INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA LÓGICA
A Lógica é a área da filosofia que estuda os princípios e métodos de inferência. Por outro lado, a filosofia da lógica é a área da filosofia que estuda os problemas filosóficos que a lógica levanta. O objetivo deste texto consiste em apresentar uma introdução à filosofia da lógica, usando como base uma playlist no youtube sobre o tema apresentada pelo filósofo Kane B (aqui). O texto discute os seguintes pontos: (i) O Problema da Dedução; (ii) Niilismo lógico; (iii) Paradoxos da Implicação Material; (iv) Paradoxo de Curry; (v) Paradoxo de São Petersburgo; (vi) Falácia do Escopo Modal; (vii) Objeções de Quine à Lógica Modal; (viii) Realismo Moral; (ix) Dialeteísmo.
I. O PROBLEMA DA DEDUÇÃO
O
problema da dedução é um desafio
filosófico que questiona como podemos justificar a validade do raciocínio
dedutivo sem cair em circularidade ou em um regresso infinito. Embora a dedução
seja frequentemente vista como infalível (onde a verdade das premissas garante
a verdade da conclusão), filósofos como Susan
Haack e Lewis Carroll demonstram
que justificá-la racionalmente para um cético é extremamente difícil.
Uma
forma de ilustrar isso é o chamado Problema
do Regresso Infinito de Lewis Carroll. O argumento não visa pôr em dúvida a
validade da inferência dedutiva em si, mas revelar um problema estrutural na
forma como se costuma conceber sua justificação racional. Trata-se do caso em
que Aquiles apresenta à Tartaruga um argumento elementar de modus ponens: se Sócrates é homem, então
Sócrates é mortal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal. A Tartaruga
aceita integralmente as duas premissas, mas se recusa a aceitar a conclusão.
Diante dessa resistência, Aquiles tenta tornar explícita a regra inferencial
que conecta as premissas à conclusão, formulando-a como uma nova premissa: se
as duas primeiras premissas são verdadeiras, então a conclusão deve ser
verdadeira. A expectativa de Aquiles é que, uma vez aceita essa regra, a
conclusão se imponha de modo necessário.
Ocorre,
porém, que a estratégia falha. A Tartaruga aceita também essa nova premissa,
mas continua recusando a conclusão. Para avançar, Aquiles se vê compelido a
introduzir outra premissa, agora afirmando que, se as premissas anteriores, incluindo
a regra explicitada, são verdadeiras, então a conclusão deve ser verdadeira.
Esse procedimento, no entanto, não encerra a disputa, pois a Tartaruga pode
aceitar indefinidamente cada nova premissa sem jamais dar o passo inferencial
final. O resultado é um regresso infinito de premissas que pretendem justificar
a passagem dedutiva, mas que nunca a realizam efetivamente.
O
ponto central do argumento de Carroll é que regras de inferência não podem ser
tratadas como premissas sem perda de sua função normativa. Premissas são
conteúdos proposicionais passíveis de aceitação ou rejeição; regras
inferenciais, por sua vez, são princípios que governam a prática de inferir.
Transformar uma regra em uma proposição equivale a deslocá-la do plano da
aplicação para o plano da descrição, exigindo, então, uma nova regra para
explicar como essa proposição deve ser usada inferencialmente. Assim, toda
tentativa de justificar a dedução adicionando novas premissas está condenada a
gerar um regresso indefinido.
Além
do problema do regresso infinito, a tentativa de fundamentar racionalmente a
dedução enfrenta também o problema da
circularidade da justificação. Esse problema é frequentemente apresentado
como um paralelo direto à crítica clássica de David Hume à indução e
revela uma dificuldade profunda em justificar regras dedutivas sem pressupor
aquilo que se pretende justificar.
No
caso da indução, Hume observou que qualquer tentativa de defendê-la apelando ao
seu sucesso passado, por exemplo, alegando que “a indução funcionou no passado,
logo funcionará no futuro”, é manifestamente circular, pois utiliza um
raciocínio indutivo para legitimar a própria indução. A conclusão central de
Hume não é que a indução seja irracional ou dispensável, mas que ela não pode
ser justificada por argumentos que já a pressupõem. De modo análogo, diversos
autores sustentam que a dedução enfrenta um problema estruturalmente
semelhante: qualquer justificação puramente dedutiva das regras da dedução incorre
em circularidade viciosa.
O
exemplo paradigmático dessa dificuldade aparece nas tentativas de justificar
regras como o modus ponens por meio
de tabelas de verdade. O raciocínio usual é o seguinte: assume-se que a
condicional “se A, então B” é verdadeira e que A é verdadeira; examinando-se a
tabela de verdade do condicional material, constata-se que, no único caso em
que ambas são verdadeiras, B também deve ser verdadeira. Conclui-se, assim, que
o modus ponens é uma regra válida e
preservadora da verdade.
O
problema, como observa Susan Haack,
é que essa suposta justificação exibe exatamente a forma de inferência que
pretende fundamentar. Para passar da informação fornecida pela tabela de
verdade à conclusão de que a regra é válida, o raciocinador precisa
efetivamente aplicar um passo inferencial do tipo modus ponens ou algo logicamente equivalente. Em outras palavras, o
argumento só funciona para quem já reconhece a legitimidade da inferência
dedutiva em questão. Assim, a justificação não é neutra nem independente: ela
pressupõe o funcionamento da própria dedução que se deseja explicar.
A
gravidade desse problema torna-se ainda mais evidente quando se considera a
possibilidade de justificar regras inválidas pelo mesmo procedimento. Haack
ilustra esse ponto com o exemplo de uma regra falaciosa conhecida como afirmação do consequente que ela ironicamente
denomina “Modus Morons”: B; se A
então B; logo, A. Se a circularidade for permitida como forma legítima de
justificação, essa regra inválida pode ser “justificada” de modo
estruturalmente idêntico ao modus ponens,
recorrendo à sua própria tabela de verdade e assumindo, desde o início, que o
passo inferencial é aceitável. O resultado é que tanto uma regra válida quanto
uma falácia podem ser “provadas” corretas pelo mesmo método.
Esse
cenário revela que justificações circulares não apenas falham em fornecer uma
base racional independente, mas também tornam impossível distinguir entre
inferências corretas e incorretas. Se o procedimento de justificação não
oferece critérios que não pressuponham a validade da dedução, então ele não
discrimina entre sistemas lógicos legítimos e ilegítimos. A consequência é uma
forma de subdeterminação das regras de
inferência: o mesmo conjunto de fatos semânticos, como as tabelas de
verdade, pode ser compatível com múltiplos sistemas inferenciais incompatíveis
entre si, alguns válidos e outros claramente falaciosos.
