A DOUTRINA DA PERICORESE DIVINA
A Igreja sempre orou a Deus Pai, ao
Filho e ao Espírito Santo, bem como a Trindade toda. O que justifica que a
prática comum da Igreja em todo tempo seja orar às três pessoas diretamente? Hoje vemos cristãos compondo hinos que se dirigem às três pessoas e uma boa
Teologia não pode ignorar as verdades que emergem da prática comum e natural
dos cristãos. Além disso, o que Jesus quis dizer com “Quem vê a mim vê o Pai”
ou ainda "Eu estou no Pai e o Pai
está em mim”? O que essas palavras misteriosas revelam? Além disso, que unidade
é essa que faz Jesus dizer que quem crê nele, crê no Pai e quem honra o Filho
está honrando o Pai. Tais expressões foram interpretadas pelos hereges para
justificar o modalismo. Mas se o Modalismo é uma heresia, que tipo de unidade
na Trindade quis nosso Senhor ensinar com essas palavras?
INTERPRETANDO OS DADOS BÍBLICOS
Há uma Unidade muito profunda em Deus,
veja o que diz a Confissão de Fé do Shemá:
“Ouça,
Israel, Jeová, nosso Deus, é um só Jeová” – Deuteronômio 6.4
Infelizmente, alguns
teólogos modernos têm lido essas palavras como: “Ouça, Israel, a Trindade é uma
unidade composta”. Essa leitura destrói a unidade divina. É verdade que echad
significa mais que uma unidade absoluta, pois inclui uma pluralidade de pessoas
(Gênesis 2.24), é correto ler Deuteronômio 6.4 como “Ouça, Israel, a Trindade é
uma unidade de pessoas”.
A primeira razão para não se pensar em
unidade composta, é que isso insinua
que cada Pessoa da Trindade é uma parte de
Deus. Isso não é Trindade, mas tripartidismo. Os cristãos, ao longo da
História, têm entendido Deus como uma unidade simples, no sentido de que nele não existem partes. Veja o que os cristãos ao longo da História dizem sobre
Deus:
Agostinho
(“Pois Deus é o Ser Absoluto”, “Esta Trindade é indivisível”), Tomás de Aquino (“Deus...deve ser puro
ato”), Irineu (“Ele é um Ser
simples, não-composto, sem membros diversos”), Clemente de Alexandria (“Pois o Um é indivisível”), Orígenes (Deus... é uma natureza
intelectual não-composta”), Apolinário
(“o espírito divino... é um, de forma simples, substância simples,
indivisível”), Gregório de Nazianzeno
(“natureza primeira e não – composta”), Gregório
de Nissa (“livre de toda natureza composta”), Anselmo (“A Natureza de Deus de forma alguma é composta”), Calvino (“Deus se entende uma essência
única e simples”).”
“O
concílio de Lateranense IV diz que a
Trindade é "uma só essência, uma só substância ou natureza absolutamente
simples". A Confissão de Fé de Westiminster declara que a
Trindade é "uma mesma substância, poder e eternidade". A Confissão Belga também afirma:
"cremos em um só Deus, que é um único ser"... "Deus (não) está
dividido em três". [1]
Que Deuteronômio 6.4 é uma referência à
unidade entre as pessoas da Trindade,
isso fica claro, não só pelo termo echad
que indica uma pluralidade de pessoas., mas, também, pela repetição tríplice do nome de Deus: “Ouça, Israel, Jeová,
nosso Deus é um só Jeová”. No Novo Testamento, Paulo faz
alusão ao Shemá dizendo que: “Há um só Deus,
o Pai, e um só Senhor (Jeová), o
Filho” e que “O Senhor (Jeová) é o
Espírito... o Senhor (Jeová), o
Espírito” (1 Coríntios 8.6; 2 Coríntios 3.16-17).
“Deve
interessar ao leitor saber que o livro judaico mais sagrado, o Zohar, faz
comentário a Deuteronômio 6.4. ‘Ouve, Israel, Jeová nosso Deus, Jeová é uno’,
dizendo ‘Que necessidade haveria de mencionar três vezes neste versículo, o
nome de Deus?’. Segue-se a resposta. ‘O primeiro Jeová é o Pai celestial. O
segundo é o rebento de Jessé, o Messias que há de vir da família de Jessé,
através de Davi. E, o terceiro é o que está em baixo (significando o Espírito
Santo, que nos mostra o caminho) e estes três são um’...” (The Trinity in the Old Testament, pg.3 e 4). [2]
Este é o mistério de Deuteronômio 6.4: O
Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas reais e distintas, mas ao
mesmo tempo eles são uma Unidade simples. Se a unidade é simples, eles não
podem ser separados, estão unidos como se estivessem dentro um do outro. E é
exatamente isso o que o Novo Testamento ensina:
Disse-lhe
Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, o que nos basta. Disse-lhe Jesus: Estou há
tanto tempo convosco, e não me tendes conhecido, Filipe? Quem me vê a mim vê o
Pai; e como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês tu que eu estou no Pai, e que
o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo de mim mesmo, mas o
Pai, que está em mim, é quem faz as obras. Crede-me que estou no Pai, e o Pai
em mim; crede-me, ao menos, por causa das mesmas obras.
