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ÉTICA POPULACIONAL - DEREK PARFIT (RESUMO)

 
    O que se segue é um resumo da quarta parte do livro Reasons and Persons de Derek Parfit intitulada Future Generations O objetivo é apresentar as teses do texto original de forma compactada, sem constituir uma resenha crítica. Assim, o resumo busca refletir as ideias do autor original, sintetizando suas principais teses. A leitura deste resumo não substitui a leitura do livro. Ele está estruturado nas seguintes partes:   

(1) TAXONOMIA DAS POSIÇÕES SOBRE IDENTIDADE TRANSMUNDIAL
(2) CASO DA GAROTA DE 14 ANOS 
(3) A CONCLUSÃO REPUGNANTE
(4)  A CONCLUSÃO ABSURDA  
(5) PARADOXO DA MERA ADIÇÃO 
(6) A IMPORTÂNCIA DE UMA ÉTICA IMPESSOAL 

Referência: PARFIT, D. Reasons and persons. Oxford: Clarendon Press, 1984.   


I. TAXONOMIA DAS POSIÇÕES SOBRE IDENTIDADE TRANSMUNDIAL 

 

Ética populacional é o ramo da filosofia moral que investiga como comparar moralmente, estados possíveis do mundo que diferem quanto ao número de pessoas que existem e quanto à qualidade das vidas que são vividas.  A discussão sobre Ética Populacional envolve o debate sobre identidade pessoal transmundial. Diferente do problema da identidade pessoal simples, que lida com o que faz com que sejamos a mesma pessoa durante a nossa vida, o problema da identidade pessoal transmundial lida com o que faz com que sejamos a mesma pessoa entre diferentes estados possíveis do mundo. As posições sobre isso podem ser classificadas da seguinte maneira: 

(1) Teoria da Dependência Temporal: Afirma que, se uma pessoa não tivesse sido concebida no momento em que de fato foi, ela não teria existido. 

(1.1) Teoria da Dependência Temporal Simples: A identidade pessoal transmundial depende estritamente do momento de concepção. 

(1.2) Teoria da Dependência Temporal Revisada: Para avaliar se uma pessoa poderia ter existido, considera-se um intervalo de um mês ao redor da concepção de modo que fora desse intervalo, a pessoa não existiria. 

(2) Teoria da Origem: A identidade pessoal entre mundos possíveis exige que a pessoa tenha se desenvolvido da mesma dupla de células originais. 

(2.1) Teoria da Origem estrita: A identidade pessoal transmundial depende exatamente da mesma dupla de células de origem 

(2.2) Teoria da Origem revisada:  Uma mesma dupla de células de origem, como no caso de gêmeos, pode dar origem a pessoas diferentes, de modo que a mesma origem é uma condição necessária, mas não suficiente, para alguém ser a mesma pessoa. 

(3) CartesianismoA identidade transmundial depende de a pessoa ser o mesmo Ego substancial entre mundos possíveis. 

(3.1) Cartesianismo puro: O Ego cartesiano poderia existir em qualquer mundo possível com qualquer conjunto de propriedades. 

(3.2) Cartesianismo modificadoAlguém é a mesma pessoa entre mundos possíveis se é o mesmo Ego cartesiano com propriedades distintivas opcionais, incluindo certos traços psicológicos ou certas realizações. 

(4) Descritivismo: A identidade pessoal transmundial depende de um conjunto de descrições definidas (propriedades distintivas) da pessoa. 

(4.1) Descritivismo fraco: A identidade pessoal transmundial depende de propriedades distintivas contingentes no sentido de que qualquer indivíduo que possua essas propriedades em um mundo possível é a mesma pessoa. 

(4.2) Descritivismo forte: A identidade pessoal transmundial depende de propriedades distintivas necessárias sem as quais uma pessoa não poderia existir. 

(4.3Descritivismo de nome próprio: Cada nome próprio significa “a pessoa que...”, e a identidade transmundana depende das propriedades listadas na explicação do significado do nome. 

(4.3.1) Descritivismo semântico de nome próprio: As propriedades de um nome próprio fixam a identidade entre mundos. 

(4.3.2) Descritivismo cartesiano de nome próprio: O nome próprio de uma pessoa que permite identificá-la em diferentes mundos possíveis se refere a um Ego cartesiano cujas propriedades incluem traços distintivos específicos, como realizações históricas. 