II. NIILISMO LÓGICO
Diante do problema da dedução,
algumas pessoas adotam o niilismo
lógico. Diferentemente de posições revisionistas que defendem sistemas
lógicos alternativos, o niilismo não propõe substituir uma lógica por outra,
mas questiona a própria existência de princípios logicamente válidos com
alcance universal. O núcleo da posição pode ser expresso por um argumento
simples, mas filosoficamente exigente, estruturado em duas premissas centrais e
uma conclusão. Gillian Russell
apresenta o seguinte argumento a favor do niilismo:
Premissa
1: Se existem leis da lógica, então elas devem ser completamente gerais, isto
é, devem preservar a verdade sob todas as interpretações possíveis dos termos
não lógicos, sem exceção.
Premissa
2: Nenhum princípio satisfaz essa exigência de completa generalidade, pois para
todo candidato a lei lógica existe alguma interpretação possível, ainda que
altamente não usual, sob a qual as premissas são verdadeiras e a conclusão é
falsa.
Conclusão:
Logo, não existem leis da lógica; a relação de consequência lógica, entendida
como preservação universal da verdade, é vazia.
De
acordo com a primeira premissa, para que um princípio conte como uma lei lógica, ele deve valer
independentemente de qualquer domínio específico, conteúdo empírico ou
interpretação particular. Na formulação interpretacional adotada por Russell,
uma regra é logicamente válida apenas se não existir nenhuma interpretação
possível de seus termos não lógicos que torne verdadeiras as premissas e falsa
a conclusão. Qualquer falha, ainda que em um caso altamente não usual, é
suficiente para desqualificar o princípio como lei da lógica. Princípios que
funcionam apenas “na maioria dos casos” ou apenas em contextos consistentes
podem ser heurísticas úteis, mas não satisfazem a exigência de generalidade
absoluta que define a noção tradicional de validade lógica.
A
segunda premissa afirma que, uma vez ampliado o espaço de interpretações
admissíveis, todos os princípios candidatos a leis da lógica admitem
contraexemplos. Leis clássicas, como o Princípio do Terceiro Excluído ou o
Princípio da Não Contradição, falham em contextos que admitem lacunas ou
excessos de valor de verdade, como ocorre em teorias que lidam com paradoxos
semânticos. Regras inferenciais fundamentais, como o modus ponens ou o silogismo disjuntivo, deixam de preservar a
verdade em sistemas dialeteístas, nos quais contradições verdadeiras são
permitidas.
Mais
significativamente, Russell argumenta que nem mesmo os princípios considerados
mais seguros escapam a esse destino. Considere o problema do predicado branco-isolado. Esse predicado é definido
assim: quando aparece sozinho, numa frase simples (por exemplo, “a neve é
branco-isolado”), ele significa exatamente o mesmo que “branco”; mas quando
aparece dentro de uma frase maior, como numa conjunção (“a neve é
branco-isolado e a grama é verde”), ele perde o significado e não se aplica a
nada, tornando a frase falsa. Com essa definição, é possível construir um
contraexemplo à regra lógica da introdução da conjunção: a frase “a neve é
branco-isolado” é verdadeira, e a frase “a grama é verde” também é verdadeira;
no entanto, quando juntamos as duas em uma conjunção, a primeira parte muda de
valor de verdade por causa do contexto em que aparece, fazendo com que a
conjunção inteira seja falsa.
O
ponto da filósofa Gillian Russell não é que esse tipo de predicado seja natural
ou comum, mas que ele é semanticamente possível e bem definido. Se a lógica
exige que suas leis sejam válidas sob todas as interpretações possíveis, então
basta a existência de predicados desse tipo, cujo significado depende de
estarem isolados ou embutidos em uma frase maior, para mostrar que nem mesmo
regras básicas, como “se P e Q são verdadeiros, então P e Q juntos são
verdadeiros”, valem de forma absolutamente universal.
. Dessas duas premissas, segue-se que
não há princípios que satisfaçam simultaneamente o critério de validade lógica e a exigência de generalidade absoluta. Em termos formais, não existe
nenhum par de premissas e conclusão tal que a verdade das primeiras garanta a
verdade da última sob todas as interpretações possíveis. A consequência lógica,
entendida como relação universal de preservação da verdade, é, portanto, vazia.
Uma
objeção imediata a esse argumento é que ele pareceria autodestrutivo: se não há leis da lógica, então o próprio argumento
niilista não pode ser logicamente válido. Russell responde a essa objeção
distinguindo entre validade estrita
e quasi-validade. O niilista concede
que seu argumento não é válido em sentido absoluto, já que uma interpretação
suficientemente artificial poderia torná-lo inválido. Contudo, sustenta que o
argumento é quasi-válido: ele preserva a verdade em contextos normais,
consistentes e semanticamente bem-comportados, precisamente aqueles nos quais o
raciocínio filosófico e científico ordinário ocorre.
O problema também pode ser ilustrado
com os chamados Contraexemplos de Modus Ponens onde é racional aceitar
as premissas como verdadeiras, mas a conclusão parece falsa. Um primeiro caso é
o Exemplo de Van McGee adaptado para
o caso do Brasil. Antes da eleição presidencial de 2022 no Brasil, Jair
Bolsonaro e Lula apareciam como os dois principais candidatos nas pesquisas,
com Lula liderando. Ciro Gomes aparecia atrás, como um terceiro candidato
relevante, mas com chances bem menores de vitória. Assim temos:
Premissa
1 (P1): Se um candidato de esquerda vencer a eleição, então, se não for Lula
quem vencer a eleição, será Ciro Gomes.
Premissa
2 (P2): Um candidato de esquerda vencerá a eleição.
Conclusão
(via Modus Ponens): Se não for Lula
quem vencer a eleição, será Ciro Gomes.
No
contexto pré-eleitoral as premissas 1 e 2 eram racionalmente aceitáveis ao
passo que a conclusão era racionalmente inaceitável. O exemplo de Van McGee
original trata da Eleição estadunidense de 1980: Se um Republicano vencer, e se
não for Reagan, será Anderson. Dado que Reagan (Republicano) vencerá, o modus ponens forçaria a conclusão de que
"se não for Reagan, será Anderson", o que é falso, pois o segundo
colocado era o democrata Jimmy Carter.
Outro
exemplo é o seguinte:
Premissa
1 (P1): Se essa criatura observada é um peixe, então, se ela tiver pulmões, é
um peixe-pulmonado.
Premissa
2 (P2): A criatura observada é um peixe.
