidade de profetas. Quando lemos as epístolas do Novo Testamento, percebemos que elas são bem diferentes dos livros proféticos. Enquanto os livros proféticos sempre falam por ordem de Deus - “assim diz o Senhor” - nas epístolas encontramos opiniões pessoais dos autores e expressões que denotam incerteza e perplexidade.  
Os apóstolos apresentam suas doutrinas a partir de argumentos e raciocínios, o que indica que tais textos não são frutos de revelação sobrenatural, antes são advertências escritas a partir do próprio discernimento natural dos apóstolos. Dado isso, é natural que os apóstolos tivessem discordâncias entre si, como Paulo que ensina a justificação pela fé enquanto Tiago ensina a justificação pelas obras. No entanto, embora as epístolas dos apóstolos tenham resultado da luz natural, elas falam com base no conhecimento natural de coisas que transcendem o domínio desse conhecimento. 

XII. DO VEDADEIRO ORIGINAL DA LEI DIVINA E POR QUE RAZÃO SE DESIGNA POR ESCRITURA SAGRADA E POR QUE SE CHAMA A PALAVRA DE DEUS.  ONDE SE MOSTRA, ENFIM, QUE A MESMA ESCRITURA, NA MEDIDA EM QUE CONTÉM A PALAVRA DE DEUS, CHEGOU ATÉ NÓS INTACTA 

Aqueles que consideram os livros da Bíblia, tal como hoje existem, uma espécie de carta que Deus mandou lá do céu aos  homens vão com certeza exclamar que este texto é uma blasfêmia por considerar que a palavra de Deus está errada, truncada, adulterada e incoerente consigo mesma, que só possuímos alguns fragmentos dela e, finalmente, que o original do pacto firmado por Deus com os Judeus se perdeu. No entanto, tanto a razão como as declarações dos profetas e dos apóstolos proclamam abertamente que o verbo eterno de Deus, o seu pacto e a verdadeira religião estão inscritos pela mão divina no coração dos homens, isto é, na mente humana: é esse o verdadeiro documento original de Deus, aquele que ele próprio autenticou com o seu selo, quer dizer, com a ideia de si mesmo, essa como que imagem da sua divindade. 
Aos primitivos judeus, a religião foi dada por escrito, como uma lei, porque nesse tempo eles eram como crianças. Chamamos a Bíblia de Palavra de Deus porque aí se ensinam a verdadeira religião e não porque Deus quis transmitir aos homens um certo número de livros. No que diz respeito a ensinar a verdadeira religião, as Escrituras não têm erros, as adulterações e os erros, por conseguinte, só podem ter ocorrido em outros aspectos, melhor dizendo, num ou noutro pormenor da narrativa ou da profecia. 

XIII. ONDE SE MOSTRA QUE A ESCRITURA ENSINA APENAS COISAS MUITO SIMPLES E NÃO TEM POR OBJECTIVO SENÃO A OBEDIENCIA; MESMO DA NATUREZA DE DEUS, ELA NÃO ENSINA SENÃO AQUILO QUE OS HOMENS PODEM IMITAR ATRAVÉS DE UMA CERTA REGRA DE VIDA 

Os profetas eram dotados de uma especial capacidade de imaginar, sim, mas não de compreender, Deus não lhes revelou nenhuns segredos da filosofia, mas apenas coisas extremamente simples, e que, além disso, se adaptou às suas opiniões preconcebidas. A doutrina da Escritura não inclui altas especulações ou considerações filosóficas, mas tão-só coisas simplicíssimas que qualquer um, por mais lento que seja, pode entender. 

XIV. ONDE SE DETERMINA O QUE É A FÉ, QUEM SÃO OS FIÉIS, QUAIS OS FUNDAMENTOS DA FÉ E, FINALMENTE, SE SEPARA A FÉ DA FILOSOFIA 

Para se ter um verdadeiro conhecimento do que é a fé, torna-se necessário, em primeiro lugar, saber que a Escritura está adaptada à compreensão, não só dos profetas, mas também do vulgo, incoerente e inconstante, dos Judeus. Quem, com efeito, aceitar indiscriminadamente como doutrina universal e absoluta sobre Deus tudo aquilo que vem na Escritura, sem identificar com cuidado o que nela está adaptado à compreensão do vulgo, será impossível não confundir as opiniões deste com a  doutrina divina, não apregoar como ensinamentos divinos o que  não passa de invenções e caprichos dos homens e não abusar,  assim, da autoridade da Escritura. 
A doutrina cristã não contém senão a simples fé: crer em Deus e reverenciá-lo ou, o que vem a dar no mesmo, obedecer-lhe. A fé não é senão o pensar acerca de Deus aquelas coisas que, se forem ignoradas, desaparece a obediência a Deus e que, pressuposta esta obediência, elas têm necessariamente de se pressupor também. Disso resulta que: (i) a fé pode salvar, não por si mesma, mas só em função da obediência; (iiaquele que na verdade é obediente possui necessariamente a fé verdadeira; (iii) a fé não requer tanto dogmas verdadeiros mas dogmas piedosos, isto é, que movem o ânimo para a obediência; (iv) a fé de cada um só se pode considerar piedosa ou ímpia consoante a obediência ou a insubmissão, e  não consoante a verdade ou a falsidade. 
Os dogmas fundamentais que as Escrituras visam estabelecer são: (i) Existe um Deus, isto é, um ser supremo, sumamente justo e misericordioso; (iiDeus é único e requer máxima devoção; (iii) Deus está presente em toda parte, ou seja, nada lhe é oculto; (iv) Deus tem, sobre todas as coisas, direito e poder soberano e tudo quanto faz é por seu beneplácito absoluto e graça singular, e não por coação de um direito; (v) o culto e a obediência a Deus constituem unicamente na justiça e na caridade, isto é, no amor para com o próximo; (vi) só aqueles que obedecem a Deus, seguindo esta norma da vida, obtêm a salvação, ao passo que os que vivem sob o império dos desejos, estão perdidos; (viiDeus perdoa os pecados aos que se arrependem. 

XV. ONDE SE MOSTRA QUE NEM A TEOLOGIA ESTÁ AO SERVIÇO DA RAZÃO, NEM A RAZÃO DA TEOLOGIA, E POR QUE MOTIVO ESTAMOS PERSUADIDOS DA AUTORIDADE DA SAGRADA ESCRITURA 

Os céticos defendem que a razão deve se adaptar às Escrituras enquanto os dogmáticos defendem que é a Escritura que deve se adaptar à razão. As duas posições estão erradas. Razão Escrituras são dois campos separados, pois as Escrituras não ensinam questões filosóficas, mas apenas a piedade e tudo que está contido nelas está adaptado à compreensão e às opiniões preconcebidas do vulgo. Quanto à certeza da autoridade das Escrituras, ela se baseia na certeza dos profetas, isto é: (i) na imaginação viva e nítida; (ii) no sinal e (iiino ânimo dado à justiça e ao bem. 



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