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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA LÓGICA

 

A Lógica é a área da filosofia que estuda os princípios e métodos de inferência. Por outro lado, a filosofia da lógica é a área da filosofia que estuda os problemas filosóficos que a lógica levanta. O objetivo deste texto consiste em apresentar uma introdução à filosofia da lógica, usando como base uma playlist no youtube sobre o tema apresentada pelo filósofo Kane B (aqui). O texto discute os seguintes pontos: (i) O Problema da Dedução; (ii) Niilismo lógico; (iii) Paradoxos da Implicação Material; (iv) Paradoxo de Curry; (v) Paradoxo de São Petersburgo; (vi) Falácia do Escopo Modal;  (vii) Objeções de Quine à Lógica Modal; (viii) Realismo Moral; (ix) Dialeteísmo.

 

I. O PROBLEMA DA DEDUÇÃO

 

O problema da dedução é um desafio filosófico que questiona como podemos justificar a validade do raciocínio dedutivo sem cair em circularidade ou em um regresso infinito. Embora a dedução seja frequentemente vista como infalível (onde a verdade das premissas garante a verdade da conclusão), filósofos como Susan Haack e Lewis Carroll demonstram que justificá-la racionalmente para um cético é extremamente difícil.

Uma forma de ilustrar isso é o chamado Problema do Regresso Infinito de Lewis Carroll. O argumento não visa pôr em dúvida a validade da inferência dedutiva em si, mas revelar um problema estrutural na forma como se costuma conceber sua justificação racional. Trata-se do caso em que Aquiles apresenta à Tartaruga um argumento elementar de modus ponens: se Sócrates é homem, então Sócrates é mortal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal. A Tartaruga aceita integralmente as duas premissas, mas se recusa a aceitar a conclusão. Diante dessa resistência, Aquiles tenta tornar explícita a regra inferencial que conecta as premissas à conclusão, formulando-a como uma nova premissa: se as duas primeiras premissas são verdadeiras, então a conclusão deve ser verdadeira. A expectativa de Aquiles é que, uma vez aceita essa regra, a conclusão se imponha de modo necessário.

Ocorre, porém, que a estratégia falha. A Tartaruga aceita também essa nova premissa, mas continua recusando a conclusão. Para avançar, Aquiles se vê compelido a introduzir outra premissa, agora afirmando que, se as premissas anteriores, incluindo a regra explicitada, são verdadeiras, então a conclusão deve ser verdadeira. Esse procedimento, no entanto, não encerra a disputa, pois a Tartaruga pode aceitar indefinidamente cada nova premissa sem jamais dar o passo inferencial final. O resultado é um regresso infinito de premissas que pretendem justificar a passagem dedutiva, mas que nunca a realizam efetivamente.

O ponto central do argumento de Carroll é que regras de inferência não podem ser tratadas como premissas sem perda de sua função normativa. Premissas são conteúdos proposicionais passíveis de aceitação ou rejeição; regras inferenciais, por sua vez, são princípios que governam a prática de inferir. Transformar uma regra em uma proposição equivale a deslocá-la do plano da aplicação para o plano da descrição, exigindo, então, uma nova regra para explicar como essa proposição deve ser usada inferencialmente. Assim, toda tentativa de justificar a dedução adicionando novas premissas está condenada a gerar um regresso indefinido.

Além do problema do regresso infinito, a tentativa de fundamentar racionalmente a dedução enfrenta também o problema da circularidade da justificação. Esse problema é frequentemente apresentado como um paralelo direto à crítica clássica de David Hume à indução e revela uma dificuldade profunda em justificar regras dedutivas sem pressupor aquilo que se pretende justificar.

No caso da indução, Hume observou que qualquer tentativa de defendê-la apelando ao seu sucesso passado, por exemplo, alegando que “a indução funcionou no passado, logo funcionará no futuro”, é manifestamente circular, pois utiliza um raciocínio indutivo para legitimar a própria indução. A conclusão central de Hume não é que a indução seja irracional ou dispensável, mas que ela não pode ser justificada por argumentos que já a pressupõem. De modo análogo, diversos autores sustentam que a dedução enfrenta um problema estruturalmente semelhante: qualquer justificação puramente dedutiva das regras da dedução incorre em circularidade viciosa.

O exemplo paradigmático dessa dificuldade aparece nas tentativas de justificar regras como o modus ponens por meio de tabelas de verdade. O raciocínio usual é o seguinte: assume-se que a condicional “se A, então B” é verdadeira e que A é verdadeira; examinando-se a tabela de verdade do condicional material, constata-se que, no único caso em que ambas são verdadeiras, B também deve ser verdadeira. Conclui-se, assim, que o modus ponens é uma regra válida e preservadora da verdade.

O problema, como observa Susan Haack, é que essa suposta justificação exibe exatamente a forma de inferência que pretende fundamentar. Para passar da informação fornecida pela tabela de verdade à conclusão de que a regra é válida, o raciocinador precisa efetivamente aplicar um passo inferencial do tipo modus ponens ou algo logicamente equivalente. Em outras palavras, o argumento só funciona para quem já reconhece a legitimidade da inferência dedutiva em questão. Assim, a justificação não é neutra nem independente: ela pressupõe o funcionamento da própria dedução que se deseja explicar.

A gravidade desse problema torna-se ainda mais evidente quando se considera a possibilidade de justificar regras inválidas pelo mesmo procedimento. Haack ilustra esse ponto com o exemplo de uma regra falaciosa conhecida como afirmação do consequente que ela ironicamente denomina “Modus Morons”: B; se A então B; logo, A. Se a circularidade for permitida como forma legítima de justificação, essa regra inválida pode ser “justificada” de modo estruturalmente idêntico ao modus ponens, recorrendo à sua própria tabela de verdade e assumindo, desde o início, que o passo inferencial é aceitável. O resultado é que tanto uma regra válida quanto uma falácia podem ser “provadas” corretas pelo mesmo método.

Esse cenário revela que justificações circulares não apenas falham em fornecer uma base racional independente, mas também tornam impossível distinguir entre inferências corretas e incorretas. Se o procedimento de justificação não oferece critérios que não pressuponham a validade da dedução, então ele não discrimina entre sistemas lógicos legítimos e ilegítimos. A consequência é uma forma de subdeterminação das regras de inferência: o mesmo conjunto de fatos semânticos, como as tabelas de verdade, pode ser compatível com múltiplos sistemas inferenciais incompatíveis entre si, alguns válidos e outros claramente falaciosos.