Conclusão
(via Modus Ponens): Logo se essa
criatura tem pulmões, é um peixe-pulmonado.
A
conclusão é implausível porque peixes-pulmonados são raros; se a criatura tiver
pulmões, é muito mais provável que ela seja um mamífero marinho, como um
golfinho, que apenas se parece com um peixe
O próximo contraexemplo é como se
segue:
Premissa
1: Se Ryan tivesse bronquite, então, se ele fosse do genótipo A, ele
apresentaria os sintomas de bronquite.
Premissa
2: Ryan tem bronquite (confirmado por exames).
Conclusão:
Então se Ryan fosse do genótipo A, ele apresentaria sintomas de bronquite.
Rejeita-se
a conclusão porque pessoas do genótipo A são quase imunes à bronquite; se ele
fosse desse genótipo, provavelmente nem teria contraído a doença e não estaria
mostrando sintoma algum.
Do
mesmo modo, há também os chamados Contraexemplos
de Modus Tollens. O primeiro é o chamado Exemplo de Seth Yalchine, que é como se
segue: Em uma urna com mármores de cores e tamanhos diferentes, pode ser
verdade que "se o mármore é grande, provavelmente é vermelho", de
modo que temos:
Premissa
1 (P1): Se o mármore é grande, então ele é provavelmente vermelho.
Premissa
2 (P2): O mármore não é provavelmente vermelho (considerando a distribuição na
urna).
Conclusão
(via Modus Tollens): O mármore não é
grande.
Considere
também o seguinte caso aplicado a deveres morais:
Premissa
1 (P1): Se você vai matá‑lo, então você deve matá‑lo gentilmente.
Premissa
2 (P2): Não é o caso que você deva matá‑lo gentilmente.
Conclusão
(via Modus Tollens): Logo, você não
vai matá‑lo.
É
perfeitamente possível que alguém faça algo de modo errado. O fato de que
alguém não deve agir de certa maneira não implica que essa pessoa não agirá
assim.
III. PARADOXOS DA IMPLICAÇÃO MATERIAL
Os Paradoxos da Implicação Material surgem do conflito entre a
definição formal do condicional na lógica proposicional e nossa intuição sobre
como a linguagem natural funciona. Na lógica clássica, o condicional material (P→Q) é funcional
de verdade, ou seja, seu valor depende apenas da verdade ou falsidade das
partes que o compõem, sem considerar qualquer relação causal ou semântica entre
elas. Para a lógica, as seguintes implicações materiais são todas verdadeiras:
“Se a Lua é feita de queijo, então 2 + 2 = 5”; "Se o céu é azul, então Lana
del Rey é uma cantora”. A lógica material permite que frases absurdas sejam
classificadas como logicamente verdadeiras
O filósofo Paul Grice tentou resolver esse problema distinguindo o que uma
frase afirma literalmente do que ela sugere (implicatura conversacional), Para Grice, essas frases paradoxais
são literalmente verdadeiras, mas são inapropriadas de se dizer. Frank Jackson oferece uma explicação
diferente baseada na utilidade do argumento. Ele argumenta que um condicional
só é útil se for robusto, ou seja, se você continuaria acreditando no
consequente mesmo se descobrisse que o antecedente é verdadeiro. Portanto,
esses "paradoxos" são tecnicamente verdadeiros, mas inúteis para o raciocínio
prático (como o Modus Ponens), pois
não permitem derivar novas informações de forma confiável.
Mesmo com essas soluções, permanecem
problemas importantes para qualquer análise material. Entre esses problemas
estão: (i) Problema dos Condicionais
embutidos: Frases complexas, como “Ou (Se A então B) ou (Se B então A)”,
são sempre verdadeiras materialmente, mas intuitivamente parecem falsas em
muitos contextos da linguagem natural, como
"Ou (se eu estiver certo,
você está certo) ou (se você estiver certo, eu estou certo)"; (ii) Problema das Diferença Estruturais: Se o "se" fosse apenas uma
implicatura convencional (como Jackson defende), deveríamos ser capazes de
removê-lo e manter a afirmação lógica central (o condicional material), mas o
“se… então” não pode ser removido sem alterar completamente a afirmação,
sugerindo que “se” não é apenas uma implicatura; (iii) Problema das Implicações Lógicas Problemáticas: Alguns argumentos válidos na lógica material,
como “Não é o caso que, se existe um Deus, então as orações são atendidas.
Logo, existe um Deus”, são vistos como claramente inválidos em inglês natural.
IV. PARADOXO DE CURRY
O
Paradoxo de Curry é um problema
lógico que mostra como sentenças autorreferenciais, combinadas com regras
básicas de inferência, podem levar à conclusão de qualquer afirmação
arbitrária, por mais absurda que seja, como “a lua é feita de queijo”.
Diferente do paradoxo do Mentiroso, o de Curry não depende de negação, mas da
combinação de condicionais e autorreferência.
Na
versão informal, considere a seguinte frase, chamada Sentença (1): “Se a Sentença
(1) é verdadeira, então a lua é feita de queijo”. Se assumirmos que a
sentença é verdadeira, então seu antecedente (“a Sentença (1) é verdadeira”)
também é verdadeiro. Aplicando o Modus
Ponens, concluímos que a lua é feita de queijo. Por outro lado, se
assumirmos que a sentença é falsa, o antecedente que afirma sua verdade seria
falso, mas, segundo a lógica material, qualquer condicional com antecedente
falso é automaticamente verdadeiro. Assim, mesmo assumindo falsidade, acabamos
provando que a sentença é verdadeira, voltando ao primeiro cenário e novamente
concluindo que a lua é feita de queijo. Dessa forma, qualquer tentativa de
atribuir “verdadeiro” ou “falso” leva à aceitação da conclusão absurda.
Formalmente,
o paradoxo pode ser derivado usando o Esquema-T
(uma sentença é verdadeira se, e somente se, aquilo que ela mesma afirma for o
caso) e regras básicas de inferência. Define-se uma sentença 𝐴 equivalente a “Se
A, então B”, onde 𝐵
é qualquer proposição. O raciocínio segue: (i)
aceita-se que “Se A, então A” (𝐴→𝐴); (ii) substitui-se o segundo 𝐴 pela sentença
inteira, obtendo “Se A, então (Se A, então B)”; (iii) aplica-se a regra de contração, que permite simplificar
múltiplos antecedentes, inferindo “Se A, então B”; (iv) como a sentença “Se A, então B” é verdadeira e é equivalente a
𝐴, conclui-se que 𝐴 é verdadeiro; (v) aplicando o Modus Ponens a “Se A, então B” com 𝐴, derivamos 𝐵, ou seja, qualquer afirmação arbitrária.