(5Teoria da Variação Regressiva: A referência quem fixa a identidade de uma mesma pessoa através de mundos possíveis pode ser feita a qualquer ponto da vida; a identidade pode ser descrita mesmo que a origem biológica seja diferente. 

(5.1) Teoria da Variação Regressiva Aplicada à origem: Uma mesma pessoa poderia ter se originado de outra dupla de células, desde que se possa rastrear a referência regressivamente. 

(5.2) Teoria da Variação Regressiva Aplicada às propriedades posteriores: Afirma que pode haver mundos possíveis nos quais uma mesma pessoa possui diferentes características físicas ou psicológicas, mas ainda é identificável a partir de um ponto de referência. 

 

Entre essas visões, a melhor parece ser a Teoria da Dependência Temporal (TD) na sua versão revisada (1.2), segundo a qual, para avaliar se uma pessoa poderia ter existido, considera-se um intervalo de um mês ao redor da concepção; fora desse intervalo, a pessoa não existiria. No entanto, a identidade pessoal entre mundos possíveis pode ser indeterminada em certos casos. 

Quanto à Teoria da OrigemTeoria da Origem Estrita (2.1) apresenta problemas, porque gêmeos idênticos compartilham a mesma dupla de células, mostrando que a origem biológica sozinha não é suficiente para distinguir indivíduos. A Teoria da Origem Revisada (2.2), que considera a origem necessária mas não suficiente, é mais adequada para refletir a identidade transmundial. No caso do Cartesianismo (3), Cartesianismo Puro (3.1) deve ser rejeitado, pois desconecta a identidade pessoal das propriedades físicas e psicológicas do indivíduo. A versão modificada, Cartesianismo Modificado (3.2), em que o mesmo Ego cartesiano possui propriedades distintivas opcionais, incluindo traços psicológicos ou certas realizações, é mais aceitável e compatível com uma visão flexível da identidade entre mundos possíveis. Quanto ao Descritivismo (4), é possível defender uma abordagem flexível, em que mesmo propriedades não necessárias podem ser suficientes para identificar a pessoa. Isso também permite apoiar apoia a Teoria da Variação Regressiva (5), no sentido de defender que a identidade transmundial é contingente, flexível e rastreável por referência e propriedades distintivas. 

 

II. CASO DA GAROTA DE 14 ANOS  

 

Considerando a discussão sobre identidade transmundial, a Ética Populacional lida com casos em que se está envolvido o Problema da Não-Identidade. Esse problema surge quando uma ação nossa determina quais indivíduos específicos existirão no futuro, de modo que a pessoa que existe só existe porque tomamos aquela ação específica. Consequentemente, não se pode dizer que essa pessoa foi prejudicada por nossa escolha, porque, se tivéssemos agido de outra forma, ela não existiria de todo. 

Um caso hipotético que ilustra isso é o da garota de 14 anos. No caso, uma adolescente de 14 anos decide ter um filho. Por causa de sua idade, o bebê terá um início de vida desfavorável. Se a mãe tivesse esperado alguns anos para conceber, o filho que nasceria seria uma pessoa diferente, não o mesmo indivíduo. Assim, a decisão da garota não prejudica diretamente a criança que existe, embora possa parecer moralmente problemático. 

No entanto, é importante distinguir dois tipos de escolhas morais em relação a pessoas futuras: (i) Escolhas Entre as Mesmas Pessoas: decisões que afetam apenas o bem-estar de pessoas futuras que existiriam de qualquer forma, independentemente da escolha(iiEscolhas que Alteram o Número ou a Identidade das Pessoas: decisões que determinam quem existirá ou quantas pessoas existirão no futuro. O caso da garota de 14 anos é um exemplo de Escolhas que Alteram o Número, porque sua decisão sobre quando ter um filho determina a identidade do bebê. 

Ao discutir os aspectos morais desse caso, alguns defendem o Princípio da Qualidade Numérica, segundo o qual: “Se, em dois cenários possíveis, o mesmo número de pessoas existirá, é moralmente pior se a qualidade de vida dessas pessoas for inferior em um cenário em relação ao outro”. Esse princípio funciona em situações em que o número de pessoas é constante, mas não resolve o problema da não-identidade, porque o caso da garota envolve indivíduos diferentes dependendo da decisão tomada. 