 

II. NIILISMO LÓGICO

 

            Diante do problema da dedução, algumas pessoas adotam o niilismo lógico. Diferentemente de posições revisionistas que defendem sistemas lógicos alternativos, o niilismo não propõe substituir uma lógica por outra, mas questiona a própria existência de princípios logicamente válidos com alcance universal. O núcleo da posição pode ser expresso por um argumento simples, mas filosoficamente exigente, estruturado em duas premissas centrais e uma conclusão. Gillian Russell apresenta o seguinte argumento a favor do niilismo:

Premissa 1: Se existem leis da lógica, então elas devem ser completamente gerais, isto é, devem preservar a verdade sob todas as interpretações possíveis dos termos não lógicos, sem exceção.

Premissa 2: Nenhum princípio satisfaz essa exigência de completa generalidade, pois para todo candidato a lei lógica existe alguma interpretação possível, ainda que altamente não usual, sob a qual as premissas são verdadeiras e a conclusão é falsa.

Conclusão: Logo, não existem leis da lógica; a relação de consequência lógica, entendida como preservação universal da verdade, é vazia.

 

 

De acordo com a primeira premissa, para que um princípio conte como uma lei lógica, ele deve valer independentemente de qualquer domínio específico, conteúdo empírico ou interpretação particular. Na formulação interpretacional adotada por Russell, uma regra é logicamente válida apenas se não existir nenhuma interpretação possível de seus termos não lógicos que torne verdadeiras as premissas e falsa a conclusão. Qualquer falha, ainda que em um caso altamente não usual, é suficiente para desqualificar o princípio como lei da lógica. Princípios que funcionam apenas “na maioria dos casos” ou apenas em contextos consistentes podem ser heurísticas úteis, mas não satisfazem a exigência de generalidade absoluta que define a noção tradicional de validade lógica.

A segunda premissa afirma que, uma vez ampliado o espaço de interpretações admissíveis, todos os princípios candidatos a leis da lógica admitem contraexemplos. Leis clássicas, como o Princípio do Terceiro Excluído ou o Princípio da Não Contradição, falham em contextos que admitem lacunas ou excessos de valor de verdade, como ocorre em teorias que lidam com paradoxos semânticos. Regras inferenciais fundamentais, como o modus ponens ou o silogismo disjuntivo, deixam de preservar a verdade em sistemas dialeteístas, nos quais contradições verdadeiras são permitidas.

Mais significativamente, Russell argumenta que nem mesmo os princípios considerados mais seguros escapam a esse destino. Considere o problema do predicado branco-isolado. Esse predicado é definido assim: quando aparece sozinho, numa frase simples (por exemplo, “a neve é branco-isolado”), ele significa exatamente o mesmo que “branco”; mas quando aparece dentro de uma frase maior, como numa conjunção (“a neve é branco-isolado e a grama é verde”), ele perde o significado e não se aplica a nada, tornando a frase falsa. Com essa definição, é possível construir um contraexemplo à regra lógica da introdução da conjunção: a frase “a neve é branco-isolado” é verdadeira, e a frase “a grama é verde” também é verdadeira; no entanto, quando juntamos as duas em uma conjunção, a primeira parte muda de valor de verdade por causa do contexto em que aparece, fazendo com que a conjunção inteira seja falsa.

O ponto da filósofa Gillian Russell não é que esse tipo de predicado seja natural ou comum, mas que ele é semanticamente possível e bem definido. Se a lógica exige que suas leis sejam válidas sob todas as interpretações possíveis, então basta a existência de predicados desse tipo, cujo significado depende de estarem isolados ou embutidos em uma frase maior, para mostrar que nem mesmo regras básicas, como “se P e Q são verdadeiros, então P e Q juntos são verdadeiros”, valem de forma absolutamente universal.

.           Dessas duas premissas, segue-se que não há princípios que satisfaçam simultaneamente o critério de validade lógica e a exigência de generalidade absoluta. Em termos formais, não existe nenhum par de premissas e conclusão tal que a verdade das primeiras garanta a verdade da última sob todas as interpretações possíveis. A consequência lógica, entendida como relação universal de preservação da verdade, é, portanto, vazia.

Uma objeção imediata a esse argumento é que ele pareceria autodestrutivo: se não há leis da lógica, então o próprio argumento niilista não pode ser logicamente válido. Russell responde a essa objeção distinguindo entre validade estrita e quasi-validade. O niilista concede que seu argumento não é válido em sentido absoluto, já que uma interpretação suficientemente artificial poderia torná-lo inválido. Contudo, sustenta que o argumento é quasi-válido: ele preserva a verdade em contextos normais, consistentes e semanticamente bem-comportados, precisamente aqueles nos quais o raciocínio filosófico e científico ordinário ocorre.

            O problema também pode ser ilustrado com os chamados Contraexemplos de Modus Ponens onde é racional aceitar as premissas como verdadeiras, mas a conclusão parece falsa. Um primeiro caso é o Exemplo de Van McGee adaptado para o caso do Brasil. Antes da eleição presidencial de 2022 no Brasil, Jair Bolsonaro e Lula apareciam como os dois principais candidatos nas pesquisas, com Lula liderando. Ciro Gomes aparecia atrás, como um terceiro candidato relevante, mas com chances bem menores de vitória. Assim temos:

Premissa 1 (P1): Se um candidato de esquerda vencer a eleição, então, se não for Lula quem vencer a eleição, será Ciro Gomes.

Premissa 2 (P2): Um candidato de esquerda vencerá a eleição.

Conclusão (via Modus Ponens): Se não for Lula quem vencer a eleição, será Ciro Gomes.

No contexto pré-eleitoral as premissas 1 e 2 eram racionalmente aceitáveis ao passo que a conclusão era racionalmente inaceitável. O exemplo de Van McGee original trata da Eleição estadunidense de 1980: Se um Republicano vencer, e se não for Reagan, será Anderson. Dado que Reagan (Republicano) vencerá, o modus ponens forçaria a conclusão de que "se não for Reagan, será Anderson", o que é falso, pois o segundo colocado era o democrata Jimmy Carter.

Outro exemplo é o seguinte:

Premissa 1 (P1): Se essa criatura observada é um peixe, então, se ela tiver pulmões, é um peixe-pulmonado.

Premissa 2 (P2): A criatura observada é um peixe.