O
paradoxo evidencia problemas na forma como a lógica padrão lida com
autorreferência e com regras como a contração, e mostra que, sob certas
combinações de regras e autorreferência, podemos provar qualquer proposição,
independentemente de sua plausibilidade.
V. PARADOXO DE SÃO PETERSBURGO
Uma
maneira de ilustrar a distância entre nossas intuições cotidianas e a lógica é
o Paradoxo de São Petersburgo, um
famoso problema da teoria das probabilidades que evidencia um conflito entre o
valor esperado, a média matemática dos resultados, e a intuição racional sobre
decisões humanas. O jogo consiste em lançar uma moeda justa repetidamente até
que apareça cara, sendo que o prêmio depende de quantos lançamentos foram
necessários para sair a primeira cara. Se a cara aparecer no primeiro
lançamento, o jogador ganha 2 reais e o jogo termina. Se sair coroa no primeiro
lançamento e cara no segundo, o prêmio dobra para 4 reais. Caso seja necessário
um terceiro lançamento (coroa, coroa, cara), o prêmio dobra novamente para 8
reais. De forma geral, o prêmio é de 2n
reais, sendo n o número de lançamentos até sair a primeira cara.
Para
determinar um valor "justo" para participar, utiliza-se o valor esperado: a soma das
probabilidades de cada resultado multiplicada pelo prêmio correspondente. No jogo
de São Petersburgo, o cálculo é o seguinte: no primeiro lançamento, a
probabilidade de sair cara é 1/2, multiplicada pelo prêmio de 2 reais,
resultando em 1 real. No segundo lançamento, a probabilidade de sair cara é
1/4, multiplicada pelo prêmio de 4 reais, também resultando em 1 real. No
terceiro lançamento, a probabilidade é 1/8 e o prêmio 8 reais, novamente
somando 1 real. Este padrão se mantém para todos os 𝑛 lançamentos, de
modo que cada termo contribui com 1 real para o valor esperado. Como o jogo
pode teoricamente continuar indefinidamente, a soma de todos os produtos
diverge para o infinito, indicando que o valor esperado do jogo é infinito.
Segundo a teoria clássica da decisão, uma pessoa racional deveria estar
disposta a pagar qualquer quantia finita para jogar, mesmo milhões de reais.
O
paradoxo surge porque, na prática, ninguém pagaria grandes quantias para
participar. A maioria das pessoas não pagaria mais do que alguns reais ou
algumas dezenas de reais, revelando uma grande discrepância entre a
racionalidade matemática, que sugere pagar qualquer quantia, e a racionalidade
humana, que percebe o risco e prefere pagar pouco.
Diversas
soluções foram propostas para explicar essa diferença. A teoria da utilidade marginal decrescente
distingue entre a quantidade de dinheiro e seu valor subjetivo: o valor de uma
unidade adicional diminui à medida que se possui mais dinheiro. Com isso, o
valor esperado em termos de utilidade torna-se finito, geralmente em torno de
poucos reais. Outra abordagem considera limites financeiros reais: no mundo
concreto, ninguém tem dinheiro infinito, e se o organizador do jogo tem um teto
para pagar o prêmio, o valor esperado torna-se finito e mais baixo. Além disso,
a aversão ao risco explica que as pessoas preferem ganhos certos a apostas
incertas; pagar muito por uma chance mínima de ganhar muito é percebido como
imprudente. Por fim, alguns teóricos defendem que, de fato, um ser perfeitamente racional deveria
estar disposto a pagar qualquer quantia, e a hesitação humana apenas reflete
limitações cognitivas.
Em
analogia, o paradoxo é como receber uma Caixa
Mágica com 50% de chance de ganhar 2 reais, 25% de chance de ganhar 4 reais
e uma chance minúscula de ganhar bilhões. Matemática e teoricamente, a caixa
vale uma fortuna por causa dessas chances extremamente pequenas de prêmio
gigantesco. No entanto, considerando que a maior parte das vezes você receberá
apenas alguns reais, percebe-se que o valor médio não importa se você quase
certamente sairá com pouco.
VI. FALÁCIA DO ESCOPO MODAL
A
falácia do escopo modal é um erro
lógico que ocorre quando há confusão sobre quais partes de uma frase estão
realmente sob a influência de um operador modal, como
"necessariamente", "possivelmente" ou "deve".
Apesar de muitas vezes passar despercebida, ela é extremamente comum na
filosofia acadêmica, pois a linguagem natural tende a ser ambígua na expressão
de modais.
O
cerne da falácia está na distinção entre escopo amplo e escopo restrito. No escopo amplo, o operador modal modifica
a condicional inteira; por exemplo, "necessariamente, se P então Q"
(□(P→Q)), significando que a relação entre P e Q é necessariamente verdadeira.
No escopo restrito, o operador
modifica apenas o consequente da condicional, como em "se P então
necessariamente Q" (P→□Q), implicando que sempre que P ocorre, Q é
necessário. A diferença é sutil, mas crucial: confundir essas leituras leva a
conclusões inválidas, mesmo que a frase pareça gramaticalmente correta.
Um
exemplo clássico aparece no argumento
para o necessarianismo, a crença de que tudo o que é verdadeiro é
necessariamente verdadeiro. A frase “Se P é verdadeiro, então P não pode ser
falso” pode ser interpretada de duas maneiras. No escopo amplo, ela
simplesmente afirma a lei da não-contradição: não é possível que P seja
verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Nesse caso, a frase é verdadeira, mas não demonstra
que P seja necessário, o argumento falha. No escopo restrito, a frase afirmaria
que a verdade de P implica que P é necessariamente verdadeiro, mas aí a premissa
se torna questionável ou assume o que deveria provar, caindo em petição de
princípio.
Essa
falácia não se limita à necessidade lógica. Em modalidade deôntica, por exemplo, a frase “É obrigatório que a
polícia intervenha no assalto a Frank” pode ser mal interpretada. Se
atribuirmos escopo amplo à obrigação, poderia parecer que o próprio assalto é
“obrigatório”, o que é absurdo. O correto é escopo restrito: o fato do assalto
ocorrer é contingente, e a obrigação recai apenas sobre a intervenção policial.
Em infalibilismo epistêmico, a
falácia surge quando se interpreta erroneamente “se você sabe que P, você não
pode estar enganado” como tornando P necessariamente verdadeiro (escopo
restrito), quando o correto é entender que é impossível saber P e estar enganado
ao mesmo tempo, embora P ainda possa ser contingente (escopo amplo).