Para lidar com esse tipo de situação, seria preciso uma teoria moral mais ampla que poderia justificar o Princípio da Qualidade Numérica e, ao mesmo tempo, oferecer critérios para avaliar as escolhas que afetam a identidade e o número de pessoas futuras. Essa teoria permitiria compreender o impacto moral das ações que determinam quem virá a existir, mesmo que não prejudiquem nenhum indivíduo existente diretamente. Podemos chamar provisoriamente essa teoria hipotética de Teoria X. 

Alguns, por outro lado, recorrem a noção de direitos para explicar por que a decisão da garota de 14 anos é errada. Segundo essa visão, a decisão da garota é errada porque ela viola o direito do filho a um bom começo de vida. Contudo, esse direito não poderia ter sido satisfeito, pois o mesmo filho não poderia ter existido se ela tivesse esperado até a maturidade. Se esse é o mesmo indivíduo, então não faz sentido dizer que seu direito foi violado, já que a alternativa para ele não era uma vida melhor, mas nenhuma vida. Além disso, se a objeção fosse baseada apenas em um direito insatisfeito, o próprio filho poderia dizer que abre mão desse direito, o que dissolveria a crítica, algo que parece moralmente inaceitável. 

A intuição correta não é que a mãe prejudicou esse filho em particular, mas que ela deixou de fazer algo melhor em termos impessoais: se tivesse esperado, poderia ter dado um começo melhor a algum outro filho. A avaliação moral, portanto, não se baseia em razões pessoais; ela não compara o bem-estar do mesmo indivíduo em dois cenários, mas compara resultados possíveis diferentes, envolvendo pessoas diferentes, ou seja, se baseia em razões imparciais. 

Pode-se defender, aqui, uma Teoria da Dependência Temporal, no sentido de que é verdadeiro que, se qualquer pessoa não tivesse sido concebida aproximadamente no momento em que foi, essa pessoa nunca teria existido. Isso implica que decisões sociais de longo prazo, como escolher entre políticas ambientais, alteram não apenas a qualidade de vida futura, mas quais pessoas existirão. Após algumas gerações, absolutamente todos os indivíduos que existirão dependerão causalmente dessas escolhas. 

Nesse contexto, pode-se defender também a Teoria da não-diferença, segundo a qual, o fato de que uma escolha não seja pior para ninguém não enfraquece em nada a objeção moral contra ela. Se aceitarmos essa visão, e a ideia de que causar alguém a existir não é um benefício, então a melhor teoria moral não poderá se basear em razões pessoais. Ela não explicará o errado e o correto apenas em termos do que é bom ou ruim para indivíduos específicos, mas terá de apelar a comparações impessoais entre estados possíveis do mundo. 

 

III. A CONCLUSÃO REPUGNANTE 

 

De acordo com o Princípio Totalista Impessoal, ao comparar resultados possíveis, o melhor é aquele em que há a maior soma total de felicidade, bem-estar ou de aquilo que torna a vida digna de ser vivida, independentemente de como essa quantidade esteja distribuída entre as pessoas. O princípio é impessoal porque não dá prioridade a ninguém em particular: apenas o total agregado importa. Esse princípio, no entanto, leva a uma conclusão repugnante, que não pode ser moralmente aceita.  

Conclusão Repugnante pode ser formulada da seguinte maneira. Para qualquer população possível composta por, digamos, dez mil milhões de pessoas, todas vivendo vidas de qualidade muito elevada (o Resultado A), deve existir alguma população alternativa muito maior (o Resultado Z) tal que, mantendo-se as demais coisas iguais, a existência de Z seria melhor do que a de A, mesmo que os membros de Z tenham vidas cuja qualidade seja apenas ligeiramente superior ao nível em que a vida deixa de valer a pena ser vivida. 

O raciocínio que conduz a essa conclusão é cumulativo e aparentemente inescapável dentro do Princípio Totalista. Suponha-se um Resultado B, no qual há mais pessoas do que em A, cada uma com uma qualidade de vida um pouco menor, mas ainda claramente positiva. Se o número adicional de pessoas for suficientemente grande, a soma total de felicidade em B será maior do que em A, tornando B um resultado melhor segundo o princípio. Repetindo esse tipo de comparação passo a passo, chegamos a resultados cada vez mais populosos, nos quais a qualidade média de vida diminui progressivamente, até alcançarmos o Resultado Z. 