-
João 14.8-11
Tendo em vista esta
verdade, o Concílio de Florença
declarou:
“Por
causa desta unidade, o Pai está todo inteiro no Filho, todo inteiro no Espírito
Santo; o Filho está todo inteiro no Pai, todo inteiro no Espírito Santo; o
Espírito Santo, todo inteiro no Pai, todo inteiro no Filho” (Concílio de
Florença, em 1442, DS 1331).
O nome que se dá ao fato de que cada
pessoa da Trindade habita mutuamente uma nas outras é pericorese divina. Mais
um argumento a favor da pericorese divina
vem de João 17.22-26:
E
eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu
neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para que o
mundo conheça que tu me enviaste a mim, e que os tens amado a eles como me tens
amado a mim. Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles
estejam comigo, para que vejam a minha glória que me deste; porque tu me amaste
antes da fundação do mundo. Pai justo, o mundo não te conheceu; mas eu te
conheci, e estes conheceram que tu me enviaste a mim. E eu lhes fiz conhecer o
teu nome, e lho farei conhecer mais, para que o amor com que me tens amado
esteja neles, e eu neles esteja.
Embora o cristão participe em certo
sentido da unidade da Trindade por meio da união mística com Cristo, que é misteriosa e inexplicável, a unidade
entre as pessoas da Trindade é ainda mais profunda do que qualquer união. Se a
Bíblia diz que o casal forma “uma só carne” pelo amor conjugal (eros) e que o cristão é um com Cristo
pelo amor gracioso (ágape) de Deus,
como um ramo ligado à videira, que unidade ainda mais profunda deve existir no
amor eterno e imutável que une as três pessoas da Trindade! Podemos argumentar
assim:
1. A
forma mais excelsa de amor é aquela que aproxima as pessoas ao máximo possível.
2. Deus
é a forma mais excelsa de amor.
3. Logo,
as pessoas divinas estão tão próximas o máximo possível uma das outras.
4. As
Pessoas divinas são próximas o máximo possível uma das outras.
5. O
máximo possível que uma pessoa pode estar da outra é habitando totalmente
dentro dela.
6.
Logo, as pessoas divinas habitam-se mutuamente.
Essa habitação mútua é, em um certo
sentido estática, porque o amor de
Deus é Imutável. Ao aspecto estático
da pericorese divina, dá-se o nome de circumsessio.
No entanto, a Trindade precisa ser compreendida em termos aliancistas. Na
realidade, o Conselho da Trindade é uma Aliança eterna entre Três Pessoas.
Nessa Aliança eterna de Três Pessoas há uma relação pactual amorosa entre o
Pai, o Filho e o Espírito Santo. Nesse Conselho Eterno, o Pai e o Filho
interagiram entre si no que se chama Pacto da Redenção, que traçou o plano de
Deus para a criação de um mundo que glorificaria o atributo divino de justiça,
pela condenação de alguns e o atributo de amor, pela salvação dos eleitos. Assim, a Trindade também é, em certo sentido,
uma relação dinâmica de amor eterno. Ao
aspecto dinâmico da pericorese
divina, dá-se o nome de circumcessio.
[3]
CONSIDERAÇÕES
FINAIS: IMPLICAÇÕES PRÁTICAS
As implicações práticas da pericorese divina são as colocadas no
início do artigo. Sendo que as três pessoas estão numa relação indivisível, não
podemos separá-las uma das outras, embora não possamos também confundi-las,
como fazem os modalistas. Por causa da Pericorese divina, crer de verdade em
qualquer uma das pessoas da Trindade é crer na Trindade toda (João 14.1),
adorar genuinamente qualquer uma das pessoas da Trindade é adorar a Trindade
toda (João 5.23) e receber sinceramente no coração qualquer uma das pessoas da
Trindade é receber a Trindade toda no coração (João 14.19-23). Por outro lado,
negar qualquer pessoa da Trindade é rejeitar a Trindade toda (1 João 2.22-23).
Quando as Testemunhas de Jeová, por
exemplo, negam que Jesus é Deus e ensinam que o Espírito Santo é mera força
ativa, estão rejeitando automaticamente também a Deus, o Pai. Há uma implicação
bela da doutrina da Trindade. A habitação mútua das pessoas divinas nos ensina a
adorá-las igualmente, a oração é uma forma de adoração. Estaríamos diminuindo a
dignidade das pessoas divinas se ensinássemos que só se pode orar diretamente ao Pai. Se a Bíblia dá
sinais de que se pode orar diretamente
a Jesus (João 14.14; Atos 7.59; 1 Coríntios 1.1; 12.8-9)[4] , não parece estranho
concluir que podemos orar diretamente ao Espírito Santo também.
***
[1]
Bruno Queiroz. A Unidade Absolutamente Simples da Trindade.
[2]
Loraine Boettner. A Trindade, pp.22-23.
[3]
Confira: André Aloísio Oliveira da Silva. A
Trindade Imanente: Unidade de essência e diversidade de pessoas como igualmente
fundamentais em Deus, pp. 41, 42, 135, 136 e 137.
[4] Bruno Queiroz. Pode-se orar a Jesus? - Trinitariano.
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