VII. OBJEÇÕES DE QUINE À LÓGICA MODAL
W.V.O. Quine foi
o crítico mais proeminente da lógica modal, argumentando que todo o
empreendimento era mal orientado e carecia de clareza teórica. Suas objeções
fundamentais dividem-se em três pilares principais: (i) a confusão entre uso e menção, (ii) a violação da extensionalidade e; (iii) o problema da opacidade referencial. De acordo
com ele, a lógica modal foi “concebida no
pecado”, o que é uma acusação de confusão
categorial profunda, enraizada numa má distinção entre uso e menção, bem
como entre linguagem-objeto e metalinguagem. Para Quine, os fundadores da
lógica modal moderna, em especial C. I.
Lewis, teriam cometido um erro filosófico e técnico ao tentar internalizar,
na própria linguagem formal, conceitos que pertencem propriamente ao nível
metalinguístico.
A distinção entre uso e menção é central
nesse diagnóstico. Quando usamos uma expressão, empregamo-la para falar do
objeto ao qual ela se refere; quando a mencionamos, falamos da própria
expressão enquanto entidade linguística. Em lógica, essa diferença é crucial: o
condicional “se P, então Q” é um operador da
linguagem-objeto que conecta sentenças pelo seu uso, ao passo que a noção
de que “P implica Q” é uma afirmação metalinguística que menciona essas
sentenças e descreve uma relação entre elas. Confundir esses dois planos
equivale a tratar propriedades ou relações de enunciados, enquanto fórmulas,
como se fossem componentes internos do próprio cálculo proposicional.
Essa confusão se agrava quando se
negligencia a distinção entre
linguagem-objeto e metalinguagem. A
linguagem-objeto é o sistema formal que está sendo estudado, composto por
variáveis proposicionais e conectivos; a metalinguagem
é o idioma no qual falamos sobre esse sistema, formulando afirmações sobre
validade, verdade lógica e implicação. Dizer “P → Q” é formular uma expressão
da linguagem-objeto; dizer “P implica Q” é fazer uma afirmação na metalinguagem
acerca da relação lógica entre duas fórmulas. Para Quine, essa distinção é
metodologicamente indispensável e não pode ser apagada sem gerar obscuridade
conceitual.
O “pecado” atribuído por Quine a
C. I. Lewis surge justamente quando este tenta corrigir as aparentes
inadequações do condicional material. Incomodado com o fato de que, no cálculo
clássico, uma proposição falsa implica qualquer outra, Lewis buscou capturar
uma noção mais forte e intuitiva de implicação, introduzindo o condicional estrito, definido como
“necessariamente, se P então Q”, isto é, □(P → Q). A crítica de Quine é que, ao
fazer isso, Lewis tentou transformar a implicação, uma relação metalinguística
entre sentenças, em algo expressável por meio de um operador dentro da
linguagem-objeto. O operador modal de
necessidade é assim convocado para desempenhar um papel explicativo que não
lhe pertence, produzindo um híbrido conceitual no qual níveis distintos de
análise são indevidamente fundidos.
Do ponto de vista quineano, nada
impede que se aceite plenamente o condicional material como conectivo da
linguagem-objeto e, ao mesmo tempo, se rejeite qualquer identificação ingênua
entre esse conectivo e a noção metalinguística de implicação. A tarefa de
explicar quando uma sentença implica outra deve permanecer no plano da
metalinguagem, por meio de definições de validade e consequência lógica, e não
ser artificialmente internalizada no cálculo por meio de operadores modais. É
precisamente essa tentativa de “escrever o relatório dentro do tubo de ensaio”,
de confundir a análise lógica com o objeto analisado, que, para Quine, marca o
nascimento da lógica modal como um empreendimento metodologicamente viciado
desde a sua concepção.
A
segunda crítica diz respeito à violação da extensionalidade. O ponto
de partida da crítica é a distinção
entre extensão e intensão. A extensão
de um termo é o conjunto de objetos aos quais ele se aplica; no caso de
sentenças, sua extensão é simplesmente o seu valor de verdade. Já a intensão corresponde ao significado, ao
conteúdo conceitual ou às propriedades associadas a um termo. Quine ilustra
essa diferença com o conhecido exemplo biológico de “cordado” (criatura com
coração) e “renado” (criatura com rins). Embora esses termos tenham a mesma
extensão, pelo menos no mundo efetivo, onde todo animal com coração tem rins e
vice-versa, eles claramente não têm a mesma intensão, pois descrevem os
organismos a partir de características distintas. Para Quine, a lógica deveria
ser cega a essas diferenças intensionalistas e operar apenas com extensões.
É
nesse contexto que entra o princípio da
substitutividade. Um sistema é extensional quando a verdade de uma sentença
composta depende exclusivamente do valor de verdade de suas partes. Em tais
sistemas, vale o princípio segundo o qual expressões com a mesma extensão podem
ser substituídas umas pelas outras salva
veritate, isto é, sem alteração do valor de verdade da sentença total. Esse
princípio é fundamental para a transparência
lógica: se duas expressões têm o mesmo valor de verdade, nada logicamente
relevante deveria mudar ao trocá-las.
A
lógica modal, contudo, falha exatamente nesse teste. Ao introduzir operadores
como “necessariamente” e “possivelmente”, ela cria contextos nos quais a
substituição de sentenças extensionais equivalentes altera o valor de verdade
do todo. O exemplo clássico é simples e revelador. A frase “Necessariamente 2 +
2 = 4” é verdadeira. A sentença interna “2 + 2 = 4” é verdadeira, e o mesmo
vale para “Lana del Rey é uma cantora”. Ambas têm a mesma extensão: são
verdadeiras. Em um sistema extensional, isso bastaria para garantir a
substituição. No entanto, ao trocar uma pela outra, obtemos “Necessariamente Lana
del Rey é uma cantora”, que é claramente falsa, pois Lana del Rey poderia ter
seguido outra profissão. O operador modal, portanto, rompe a ligação direta
entre o valor de verdade das partes e o valor de verdade do todo.
Para
Quine, esse resultado é filosoficamente inaceitável. Ele mostra que, em
contextos modais, a verdade de uma sentença passa a depender não apenas dos
fatos, mas da forma como esses fatos são descritos. A lógica deixa de ser
puramente extensional e passa a operar com intensões, significados, essências,
propriedades necessárias, que, para Quine, são conceitualmente nebulosas e
cientificamente suspeitas. Uma teoria lógica que distingue entre descrições
coextensionais, tratando-as de maneira diferente, compromete a objetividade que
a lógica deveria garantir.