Conclusão (via Modus Ponens): Logo se essa criatura tem pulmões, é um peixe-pulmonado.

A conclusão é implausível porque peixes-pulmonados são raros; se a criatura tiver pulmões, é muito mais provável que ela seja um mamífero marinho, como um golfinho, que apenas se parece com um peixe

            O próximo contraexemplo é como se segue:

Premissa 1: Se Ryan tivesse bronquite, então, se ele fosse do genótipo A, ele apresentaria os sintomas de bronquite.

Premissa 2: Ryan tem bronquite (confirmado por exames).

Conclusão: Então se Ryan fosse do genótipo A, ele apresentaria sintomas de bronquite.

Rejeita-se a conclusão porque pessoas do genótipo A são quase imunes à bronquite; se ele fosse desse genótipo, provavelmente nem teria contraído a doença e não estaria mostrando sintoma algum.

Do mesmo modo, há também os chamados Contraexemplos de Modus Tollens. O primeiro é o chamado Exemplo de Seth Yalchine, que é como se segue: Em uma urna com mármores de cores e tamanhos diferentes, pode ser verdade que "se o mármore é grande, provavelmente é vermelho", de modo que temos:

Premissa 1 (P1): Se o mármore é grande, então ele é provavelmente vermelho.

Premissa 2 (P2): O mármore não é provavelmente vermelho (considerando a distribuição na urna).

Conclusão (via Modus Tollens): O mármore não é grande.

Considere também o seguinte caso aplicado a deveres morais:

Premissa 1 (P1): Se você vai matá‑lo, então você deve matá‑lo gentilmente.

Premissa 2 (P2): Não é o caso que você deva matá‑lo gentilmente.

Conclusão (via Modus Tollens): Logo, você não vai matá‑lo.

É perfeitamente possível que alguém faça algo de modo errado. O fato de que alguém não deve agir de certa maneira não implica que essa pessoa não agirá assim.

 

III. PARADOXOS DA IMPLICAÇÃO MATERIAL

 

            Os Paradoxos da Implicação Material surgem do conflito entre a definição formal do condicional na lógica proposicional e nossa intuição sobre como a linguagem natural funciona. Na lógica clássica, o condicional material (P→Q) é funcional de verdade, ou seja, seu valor depende apenas da verdade ou falsidade das partes que o compõem, sem considerar qualquer relação causal ou semântica entre elas. Para a lógica, as seguintes implicações materiais são todas verdadeiras: “Se a Lua é feita de queijo, então 2 + 2 = 5”; "Se o céu é azul, então Lana del Rey é uma cantora”. A lógica material permite que frases absurdas sejam classificadas como logicamente verdadeiras

            O filósofo Paul Grice tentou resolver esse problema distinguindo o que uma frase afirma literalmente do que ela sugere (implicatura conversacional), Para Grice, essas frases paradoxais são literalmente verdadeiras, mas são inapropriadas de se dizer. Frank Jackson oferece uma explicação diferente baseada na utilidade do argumento. Ele argumenta que um condicional só é útil se for robusto, ou seja, se você continuaria acreditando no consequente mesmo se descobrisse que o antecedente é verdadeiro. Portanto, esses "paradoxos" são tecnicamente verdadeiros, mas inúteis para o raciocínio prático (como o Modus Ponens), pois não permitem derivar novas informações de forma confiável.

            Mesmo com essas soluções, permanecem problemas importantes para qualquer análise material. Entre esses problemas estão: (i) Problema dos Condicionais embutidos: Frases complexas, como “Ou (Se A então B) ou (Se B então A)”, são sempre verdadeiras materialmente, mas intuitivamente parecem falsas em muitos contextos da linguagem natural, como   "Ou (se eu estiver certo, você está certo) ou (se você estiver certo, eu estou certo)"; (ii) Problema das Diferença Estruturais:  Se o "se" fosse apenas uma implicatura convencional (como Jackson defende), deveríamos ser capazes de removê-lo e manter a afirmação lógica central (o condicional material), mas o “se… então” não pode ser removido sem alterar completamente a afirmação, sugerindo que “se” não é apenas uma implicatura; (iii) Problema das Implicações Lógicas Problemáticas:  Alguns argumentos válidos na lógica material, como “Não é o caso que, se existe um Deus, então as orações são atendidas. Logo, existe um Deus”, são vistos como claramente inválidos em inglês natural.

 

IV. PARADOXO DE CURRY

 

O Paradoxo de Curry é um problema lógico que mostra como sentenças autorreferenciais, combinadas com regras básicas de inferência, podem levar à conclusão de qualquer afirmação arbitrária, por mais absurda que seja, como “a lua é feita de queijo”. Diferente do paradoxo do Mentiroso, o de Curry não depende de negação, mas da combinação de condicionais e autorreferência.

Na versão informal, considere a seguinte frase, chamada Sentença (1):Se a Sentença (1) é verdadeira, então a lua é feita de queijo”. Se assumirmos que a sentença é verdadeira, então seu antecedente (“a Sentença (1) é verdadeira”) também é verdadeiro. Aplicando o Modus Ponens, concluímos que a lua é feita de queijo. Por outro lado, se assumirmos que a sentença é falsa, o antecedente que afirma sua verdade seria falso, mas, segundo a lógica material, qualquer condicional com antecedente falso é automaticamente verdadeiro. Assim, mesmo assumindo falsidade, acabamos provando que a sentença é verdadeira, voltando ao primeiro cenário e novamente concluindo que a lua é feita de queijo. Dessa forma, qualquer tentativa de atribuir “verdadeiro” ou “falso” leva à aceitação da conclusão absurda.

Formalmente, o paradoxo pode ser derivado usando o Esquema-T (uma sentença é verdadeira se, e somente se, aquilo que ela mesma afirma for o caso) e regras básicas de inferência. Define-se uma sentença 𝐴 equivalente a “Se A, então B”, onde 𝐵 é qualquer proposição. O raciocínio segue: (i) aceita-se que “Se A, então A” (𝐴𝐴); (ii) substitui-se o segundo 𝐴 pela sentença inteira, obtendo “Se A, então (Se A, então B)”; (iii) aplica-se a regra de contração, que permite simplificar múltiplos antecedentes, inferindo “Se A, então B”; (iv) como a sentença “Se A, então B” é verdadeira e é equivalente a 𝐴, conclui-se que 𝐴 é verdadeiro; (v) aplicando o Modus Ponens a “Se A, então B” com 𝐴, derivamos 𝐵, ou seja, qualquer afirmação arbitrária.