No Resultado Z, cada indivíduo tem uma vida que contém pouquíssima felicidade, mal acima do limiar do valor positivo. Ainda assim, devido ao número imenso de pessoas, a soma total de felicidade, ou de valor de vida, supera a de qualquer população menor com vidas excelentes. Para o hedonista que aceita o Princípio Totalista, essa conclusão é inevitável: Z é melhor do que A simplesmente porque contém mais valor agregado. 

No entanto, essa implicação é profundamente contraintuitiva e moralmente repugnante. Intuitivamente, parece errado afirmar que um mundo abarrotado de pessoas cujas vidas são quase miseráveis seja melhor do que um mundo com menos pessoas vivendo vidas ricas, plenas e altamente valiosas. A repugnância da conclusão não está em algum detalhe empírico, mas na própria estrutura do princípio que a gera. Por essa razão, se a Conclusão Repugnante é de fato inaceitável, então devemos rejeitar o Princípio Totalista Impessoal ou, ao menos, negar que ele seja a teoria correta da beneficência. No lugar dele, seria necessário formular uma teoria alternativa, a chamada Teoria X, capaz de explicar nossas intuições morais sobre populações, qualidade de vida e valor, sem nos comprometer com a Conclusão Repugnante. 

 

IV. A CONCLUSÃO ABSURDA  

 

A Conclusão Absurda surge como um problema estrutural para teorias éticas que tentam evitar a Conclusão Repugnante restringindo o papel da quantidade na avaliação do valor de resultados possíveis. Em particular, ela aparece quando se adota uma teoria que combina certas intuições plausíveis sobre qualidade de vida, valor agregado e sofrimento, mas que, em conjunto, geram implicações profundamente contraintuitivas.  

A teoria que conduz à Conclusão Absurda repousa sobre três princípios fundamentais: (iPrincípio do Valor da Qualidade de Vida: A qualidade de vida possui valor intrínsecoquanto melhor for a qualidade de vida das pessoas em um resultado possível, melhor esse resultado é, ceteris paribus; (ii) Princípio do Limite Superior do Valor Positivo da Quantidade: O valor positivo adicional gerado pela quantidade, seja pelo aumento do número de pessoas com vidas dignas de serem vividas, seja pelo aumento da soma de felicidade ou bem-estar em um determinado período, é limitado; (iii) Princípio da Ilimitação do Desvalor do Sofrimento Não Compensado: O desvalor moral do sofrimento grave que não é compensado por benefícios correspondentes não possui limite superior. 

A combinação dessas três teses cria uma assimetria profunda entre valor positivo e valor negativo. Como o valor positivo agregado é limitado, mas o desvalor do sofrimento não compensado cresce sem limites, torna-se possível que uma quantidade suficientemente grande de sofrimento, mesmo se distribuída entre pouquíssimos indivíduossupere qualquer quantidade finita de bem-estar. Essa consequência por meio da comparação entre dois resultados hipotéticos futuros 

(1) Resultado da Concentração Temporal do Valor e do Sofrimento: No Primeiro Resultado, uma população enorme existe durante um único século futuro. Quase todos os indivíduos desfrutam de uma qualidade de vida muito elevada. No entanto, há uma pequena minoria de pessoas extremamente desafortunadas, por exemplo, uma pessoa cuja vida não vale a pena ser vivida para cada dez mil milhões de indivíduos. Segundo a teoria em questão, como o valor positivo da quantidade nesse século atinge rapidamente seu limite máximo, o sofrimento não compensado desses poucos indivíduos, cujo desvalor é ilimitado, acaba por dominar a avaliação. O resultado, no todo, é considerado muito mau. 

(2) Resultado da Dispersão Temporal do Valor e do Sofrimento: No Segundo Resultado, o mesmo número enorme de pessoas, com exatamente a mesma distribuição de qualidade de vida e a mesma proporção de desafortunados, existe ao longo de muitos séculos futuros, em vez de concentrar-se em apenas um. Em cada século, o valor positivo da quantidade ainda conta como limitado, mas agora ele é reiterado a cada novo período temporal. Assim, em cada século, o valor positivo supera o desvalor negativo correspondente, e o resultado agregado ao longo do tempo é considerado muito bom. 