Essa
rejeição do intensionalismo é
motivada por duas razões convergentes, são elas: (i) ideal de clareza e simplicidade: extensões são entidades bem
definidas, enquanto intensões carecem de critérios precisos de individuação (ii) preocupação epistemológica e
científica: se algo é verdadeiro sobre um objeto, isso deveria permanecer
verdadeiro sob qualquer descrição adequada desse objeto; se a verdade varia
conforme o vocabulário empregado, então a teoria não captou o que é
objetivamente o caso. Assim, Quine associa a lógica modal ao problema geral da sinonímia. Falar em
“mesmo significado” ou “mesma propriedade necessária” pressupõe distinções que,
segundo ele, não dispomos de meios não circulares para estabelecer de forma
rigorosa.
Por
fim, o problema da opacidade referencial, conecta-se diretamente à crítica de W. V. O. Quine ao uso de operadores
modais. O princípio da substitutividade
de idênticos, ou indiscernibilidade
de idênticos, sustenta que, se dois termos se referem ao mesmo objeto,
qualquer sentença verdadeira que contenha um deles deve permanecer verdadeira
se fizermos a substituição pelo outro. Em contextos puramente extensionalistas,
como na lógica clássica, isso funciona sem problemas: se Bob Dylan é Robert
Zimmerman, qualquer verdade sobre Bob Dylan continua verdadeira ao substituir
seu nome pelo de Robert Zimmerman.
A
opacidade referencial surge quando a substitutividade falha, ou seja, quando a
verdade da sentença depende não apenas do objeto referenciado, mas de como ele
é descrito ou nomeado. Três contextos são particularmente críticos:
(i) Citações:
Ao falar de palavras ou nomes, e não dos objetos que eles denotam, a
substituição deixa de ser válida. Por exemplo, a frase “‘Bob Dylan’ contém oito
letras” é verdadeira; se trocarmos para “‘Robert Zimmerman’ contém oito
letras”, a sentença torna-se falsa. Aqui, a verdade depende da forma do nome,
não do homem que ele denota.
(ii) Atitudes
Proposicionais: Quando se fala sobre o conteúdo da crença
de alguém, a substituição também pode falhar. Se Frank acredita que Bob Dylan é
um músico famoso, mas não sabe que Bob Dylan é Robert Zimmerman, então a
sentença “Frank acredita que Robert Zimmerman é um músico famoso” pode ser
falsa. O valor de verdade depende da perspectiva de Frank, não apenas do fato
objetivo.
(iii) Operadores Modais:
Contextos que envolvem necessidade ou possibilidade introduzem opacidade
semelhante. Um exemplo clássico de Quine envolve o número de planetas: o fato
de que o número de planetas é oito é contingente; substituir “8” por “o número
de planetas” em “necessariamente 8 > 5” gera a sentença “necessariamente, o
número de planetas > 5”, que é falsa. Aqui, o operador modal cria um
contexto em que a substituição de termos idênticos altera o valor de verdade da
sentença.
Uma
maneira de compreender essa opacidade é distinguindo de dicto e de
re. Em leituras de dicto, a necessidade se aplica à
descrição ou expressão: “necessariamente, o número de planetas > 5” é falso
porque a descrição poderia ter se referido a outro contingente número de
planetas. Em leituras de re, a necessidade se aplica ao
objeto em si: o número 8, considerado isoladamente, é necessariamente maior que
5.
Em
termos intuitivos, a opacidade
referencial funciona como um vidro fosco: ele permite que você veja a
pessoa sob uma descrição específica (“diretor da empresa”), mas impede que você
a reconheça simplesmente como “a mesma pessoa” sob outra descrição (“vizinho de
porta”). No contexto da lógica modal, essa característica torna a
substitutividade de idênticos instável, reforçando a objeção de Quine de que a
introdução de operadores modais compromete a clareza extensional e a
objetividade que a lógica deveria preservar.
VIII. REALISMO MODAL
O realismo modal é uma teoria filosófica proposta por David Lewis, que defende que nosso
discurso sobre "mundos possíveis" deve ser levado literalmente.
Segundo Lewis, esses mundos não são meras construções mentais ou ficções úteis;
eles existem de fato como entidades concretas, com o mesmo tipo de existência
que o nosso mundo "atual". O ponto central da teoria é a existência
concreta de todos os mundos possíveis. Cada mundo contém objetos físicos, montanhas,
pessoas, carros, animais, que existem de forma tão concreta quanto os objetos de
nosso próprio mundo. Não se trata de mundos abstratos ou imaginários, mas de
realidades completas e independentes.
A
teoria de Lewis se apoia em cinco pilares fundamentais: (i) existência literal: os mundos possíveis existem literalmente,
do mesmo tipo que o nosso; (ii) estado
maximal: os mundos são objetos
máximos conectados, consistindo de tudo que é espaço-temporalmente relacionado
entre si; (iii) isolamento
espaço-temporal: mundos distintos não se relacionam entre si, não há
sobreposição ou conexão física; (iv) princípio
da plenitude: estabelece que qualquer forma logicamente possível de um
mundo corresponde a algum mundo existente; (v)
atualidade indexical: o termo “atual” não indica um status especial, apenas
se refere ao mundo em que o falante se encontra; para os habitantes de outro
mundo, o seu próprio mundo é "atual".
É
importante distinguir o realismo modal de interpretações de “muitos mundos” ou “multiversos”
da mecânica quântica. Na física,
mundos “ramificam” e mantêm conexões espaço-temporais com eventos originais. Em
Lewis, os mundos são completamente desconectados, cobrindo todas as
possibilidades lógicas e não dependentes de fenômenos físicos. Uma boa metáfora
para o realismo modal é imaginar o universo não como uma única casa, mas como
um bairro infinito de casas. Cada casa é totalmente fechada, sem portas ou
janelas conectando-a às outras, e cada uma é decorada de forma diferente,
representando todas as possibilidades lógicas. Dizer “Minha casa poderia ter
sido azul” não significa mudar a casa atual, mas apontar para uma casa muito
semelhante algumas ruas adiante que já é azul.
Lewis
defende sua teoria usando um argumento
de indispensabilidade: devemos acreditar em mundos possíveis porque eles
são indispensáveis às nossas melhores teorias sobre o mundo, assim como números
são indispensáveis à matemática. Entre os benefícios dessa abordagem estão a
redução da modalidade, explicar fatos de possibilidade e necessidade em termos
de fatos não modais, e a análise de propriedades como conjuntos de objetos
através de todos os mundos possíveis, como o conjunto de todos os burros
falantes em mundos onde eles existem.