O paradoxo evidencia problemas na forma como a lógica padrão lida com autorreferência e com regras como a contração, e mostra que, sob certas combinações de regras e autorreferência, podemos provar qualquer proposição, independentemente de sua plausibilidade.

 

V. PARADOXO DE SÃO PETERSBURGO

 

Uma maneira de ilustrar a distância entre nossas intuições cotidianas e a lógica é o Paradoxo de São Petersburgo, um famoso problema da teoria das probabilidades que evidencia um conflito entre o valor esperado, a média matemática dos resultados, e a intuição racional sobre decisões humanas. O jogo consiste em lançar uma moeda justa repetidamente até que apareça cara, sendo que o prêmio depende de quantos lançamentos foram necessários para sair a primeira cara. Se a cara aparecer no primeiro lançamento, o jogador ganha 2 reais e o jogo termina. Se sair coroa no primeiro lançamento e cara no segundo, o prêmio dobra para 4 reais. Caso seja necessário um terceiro lançamento (coroa, coroa, cara), o prêmio dobra novamente para 8 reais. De forma geral, o prêmio é de 2n reais, sendo n o número de lançamentos até sair a primeira cara.

Para determinar um valor "justo" para participar, utiliza-se o valor esperado: a soma das probabilidades de cada resultado multiplicada pelo prêmio correspondente. No jogo de São Petersburgo, o cálculo é o seguinte: no primeiro lançamento, a probabilidade de sair cara é 1/2, multiplicada pelo prêmio de 2 reais, resultando em 1 real. No segundo lançamento, a probabilidade de sair cara é 1/4, multiplicada pelo prêmio de 4 reais, também resultando em 1 real. No terceiro lançamento, a probabilidade é 1/8 e o prêmio 8 reais, novamente somando 1 real. Este padrão se mantém para todos os 𝑛 lançamentos, de modo que cada termo contribui com 1 real para o valor esperado. Como o jogo pode teoricamente continuar indefinidamente, a soma de todos os produtos diverge para o infinito, indicando que o valor esperado do jogo é infinito. Segundo a teoria clássica da decisão, uma pessoa racional deveria estar disposta a pagar qualquer quantia finita para jogar, mesmo milhões de reais.

O paradoxo surge porque, na prática, ninguém pagaria grandes quantias para participar. A maioria das pessoas não pagaria mais do que alguns reais ou algumas dezenas de reais, revelando uma grande discrepância entre a racionalidade matemática, que sugere pagar qualquer quantia, e a racionalidade humana, que percebe o risco e prefere pagar pouco.

Diversas soluções foram propostas para explicar essa diferença. A teoria da utilidade marginal decrescente distingue entre a quantidade de dinheiro e seu valor subjetivo: o valor de uma unidade adicional diminui à medida que se possui mais dinheiro. Com isso, o valor esperado em termos de utilidade torna-se finito, geralmente em torno de poucos reais. Outra abordagem considera limites financeiros reais: no mundo concreto, ninguém tem dinheiro infinito, e se o organizador do jogo tem um teto para pagar o prêmio, o valor esperado torna-se finito e mais baixo. Além disso, a aversão ao risco explica que as pessoas preferem ganhos certos a apostas incertas; pagar muito por uma chance mínima de ganhar muito é percebido como imprudente. Por fim, alguns teóricos defendem que, de fato, um ser perfeitamente racional deveria estar disposto a pagar qualquer quantia, e a hesitação humana apenas reflete limitações cognitivas.

Em analogia, o paradoxo é como receber uma Caixa Mágica com 50% de chance de ganhar 2 reais, 25% de chance de ganhar 4 reais e uma chance minúscula de ganhar bilhões. Matemática e teoricamente, a caixa vale uma fortuna por causa dessas chances extremamente pequenas de prêmio gigantesco. No entanto, considerando que a maior parte das vezes você receberá apenas alguns reais, percebe-se que o valor médio não importa se você quase certamente sairá com pouco.

 

VI. FALÁCIA DO ESCOPO MODAL

 

A falácia do escopo modal é um erro lógico que ocorre quando há confusão sobre quais partes de uma frase estão realmente sob a influência de um operador modal, como "necessariamente", "possivelmente" ou "deve". Apesar de muitas vezes passar despercebida, ela é extremamente comum na filosofia acadêmica, pois a linguagem natural tende a ser ambígua na expressão de modais.

O cerne da falácia está na distinção entre escopo amplo e escopo restrito. No escopo amplo, o operador modal modifica a condicional inteira; por exemplo, "necessariamente, se P então Q" (□(P→Q)), significando que a relação entre P e Q é necessariamente verdadeira. No escopo restrito, o operador modifica apenas o consequente da condicional, como em "se P então necessariamente Q" (P→□Q), implicando que sempre que P ocorre, Q é necessário. A diferença é sutil, mas crucial: confundir essas leituras leva a conclusões inválidas, mesmo que a frase pareça gramaticalmente correta.

Um exemplo clássico aparece no argumento para o necessarianismo, a crença de que tudo o que é verdadeiro é necessariamente verdadeiro. A frase “Se P é verdadeiro, então P não pode ser falso” pode ser interpretada de duas maneiras. No escopo amplo, ela simplesmente afirma a lei da não-contradição: não é possível que P seja verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Nesse caso, a frase é verdadeira, mas não demonstra que P seja necessário, o argumento falha. No escopo restrito, a frase afirmaria que a verdade de P implica que P é necessariamente verdadeiro, mas aí a premissa se torna questionável ou assume o que deveria provar, caindo em petição de princípio.

Essa falácia não se limita à necessidade lógica. Em modalidade deôntica, por exemplo, a frase “É obrigatório que a polícia intervenha no assalto a Frank” pode ser mal interpretada. Se atribuirmos escopo amplo à obrigação, poderia parecer que o próprio assalto é “obrigatório”, o que é absurdo. O correto é escopo restrito: o fato do assalto ocorrer é contingente, e a obrigação recai apenas sobre a intervenção policial. Em infalibilismo epistêmico, a falácia surge quando se interpreta erroneamente “se você sabe que P, você não pode estar enganado” como tornando P necessariamente verdadeiro (escopo restrito), quando o correto é entender que é impossível saber P e estar enganado ao mesmo tempo, embora P ainda possa ser contingente (escopo amplo).