A conclusão é dita absurda porque os dois resultados são, em um sentido global, idênticos: o mesmo número total de pessoas existe, com as mesmas vidas, com a mesma distribuição de felicidade e sofrimento. A única diferença entre eles é quando essas vidas são vividas. Ainda assim, a teoria é forçada a julgar um resultado como extremamente mau e o outro como extremamente bom. Essa dependência moral do mero fator temporal parece completamente injustificável. 

Se essa consequência é inaceitável, então algo deve ser abandonado na teoria que a gera. Em particular, é necessário rejeitar a assimetria estrutural entre valor positivo e desvalor negativo, isto é, a ideia de que o valor positivo da quantidade tem um limite, enquanto o desvalor do sofrimento não compensado não tem. Sem essa assimetria, a Conclusão Absurda não se segue, e a teoria pode evitar tanto esse resultado quanto, possivelmente, a Conclusão Repugnante. 

 

V. PARADOXO DA MERA ADIÇÃO 

 

O Paradoxo da Mera Adição surge no contexto da ética populacional e tem como objetivo mostrar que um conjunto de juízos aparentemente muito plausíveis leva a uma inconsistência lógica quando tentamos avaliar resultados que diferem simultaneamente em tamanho populacional e qualidade de vida. O paradoxo se inicia com uma comparação entre três resultados possíveis: A, A+ e B. 

(1) Resultado A: existe uma população relativamente pequena, cujos membros têm uma qualidade de vida muito elevada. Trata-se de um resultado claramente bom, no qual todos são muito bem servidos. 

(2) Resultado A: Esse resultado é obtido por mera adição. Ele contém toda a população de A e, além disso, um grupo de pessoas extra cujas vidas também valem a pena ser vividas. Essas pessoas adicionais não prejudicam ninguém, não competem por recursos e não geram injustiça social, por exemplo porque vivem separadamente do grupo original. No entanto, elas são pior servidas do que as pessoas de A, o que introduz uma forma de desigualdade natural entre os dois grupos. 

(3) Resultado B: a população total é aproximadamente o dobro da população de A, mas todos têm uma qualidade de vida inferior àquela desfrutada pelas pessoas em A. Embora ninguém em B seja tão bem servido quanto as pessoas em A, cada vida em B vale mais de metade do valor de uma vida em A. Assim, do ponto de vista do valor total ou agregado, B pode parecer atrativo. 

O paradoxo emerge quando consideramos três juízos morais que, isoladamente, parecem muito razoáveis. primeiro juízo afirma que A+ não é pior do que A. A mera adição de pessoas cujas vidas valem a pena ser vividas, e que não tornam ninguém pior, não pode ser moralmente má. Esse juízo expressa uma forte intuição anti-elitista e anti-exclusivista: criar vidas dignas, sem prejuízo para outros, não piora um resultado. 

segundo juízo sustenta que B é melhor do que A+. Ao passar de A+ para B, o grupo pior servido em A+ melhora significativamente, enquanto o grupo originalmente melhor servido perde menos do que os outros ganham. Além disso, a desigualdade entre grupos é eliminada. Por essa razão, a transição parece representar uma melhoria tanto do ponto de vista da beneficência (maior benefício agregado) quanto do ponto de vista da igualdade. 

terceiro juízo, porém, afirma que B é pior do que A. Em B, todos vivem pior do que em A, e nenhuma pessoa desfruta da qualidade de vida muito elevada presente no Resultado A. Intuitivamente, muitos consideram que uma sociedade em que todos vivem muito bem é melhor do que uma sociedade maior em que todos vivem apenas moderadamente bem. 

O problema é que esses três juízos não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo. Se A+ não é pior do que A, e B é melhor do que A+, então, por transitividade, B não pode ser pior do que A. No entanto, a intuição de que B é pior do que A é extremamente persistente. O conjunto das três crenças gera, assim, uma contradição. 

O Paradoxo da Mera Adição coloca uma pressão decisiva sobre as teorias da ética populacional. Para resolvê-lo, somos forçados a abandonar pelo menos uma dessas crenças. As opções, contudo, são filosoficamente custosas: ou se aceita alguma forma de Visão Elitista, segundo a qual o bem-estar dos mais bem servidos tem prioridade moral; ou se aceita o caminho que conduz à Conclusão Repugnante, segundo a qual populações enormes com vidas apenas marginalmente valiosas podem ser melhores do que populações menores com vidas excelentes.  