O
realismo modal enfrenta, contudo, algumas objeções:
(1) Objeção do Olhar de
Incredulidade: A primeira objeção é o chamado “olhar de
incredulidade”, que expressa a reação intuitiva de que a teoria é absurda por
postular a existência física de infinitos mundos concretos. Além disso, ela
parece violar a Navalha de Occam, princípio metodológico que recomenda não
multiplicar entidades sem necessidade. Embora Lewis tenha tentado se defender
distinguindo parcimônia quantitativa
(quantidade de entidades) de parcimônia
qualitativa (tipos de entidades), críticos apontam que mundos contendo
propriedades radicalmente diferentes, como leis físicas alienígenas ou
entidades sobrenaturais, introduzem novos tipos de existência e, portanto,
comprometem a simplicidade e economia teórica da proposta.
(2) Problema da Teoria
das Contrapartidas: A Teoria das Contrapartidas de Lewis
afirma que indivíduos existem em apenas um mundo, e que afirmações modais sobre
eles referem-se a contrapartes em outros mundos. Críticos, como Saul Kripke,
argumentam que isso falha em capturar a verdadeira modalidade de indivíduos
específicos, pois ao dizer “Hitler poderia ter vencido a guerra” estamos
interessados no que poderia ter ocorrido com aquele indivíduo concreto, não com
algum outro semelhante. A objeção enfatiza a indiferença metafísica da teoria:
o que uma contraparte faz em outro mundo não fornece informações sobre as
possibilidades reais do indivíduo original, tornando as afirmações modais pouco
perspicazes do ponto de vista pessoal ou histórico.
(3) Problema do
Isolamento Causal: Como Lewis define mundos possíveis como
completamente espaço-temporalmente isolados, não há qualquer conexão causal
entre eles e o nosso mundo. Isso levanta a objeção epistemológica de que, se
não podemos interagir causalmente com esses mundos, parece impossível termos qualquer
conhecimento confiável sobre sua existência ou propriedades. Embora Lewis
responda que o conhecimento de verdades necessárias, como as matemáticas ou
lógicas, não depende de contato causal, muitos críticos consideram que, na
prática, a teoria se torna epistemicamente inacessível e depende de um salto de
fé conceitual para ser aceita.
(4) Objeção da Inadequação
às Possibilidades Lógicas: Outra objeção é que o realismo
modal, ao definir mundos por conexões espaço-temporais completas, não acomoda
todas as possibilidades logicamente concebíveis. Por exemplo, mundos não-espaço-temporais
ou universos-ilha (espaços-tempos desconectados dentro de um mesmo mundo) não
se encaixam na definição de Lewis. Além disso, a teoria implica que sempre
existe algum mundo, mesmo que vazio, tornando impossível conceber a
inexistência absoluta de tudo. Críticos consideram que essa restrição
compromete a capacidade do realismo modal de representar plenamente a gama de
possibilidades lógicas.
(5) Objeção da Paralisia
Moral: Uma objeção mais filosófica é a chamada paralisia
moral. Se todos os mundos possíveis existem, então para cada ação boa realizada
por nós em nosso mundo, há uma contraparte em outro mundo realizando a ação
oposta. Isso poderia sugerir que nossas escolhas morais não afetam o saldo
global de bem e mal entre todos os mundos possíveis, tornando nossas decisões
cosmicamente irrelevantes.
IX. DIALETEÍSMO
O dialeteísmo é a posição filosófica que sustenta a existência de
contradições verdadeiras, defendida principalmente por Graham Priest. Historicamente, o Princípio da Não-Contradição (PNC) foi considerado uma lei
fundamental do pensamento, afirmando que uma proposição não pode ser
simultaneamente verdadeira e falsa. No entanto, a lógica evolui, e sistemas
concorrentes mostram que certas situações podem ser intrinsecamente
contraditórias. O dialeteísmo surge nesse contexto como uma resposta à
limitação da lógica clássica em lidar com paradoxos, como o do mentiroso, que
parecem violar o PNC de forma persistente e significativa.
É nesse contexto que surge a Lógica Paraconsistente. A lógica
paraconsistente simples, exemplificada pelo sistema Lógica do Paradoxo (LP) de Graham
Priest, é um formalismo projetado para lidar com contradições sem permitir
que elas destruam a validade do raciocínio. Diferentemente da lógica clássica,
na qual uma contradição permite derivar qualquer conclusão (ex falso quodlibet), a LP tolera
inconsistências, impedindo que uma contradição isolada cause explosão lógica.
O
primeiro ponto crucial da LP é a rejeição
do princípio da explosão. Na lógica clássica, se temos uma sentença A e sua
negação ¬A, qualquer outra proposição B pode ser inferida, tornando o sistema
“explosivo”. A LP evita isso, garantindo que contradições específicas não
contaminem todo o sistema e que apenas as proposições envolvidas diretamente
sejam afetadas.
Outro
aspecto central é a introdução de três
valores de verdade. Além do Verdadeiro (1) e Falso (0), a LP define o valor
# (Ambos), representando sentenças simultaneamente verdadeiras e falsas. A
negação de uma proposição com valor # permanece #, permitindo que a contradição
coexista sem invalidar o sistema. Isso cria uma maneira formal de lidar com
paradoxos, como o paradoxo do mentiroso, sem que o raciocínio colapse.
Para
avaliar a validade de argumentos, a LP utiliza valores designados e a consequência semântica. Diferentemente da
lógica clássica, em que apenas o valor verdadeiro é designado, na LP tanto 1
(Verdadeiro) quanto # (Ambos) são designados. Um argumento é válido se, sempre
que as premissas possuem valores designados, a conclusão também os possui. Um
argumento só se torna inválido se premissas designadas levarem a uma conclusão
estritamente falsa (0), protegendo o sistema contra inferências explosivas.
Como
consequência, certas inferências clássicas deixam de ser universalmente
válidas. Por exemplo, no Silogismo Disjuntivo (P ∨ Q, ¬P ⊢
Q), se P for # e Q for 0, as premissas são designadas, mas a conclusão é falsa,
tornando a regra inválida. De forma similar, no Modus Ponens (Se P então Q, P ⊢
Q), se o antecedente P for # e o consequente Q for 0, o argumento falha. Essas
alterações preservam a consistência controlada e evitam a explosão do sistema.
A
LP possui aplicações práticas significativas. Na ciência da computação, auxilia
no tratamento de bancos de dados corrompidos ou inconsistentes. Na física,
ajuda a modelar raciocínios envolvendo teorias aparentemente incompatíveis,
como relatividade e mecânica quântica. Além disso, reflete o funcionamento real
da racionalidade humana, já que as pessoas frequentemente mantêm crenças
inconsistentes sem aceitar tudo, tornando a LP um modelo mais fiel da cognição
do que a lógica clássica.