 

VII. OBJEÇÕES DE QUINE À LÓGICA MODAL

 

W.V.O. Quine foi o crítico mais proeminente da lógica modal, argumentando que todo o empreendimento era mal orientado e carecia de clareza teórica. Suas objeções fundamentais dividem-se em três pilares principais: (i) a confusão entre uso e menção, (ii) a violação da extensionalidade e; (iii) o problema da opacidade referencial. De acordo com ele, a lógica modal foi “concebida no pecado”, o que é uma acusação de confusão categorial profunda, enraizada numa má distinção entre uso e menção, bem como entre linguagem-objeto e metalinguagem. Para Quine, os fundadores da lógica modal moderna, em especial C. I. Lewis, teriam cometido um erro filosófico e técnico ao tentar internalizar, na própria linguagem formal, conceitos que pertencem propriamente ao nível metalinguístico.

A distinção entre uso e menção é central nesse diagnóstico. Quando usamos uma expressão, empregamo-la para falar do objeto ao qual ela se refere; quando a mencionamos, falamos da própria expressão enquanto entidade linguística. Em lógica, essa diferença é crucial: o condicional “se P, então Q” é um operador da linguagem-objeto que conecta sentenças pelo seu uso, ao passo que a noção de que “P implica Q” é uma afirmação metalinguística que menciona essas sentenças e descreve uma relação entre elas. Confundir esses dois planos equivale a tratar propriedades ou relações de enunciados, enquanto fórmulas, como se fossem componentes internos do próprio cálculo proposicional.

Essa confusão se agrava quando se negligencia a distinção entre linguagem-objeto e metalinguagem. A linguagem-objeto é o sistema formal que está sendo estudado, composto por variáveis proposicionais e conectivos; a metalinguagem é o idioma no qual falamos sobre esse sistema, formulando afirmações sobre validade, verdade lógica e implicação. Dizer “P → Q” é formular uma expressão da linguagem-objeto; dizer “P implica Q” é fazer uma afirmação na metalinguagem acerca da relação lógica entre duas fórmulas. Para Quine, essa distinção é metodologicamente indispensável e não pode ser apagada sem gerar obscuridade conceitual.

O “pecado” atribuído por Quine a C. I. Lewis surge justamente quando este tenta corrigir as aparentes inadequações do condicional material. Incomodado com o fato de que, no cálculo clássico, uma proposição falsa implica qualquer outra, Lewis buscou capturar uma noção mais forte e intuitiva de implicação, introduzindo o condicional estrito, definido como “necessariamente, se P então Q”, isto é, □(P → Q). A crítica de Quine é que, ao fazer isso, Lewis tentou transformar a implicação, uma relação metalinguística entre sentenças, em algo expressável por meio de um operador dentro da linguagem-objeto. O operador modal de necessidade é assim convocado para desempenhar um papel explicativo que não lhe pertence, produzindo um híbrido conceitual no qual níveis distintos de análise são indevidamente fundidos.

Do ponto de vista quineano, nada impede que se aceite plenamente o condicional material como conectivo da linguagem-objeto e, ao mesmo tempo, se rejeite qualquer identificação ingênua entre esse conectivo e a noção metalinguística de implicação. A tarefa de explicar quando uma sentença implica outra deve permanecer no plano da metalinguagem, por meio de definições de validade e consequência lógica, e não ser artificialmente internalizada no cálculo por meio de operadores modais. É precisamente essa tentativa de “escrever o relatório dentro do tubo de ensaio”, de confundir a análise lógica com o objeto analisado, que, para Quine, marca o nascimento da lógica modal como um empreendimento metodologicamente viciado desde a sua concepção.

A segunda crítica diz respeito à violação da extensionalidade. O ponto de partida da crítica é a distinção entre extensão e intensão. A extensão de um termo é o conjunto de objetos aos quais ele se aplica; no caso de sentenças, sua extensão é simplesmente o seu valor de verdade. Já a intensão corresponde ao significado, ao conteúdo conceitual ou às propriedades associadas a um termo. Quine ilustra essa diferença com o conhecido exemplo biológico de “cordado” (criatura com coração) e “renado” (criatura com rins). Embora esses termos tenham a mesma extensão, pelo menos no mundo efetivo, onde todo animal com coração tem rins e vice-versa, eles claramente não têm a mesma intensão, pois descrevem os organismos a partir de características distintas. Para Quine, a lógica deveria ser cega a essas diferenças intensionalistas e operar apenas com extensões.

É nesse contexto que entra o princípio da substitutividade. Um sistema é extensional quando a verdade de uma sentença composta depende exclusivamente do valor de verdade de suas partes. Em tais sistemas, vale o princípio segundo o qual expressões com a mesma extensão podem ser substituídas umas pelas outras salva veritate, isto é, sem alteração do valor de verdade da sentença total. Esse princípio é fundamental para a transparência lógica: se duas expressões têm o mesmo valor de verdade, nada logicamente relevante deveria mudar ao trocá-las.

A lógica modal, contudo, falha exatamente nesse teste. Ao introduzir operadores como “necessariamente” e “possivelmente”, ela cria contextos nos quais a substituição de sentenças extensionais equivalentes altera o valor de verdade do todo. O exemplo clássico é simples e revelador. A frase “Necessariamente 2 + 2 = 4” é verdadeira. A sentença interna “2 + 2 = 4” é verdadeira, e o mesmo vale para “Lana del Rey é uma cantora”. Ambas têm a mesma extensão: são verdadeiras. Em um sistema extensional, isso bastaria para garantir a substituição. No entanto, ao trocar uma pela outra, obtemos “Necessariamente Lana del Rey é uma cantora”, que é claramente falsa, pois Lana del Rey poderia ter seguido outra profissão. O operador modal, portanto, rompe a ligação direta entre o valor de verdade das partes e o valor de verdade do todo.

Para Quine, esse resultado é filosoficamente inaceitável. Ele mostra que, em contextos modais, a verdade de uma sentença passa a depender não apenas dos fatos, mas da forma como esses fatos são descritos. A lógica deixa de ser puramente extensional e passa a operar com intensões, significados, essências, propriedades necessárias, que, para Quine, são conceitualmente nebulosas e cientificamente suspeitas. Uma teoria lógica que distingue entre descrições coextensionais, tratando-as de maneira diferente, compromete a objetividade que a lógica deveria garantir.