 

VI. A IMPORTÂNCIA DE UMA ÉTICA IMPESSOAL 

 

tese geral de uma ética impessoal é que muitas das nossas razões morais e práticas deveriam ser menos centradas em pessoas particulares e mais sensíveis a padrões globais de valor. Embora essa conclusão pareça, à primeira vista, fria ou alienante, é frequentemente melhor para todos e necessária para lidar com problemas morais característicos de sociedades grandes, interconectadas e intergeracionais. 

As nossas intuições morais comuns tendem a falhar em contextos nos quais pequenas contribuições individuais, tomadas isoladamente, parecem irrelevantes, mas produzem coletivamente danos graves. O caso paradigmático é o dos Torturadores Inofensivos. Cada torturador aumenta a dor da vítima apenas de modo impercetível; nenhum indivíduo parece causar um dano moralmente relevante. Contudo, o efeito conjunto é uma dor extrema. Assim, o critério “o meu ato faz alguém perceptivelmente pior?” é moralmente inadequado. 

Os altruístas racionais, nesse sentido, adotam uma perspectiva mais impessoal: eles reconhecem que a irrelevância perceptiva de um único ato não elimina a sua contribuição causal para um mal coletivo. Para evitar conclusões moralmente inaceitáveis em casos como poluição ambiental, mudanças climáticas ou superpopulação, precisamos de princípios impessoais, que avaliem estados de coisas globalmente, e não apenas os efeitos discerníveis de ações individuais sobre pessoas específicas. 

Essa impessoalidade também afeta o domínio das obrigações pessoais. Do ponto de vista do Altruísmo Racional, não devemos perguntar apenas o que é melhor para “os meus filhos”, mas o que seria melhor para as crianças em geral, consideradas imparcialmente. Embora tenhamos razões especiais para cuidar dos nossos próximos, essas razões não têm o peso absoluto que o senso comum lhes atribui quando entram em conflito com benefícios muito maiores para outros. 

A defesa da impessoalidade moral é reforçada quando adotamos o reducionismo psicológico sobre identidade pessoal. Segundo essa visão, a identidade pessoal não é um fato profundo ou fundamental. As pessoas não são entidades simples e separadas, mas conjuntos de estados psicológicos ligados por relações de continuidade e conectividade, de modo análogo à forma como uma nação existe. 

Se não existe um “eu” profundo que persista como um fato adicional, então a fronteira entre uma vida e outra perde parte da sua importância moral. Isso torna plausível uma abordagem que se concentre nas experiências em si, como dor, prazer, bem-estar, em vez de em quem as experimenta. A redução do peso metafísico da identidade pessoal, portanto, fornece suporte teórico a princípios éticos mais impessoais, incluindo versões do utilitarismo que não atribuem importância moral fundamental às fronteiras entre vidas distintas. 

É na ética populacional que a impessoalidade assume a sua forma mais radical e inevitável. O Problema da Não-Identidade mostra o fracasso das teorias morais que apelam exclusivamente para o Princípio da Pessoalidade, segundo os quais um ato só pode ser errado se for pior para alguém. Considere, por exemplo, o Caso Imaginário da Depleçãoem que a escolha de uma política social que reduz drasticamente a qualidade de vida no futuro não é pior para ninguém em particular, pois as pessoas que existirão nesse futuro só existirão precisamente por causa dessa política. Ainda assim, é claro que há uma forte objeção moral a tal escolha. Essa objeção não pode ser formulada em termos de prejuízo a pessoas determinadas, mas apenas em termos impessoais, relativos à pior qualidade das vidas que serão vividas. 

Por essa razão, o princípio correto de beneficência deve avaliar a qualidade e a quantidade das vidas que existem, independentemente de quem as viva. Para lidar simultaneamente com o Problema da Não-Identidade e com paradoxos como a Conclusão Repugnante, é necessário um princípio impessoal, uma Teoria X, que não reduza o valor moral ao que é bom ou mau para pessoas identificáveis. 


 

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Bruno dos Santos Queiroz

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