Um exemplo clássico que motiva o
dialeteísmo é o Paradoxo do Mentiroso.
O Paradoxo do Mentiroso é uma sentença
autorreferencial clássica, expressa por “Esta sentença é falsa”, que gera
um ciclo contraditório ao tentarmos atribuir-lhe valor de verdade. Se
consideramos a sentença verdadeira, então, como ela afirma ser falsa, ela deve
ser falsa; se a consideramos falsa, então ela descreve corretamente a si mesma,
tornando-se verdadeira. Esse loop cria uma contradição direta, onde a
proposição parece ser simultaneamente verdadeira e falsa, desafiando o
princípio da não-contradição da lógica clássica.
Os dialeteístas, como Graham Priest,
encaram essa contradição como legítima, definindo-a como uma dialetheia: uma proposição que é ao
mesmo tempo verdadeira e falsa. Para eles, o paradoxo não indica erro no
raciocínio, mas revela limites fundamentais da lógica clássica, mostrando que
certos enunciados autorreferenciais devem ser tratados como verdades
contraditórias.
Existem
quatro tentativas de solução clássicas que foram propostas para evitar a
contradição, são elas:
(1) Teoria da Lacunas do Valor
de Verdade: Essa abordagem propõe que nem toda sentença precisa
ser verdadeira ou falsa, rejeitando o princípio da bivalência. Assim, sentenças
como "Esta sentença é falsa" seriam lacunas, desprovidas de valor de
verdade. No entanto, surge o problema da vingança do mentiroso: sentenças como
"Esta sentença não é verdadeira" criam novamente uma contradição,
pois assumir que não têm valor de verdade implica que o que afirmam é
verdadeiro, reiniciando o paradoxo.
(2) Teoria da
Fundamentação (Saul Kripke): Kripke introduz o
conceito de fundamentação: uma sentença é fundamentada se seu valor de verdade
pode ser rastreado até fatos básicos do mundo. O Mentiroso é não-fundamentado, pois
ao tentar determinar seu valor de verdade entra-se em um loop infinito de autorreferência sem conexão com fatos externos.
Por isso, ele é considerado sem valor de verdade, evitando a contradição.
(3) Teoria da Distinção
entre Linguagem-Objeto e Metalinguagem (Alfred Tarski): Tarski
argumenta que o paradoxo surge do caráter semântico fechado das línguas
naturais, permitindo que sentenças falem sobre sua própria verdade. Ele propõe
uma hierarquia de linguagens, separando linguagem-objeto (fatos do mundo) e
metalinguagem (verdade sobre sentenças da linguagem-objeto). O Mentiroso,
colocado na metalinguagem, refere-se a algo inexistente na linguagem-objeto,
sendo assim simplesmente falso, sem gerar paradoxo.
(4) Teoria da Asserção
Implícita (Arthur Prior): Prior sugere que toda sentença
afirma implicitamente sua própria verdade. Aplicado ao Mentiroso, a sentença se
torna: "Esta sentença é falsa E esta sentença é verdadeira". Como a
contradição é explícita, a sentença é falsa de forma direta, evitando a oscilação
paradoxal. Essa abordagem, contudo, não resolve paradoxos cuja contradição
dependa de fatos externos ao enunciado.
O dialeteísmo enfrenta, contudo,
algumas objeções metodológicas, são elas:
(1) Objeção da Impossibilidade Psicológica da
Crença em Contradições:
Uma das críticas mais comuns afirma que é psicologicamente impossível
acreditar em contradições. A objeção distingue entre a crença em contradições
de forma geral e a crença em contradições específicas, como o Paradoxo do
Mentiroso. Os críticos sustentam que, se ninguém pode realmente acreditar em
uma contradição, não haveria necessidade de considerar os argumentos
dialeteístas. Por sua vez, os defensores respondem que seres humanos
frequentemente mantêm crenças que, quando examinadas, revelam inconsistências,
mostrando que a impossibilidade psicológica não é absoluta.
(2) Objeção da
Racionalidade: Mesmo que seja psicologicamente possível
acreditar em contradições, a crítica metodológica sustenta que elas não podem
ser mantidas racionalmente, já que a lógica clássica enxerga a consistência
como um requisito absoluto da racionalidade. Os dialeteístas contestam essa
ideia usando o Paradoxo do Prefácio:
imagine um autor que acredita que cada afirmação individual de seu livro é
verdadeira, mas admite no prefácio que, devido à extensão e complexidade do
texto, provavelmente há pelo menos um erro. Assim, ele mantém simultaneamente a
crença de que todas as sentenças são verdadeiras e que ao menos uma é falsa,
gerando um conjunto de crenças inconsistente, mas que ainda é racional. Esse
paradoxo ilustra que a racionalidade pode tolerar contradições em situações
complexas, especialmente quando a exigência de consistência absoluta resultaria
em soluções artificiais ou excessivamente complicadas. Em outras palavras,
aceitar certas contradições pode ser, em alguns casos, uma escolha mais
racional do que forçar a coerência a todo custo.
(3) Objeção da Negação
como Cancelamento: Baseando-se em filósofos como P.F.
Strawson, esta objeção sustenta que uma contradição não possui conteúdo real,
sendo impossível de ser objeto de crença. Segundo essa visão, afirmar A e ¬A equivaleria
a escrever algo e logo apagá-lo, resultando em vazio intelectual. O dialeteísmo
rebate que contradições produzem informação em excesso, não falta de conteúdo,
e que raciocinar com informações inconsistentes é algo que ocorre na prática em
ciência e computação.
(4) Objeção da Mudança de
Assunto: Outra objeção metodológica alega que, ao aceitar A e ¬A,
o dialeteísta não estaria realmente revisando a lógica, mas apenas mudando o
significado dos conectivos lógicos, como "não" ou "e".
Críticos sugerem que essa redefinição equivale a mudar de tópico em vez de
desafiar a lógica fundamental, questionando se o dialeteísmo realmente cumpre
seu objetivo de tratar contradições verdadeiras ou se apenas manipula a
linguagem para contornar problemas.
(5) Objeção do Valor Pragmático: Finalmente, existe uma objeção de caráter pragmático: se o dialeteísmo fosse verdadeiro, seus próprios argumentos poderiam ser simultaneamente falsos, minando a força da teoria. Apesar disso, os defensores destacam que a posição ainda é valiosa metodologicamente, pois força os filósofos a reconsiderarem conceitos aparentemente óbvios, como verdade, negação e asserção, contribuindo para o aprofundamento da filosofia e da lógica.

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