Essa rejeição do intensionalismo é motivada por duas razões convergentes, são elas: (i) ideal de clareza e simplicidade: extensões são entidades bem definidas, enquanto intensões carecem de critérios precisos de individuação (ii) preocupação epistemológica e científica: se algo é verdadeiro sobre um objeto, isso deveria permanecer verdadeiro sob qualquer descrição adequada desse objeto; se a verdade varia conforme o vocabulário empregado, então a teoria não captou o que é objetivamente o caso. Assim, Quine associa a lógica modal ao problema geral da sinonímia. Falar em “mesmo significado” ou “mesma propriedade necessária” pressupõe distinções que, segundo ele, não dispomos de meios não circulares para estabelecer de forma rigorosa.

Por fim, o problema da opacidade referencial, conecta-se diretamente à crítica de W. V. O. Quine ao uso de operadores modais. O princípio da substitutividade de idênticos, ou indiscernibilidade de idênticos, sustenta que, se dois termos se referem ao mesmo objeto, qualquer sentença verdadeira que contenha um deles deve permanecer verdadeira se fizermos a substituição pelo outro. Em contextos puramente extensionalistas, como na lógica clássica, isso funciona sem problemas: se Bob Dylan é Robert Zimmerman, qualquer verdade sobre Bob Dylan continua verdadeira ao substituir seu nome pelo de Robert Zimmerman.

A opacidade referencial surge quando a substitutividade falha, ou seja, quando a verdade da sentença depende não apenas do objeto referenciado, mas de como ele é descrito ou nomeado. Três contextos são particularmente críticos:

(i) Citações: Ao falar de palavras ou nomes, e não dos objetos que eles denotam, a substituição deixa de ser válida. Por exemplo, a frase “‘Bob Dylan’ contém oito letras” é verdadeira; se trocarmos para “‘Robert Zimmerman’ contém oito letras”, a sentença torna-se falsa. Aqui, a verdade depende da forma do nome, não do homem que ele denota.

(ii) Atitudes Proposicionais: Quando se fala sobre o conteúdo da crença de alguém, a substituição também pode falhar. Se Frank acredita que Bob Dylan é um músico famoso, mas não sabe que Bob Dylan é Robert Zimmerman, então a sentença “Frank acredita que Robert Zimmerman é um músico famoso” pode ser falsa. O valor de verdade depende da perspectiva de Frank, não apenas do fato objetivo.

(iii) Operadores Modais: Contextos que envolvem necessidade ou possibilidade introduzem opacidade semelhante. Um exemplo clássico de Quine envolve o número de planetas: o fato de que o número de planetas é oito é contingente; substituir “8” por “o número de planetas” em “necessariamente 8 > 5” gera a sentença “necessariamente, o número de planetas > 5”, que é falsa. Aqui, o operador modal cria um contexto em que a substituição de termos idênticos altera o valor de verdade da sentença.

 

Uma maneira de compreender essa opacidade é distinguindo de dicto e de re. Em leituras de dicto, a necessidade se aplica à descrição ou expressão: “necessariamente, o número de planetas > 5” é falso porque a descrição poderia ter se referido a outro contingente número de planetas. Em leituras de re, a necessidade se aplica ao objeto em si: o número 8, considerado isoladamente, é necessariamente maior que 5.

Em termos intuitivos, a opacidade referencial funciona como um vidro fosco: ele permite que você veja a pessoa sob uma descrição específica (“diretor da empresa”), mas impede que você a reconheça simplesmente como “a mesma pessoa” sob outra descrição (“vizinho de porta”). No contexto da lógica modal, essa característica torna a substitutividade de idênticos instável, reforçando a objeção de Quine de que a introdução de operadores modais compromete a clareza extensional e a objetividade que a lógica deveria preservar.

 

VIII. REALISMO MODAL

 

            O realismo modal é uma teoria filosófica proposta por David Lewis, que defende que nosso discurso sobre "mundos possíveis" deve ser levado literalmente. Segundo Lewis, esses mundos não são meras construções mentais ou ficções úteis; eles existem de fato como entidades concretas, com o mesmo tipo de existência que o nosso mundo "atual". O ponto central da teoria é a existência concreta de todos os mundos possíveis. Cada mundo contém objetos físicos, montanhas, pessoas, carros, animais, que existem de forma tão concreta quanto os objetos de nosso próprio mundo. Não se trata de mundos abstratos ou imaginários, mas de realidades completas e independentes.

A teoria de Lewis se apoia em cinco pilares fundamentais: (i) existência literal: os mundos possíveis existem literalmente, do mesmo tipo que o nosso; (ii) estado maximal:  os mundos são objetos máximos conectados, consistindo de tudo que é espaço-temporalmente relacionado entre si; (iii) isolamento espaço-temporal: mundos distintos não se relacionam entre si, não há sobreposição ou conexão física; (iv) princípio da plenitude: estabelece que qualquer forma logicamente possível de um mundo corresponde a algum mundo existente; (v) atualidade indexical: o termo “atual” não indica um status especial, apenas se refere ao mundo em que o falante se encontra; para os habitantes de outro mundo, o seu próprio mundo é "atual".

É importante distinguir o realismo modal de interpretações de “muitos mundos” ou “multiversos” da mecânica quântica. Na física, mundos “ramificam” e mantêm conexões espaço-temporais com eventos originais. Em Lewis, os mundos são completamente desconectados, cobrindo todas as possibilidades lógicas e não dependentes de fenômenos físicos. Uma boa metáfora para o realismo modal é imaginar o universo não como uma única casa, mas como um bairro infinito de casas. Cada casa é totalmente fechada, sem portas ou janelas conectando-a às outras, e cada uma é decorada de forma diferente, representando todas as possibilidades lógicas. Dizer “Minha casa poderia ter sido azul” não significa mudar a casa atual, mas apontar para uma casa muito semelhante algumas ruas adiante que já é azul.

Lewis defende sua teoria usando um argumento de indispensabilidade: devemos acreditar em mundos possíveis porque eles são indispensáveis às nossas melhores teorias sobre o mundo, assim como números são indispensáveis à matemática. Entre os benefícios dessa abordagem estão a redução da modalidade, explicar fatos de possibilidade e necessidade em termos de fatos não modais, e a análise de propriedades como conjuntos de objetos através de todos os mundos possíveis, como o conjunto de todos os burros falantes em mundos onde eles existem.

O realismo modal enfrenta, contudo, algumas objeções:

(1) Objeção do Olhar de Incredulidade: A primeira objeção é o chamado “olhar de incredulidade”, que expressa a reação intuitiva de que a teoria é absurda por postular a existência física de infinitos mundos concretos. Além disso, ela parece violar a Navalha de Occam, princípio metodológico que recomenda não multiplicar entidades sem necessidade. Embora Lewis tenha tentado se defender distinguindo parcimônia quantitativa (quantidade de entidades) de parcimônia qualitativa (tipos de entidades), críticos apontam que mundos contendo propriedades radicalmente diferentes, como leis físicas alienígenas ou entidades sobrenaturais, introduzem novos tipos de existência e, portanto, comprometem a simplicidade e economia teórica da proposta.

(2) Problema da Teoria das Contrapartidas: A Teoria das Contrapartidas de Lewis afirma que indivíduos existem em apenas um mundo, e que afirmações modais sobre eles referem-se a contrapartes em outros mundos. Críticos, como Saul Kripke, argumentam que isso falha em capturar a verdadeira modalidade de indivíduos específicos, pois ao dizer “Hitler poderia ter vencido a guerra” estamos interessados no que poderia ter ocorrido com aquele indivíduo concreto, não com algum outro semelhante. A objeção enfatiza a indiferença metafísica da teoria: o que uma contraparte faz em outro mundo não fornece informações sobre as possibilidades reais do indivíduo original, tornando as afirmações modais pouco perspicazes do ponto de vista pessoal ou histórico.

(3) Problema do Isolamento Causal: Como Lewis define mundos possíveis como completamente espaço-temporalmente isolados, não há qualquer conexão causal entre eles e o nosso mundo. Isso levanta a objeção epistemológica de que, se não podemos interagir causalmente com esses mundos, parece impossível termos qualquer conhecimento confiável sobre sua existência ou propriedades. Embora Lewis responda que o conhecimento de verdades necessárias, como as matemáticas ou lógicas, não depende de contato causal, muitos críticos consideram que, na prática, a teoria se torna epistemicamente inacessível e depende de um salto de fé conceitual para ser aceita.

(4) Objeção da Inadequação às Possibilidades Lógicas: Outra objeção é que o realismo modal, ao definir mundos por conexões espaço-temporais completas, não acomoda todas as possibilidades logicamente concebíveis. Por exemplo, mundos não-espaço-temporais ou universos-ilha (espaços-tempos desconectados dentro de um mesmo mundo) não se encaixam na definição de Lewis. Além disso, a teoria implica que sempre existe algum mundo, mesmo que vazio, tornando impossível conceber a inexistência absoluta de tudo. Críticos consideram que essa restrição compromete a capacidade do realismo modal de representar plenamente a gama de possibilidades lógicas.

(5) Objeção da Paralisia Moral: Uma objeção mais filosófica é a chamada paralisia moral. Se todos os mundos possíveis existem, então para cada ação boa realizada por nós em nosso mundo, há uma contraparte em outro mundo realizando a ação oposta. Isso poderia sugerir que nossas escolhas morais não afetam o saldo global de bem e mal entre todos os mundos possíveis, tornando nossas decisões cosmicamente irrelevantes.

 

IX. DIALETEÍSMO

 

            O dialeteísmo é a posição filosófica que sustenta a existência de contradições verdadeiras, defendida principalmente por Graham Priest. Historicamente, o Princípio da Não-Contradição (PNC) foi considerado uma lei fundamental do pensamento, afirmando que uma proposição não pode ser simultaneamente verdadeira e falsa. No entanto, a lógica evolui, e sistemas concorrentes mostram que certas situações podem ser intrinsecamente contraditórias. O dialeteísmo surge nesse contexto como uma resposta à limitação da lógica clássica em lidar com paradoxos, como o do mentiroso, que parecem violar o PNC de forma persistente e significativa.

            É nesse contexto que surge a Lógica Paraconsistente. A lógica paraconsistente simples, exemplificada pelo sistema Lógica do Paradoxo (LP) de Graham Priest, é um formalismo projetado para lidar com contradições sem permitir que elas destruam a validade do raciocínio. Diferentemente da lógica clássica, na qual uma contradição permite derivar qualquer conclusão (ex falso quodlibet), a LP tolera inconsistências, impedindo que uma contradição isolada cause explosão lógica.

O primeiro ponto crucial da LP é a rejeição do princípio da explosão. Na lógica clássica, se temos uma sentença A e sua negação ¬A, qualquer outra proposição B pode ser inferida, tornando o sistema “explosivo”. A LP evita isso, garantindo que contradições específicas não contaminem todo o sistema e que apenas as proposições envolvidas diretamente sejam afetadas.

 

Outro aspecto central é a introdução de três valores de verdade. Além do Verdadeiro (1) e Falso (0), a LP define o valor # (Ambos), representando sentenças simultaneamente verdadeiras e falsas. A negação de uma proposição com valor # permanece #, permitindo que a contradição coexista sem invalidar o sistema. Isso cria uma maneira formal de lidar com paradoxos, como o paradoxo do mentiroso, sem que o raciocínio colapse.

Para avaliar a validade de argumentos, a LP utiliza valores designados e a consequência semântica. Diferentemente da lógica clássica, em que apenas o valor verdadeiro é designado, na LP tanto 1 (Verdadeiro) quanto # (Ambos) são designados. Um argumento é válido se, sempre que as premissas possuem valores designados, a conclusão também os possui. Um argumento só se torna inválido se premissas designadas levarem a uma conclusão estritamente falsa (0), protegendo o sistema contra inferências explosivas.

Como consequência, certas inferências clássicas deixam de ser universalmente válidas. Por exemplo, no Silogismo Disjuntivo (P Q, ¬P Q), se P for # e Q for 0, as premissas são designadas, mas a conclusão é falsa, tornando a regra inválida. De forma similar, no Modus Ponens (Se P então Q, P Q), se o antecedente P for # e o consequente Q for 0, o argumento falha. Essas alterações preservam a consistência controlada e evitam a explosão do sistema.

A LP possui aplicações práticas significativas. Na ciência da computação, auxilia no tratamento de bancos de dados corrompidos ou inconsistentes. Na física, ajuda a modelar raciocínios envolvendo teorias aparentemente incompatíveis, como relatividade e mecânica quântica. Além disso, reflete o funcionamento real da racionalidade humana, já que as pessoas frequentemente mantêm crenças inconsistentes sem aceitar tudo, tornando a LP um modelo mais fiel da cognição do que a lógica clássica.

            Um exemplo clássico que motiva o dialeteísmo é o Paradoxo do Mentiroso. O Paradoxo do Mentiroso é uma sentença autorreferencial clássica, expressa por “Esta sentença é falsa”, que gera um ciclo contraditório ao tentarmos atribuir-lhe valor de verdade. Se consideramos a sentença verdadeira, então, como ela afirma ser falsa, ela deve ser falsa; se a consideramos falsa, então ela descreve corretamente a si mesma, tornando-se verdadeira. Esse loop cria uma contradição direta, onde a proposição parece ser simultaneamente verdadeira e falsa, desafiando o princípio da não-contradição da lógica clássica.

            Os dialeteístas, como Graham Priest, encaram essa contradição como legítima, definindo-a como uma dialetheia: uma proposição que é ao mesmo tempo verdadeira e falsa. Para eles, o paradoxo não indica erro no raciocínio, mas revela limites fundamentais da lógica clássica, mostrando que certos enunciados autorreferenciais devem ser tratados como verdades contraditórias.

Existem quatro tentativas de solução clássicas que foram propostas para evitar a contradição, são elas:

(1) Teoria da Lacunas do Valor de Verdade: Essa abordagem propõe que nem toda sentença precisa ser verdadeira ou falsa, rejeitando o princípio da bivalência. Assim, sentenças como "Esta sentença é falsa" seriam lacunas, desprovidas de valor de verdade. No entanto, surge o problema da vingança do mentiroso: sentenças como "Esta sentença não é verdadeira" criam novamente uma contradição, pois assumir que não têm valor de verdade implica que o que afirmam é verdadeiro, reiniciando o paradoxo.

(2) Teoria da Fundamentação (Saul Kripke): Kripke introduz o conceito de fundamentação: uma sentença é fundamentada se seu valor de verdade pode ser rastreado até fatos básicos do mundo. O Mentiroso é não-fundamentado, pois ao tentar determinar seu valor de verdade entra-se em um loop infinito de autorreferência sem conexão com fatos externos. Por isso, ele é considerado sem valor de verdade, evitando a contradição.

(3) Teoria da Distinção entre Linguagem-Objeto e Metalinguagem (Alfred Tarski): Tarski argumenta que o paradoxo surge do caráter semântico fechado das línguas naturais, permitindo que sentenças falem sobre sua própria verdade. Ele propõe uma hierarquia de linguagens, separando linguagem-objeto (fatos do mundo) e metalinguagem (verdade sobre sentenças da linguagem-objeto). O Mentiroso, colocado na metalinguagem, refere-se a algo inexistente na linguagem-objeto, sendo assim simplesmente falso, sem gerar paradoxo.

(4) Teoria da Asserção Implícita (Arthur Prior): Prior sugere que toda sentença afirma implicitamente sua própria verdade. Aplicado ao Mentiroso, a sentença se torna: "Esta sentença é falsa E esta sentença é verdadeira". Como a contradição é explícita, a sentença é falsa de forma direta, evitando a oscilação paradoxal. Essa abordagem, contudo, não resolve paradoxos cuja contradição dependa de fatos externos ao enunciado.

            O dialeteísmo enfrenta, contudo, algumas objeções metodológicas, são elas:

 (1) Objeção da Impossibilidade Psicológica da Crença em Contradições:  Uma das críticas mais comuns afirma que é psicologicamente impossível acreditar em contradições. A objeção distingue entre a crença em contradições de forma geral e a crença em contradições específicas, como o Paradoxo do Mentiroso. Os críticos sustentam que, se ninguém pode realmente acreditar em uma contradição, não haveria necessidade de considerar os argumentos dialeteístas. Por sua vez, os defensores respondem que seres humanos frequentemente mantêm crenças que, quando examinadas, revelam inconsistências, mostrando que a impossibilidade psicológica não é absoluta.

(2) Objeção da Racionalidade: Mesmo que seja psicologicamente possível acreditar em contradições, a crítica metodológica sustenta que elas não podem ser mantidas racionalmente, já que a lógica clássica enxerga a consistência como um requisito absoluto da racionalidade. Os dialeteístas contestam essa ideia usando o Paradoxo do Prefácio: imagine um autor que acredita que cada afirmação individual de seu livro é verdadeira, mas admite no prefácio que, devido à extensão e complexidade do texto, provavelmente há pelo menos um erro. Assim, ele mantém simultaneamente a crença de que todas as sentenças são verdadeiras e que ao menos uma é falsa, gerando um conjunto de crenças inconsistente, mas que ainda é racional. Esse paradoxo ilustra que a racionalidade pode tolerar contradições em situações complexas, especialmente quando a exigência de consistência absoluta resultaria em soluções artificiais ou excessivamente complicadas. Em outras palavras, aceitar certas contradições pode ser, em alguns casos, uma escolha mais racional do que forçar a coerência a todo custo.

(3) Objeção da Negação como Cancelamento: Baseando-se em filósofos como P.F. Strawson, esta objeção sustenta que uma contradição não possui conteúdo real, sendo impossível de ser objeto de crença. Segundo essa visão, afirmar A e ¬A equivaleria a escrever algo e logo apagá-lo, resultando em vazio intelectual. O dialeteísmo rebate que contradições produzem informação em excesso, não falta de conteúdo, e que raciocinar com informações inconsistentes é algo que ocorre na prática em ciência e computação.

(4) Objeção da Mudança de Assunto: Outra objeção metodológica alega que, ao aceitar A e ¬A, o dialeteísta não estaria realmente revisando a lógica, mas apenas mudando o significado dos conectivos lógicos, como "não" ou "e". Críticos sugerem que essa redefinição equivale a mudar de tópico em vez de desafiar a lógica fundamental, questionando se o dialeteísmo realmente cumpre seu objetivo de tratar contradições verdadeiras ou se apenas manipula a linguagem para contornar problemas.

(5) Objeção do Valor Pragmático: Finalmente, existe uma objeção de caráter pragmático: se o dialeteísmo fosse verdadeiro, seus próprios argumentos poderiam ser simultaneamente falsos, minando a força da teoria. Apesar disso, os defensores destacam que a posição ainda é valiosa metodologicamente, pois força os filósofos a reconsiderarem conceitos aparentemente óbvios, como verdade, negação e asserção, contribuindo para o aprofundamento da filosofia e da lógica.

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Bruno dos Santos Queiroz

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