IDENTIDADE PESSOAL - DEREK PARFIT (RESUMO)
O que se segue é um resumo da terceira parte do livro Reasons and Persons de Derek Parfit intitulada Personal Identity. O objetivo é apresentar as teses do texto original de forma compactada, sem constituir uma resenha crítica. Assim, o resumo busca refletir as ideias dos autores originais, sintetizando suas principais teses. A leitura deste resumo não substitui a leitura do livro. Ele está estruturado nas seguintes partes:
(1) Taxonomia das posições sobre Identidade Pessoal
(2) Respostas às Objeções contra o Psicologismo
(3) Por que a Identidade Pessoal não importa?
(4) Identidade Pessoal e Racionalidade
(5) Identidade Pessoal e Moralidade
Referência: PARFIT, D. Reasons and persons. Oxford: Clarendon Press, 1984.
I. TAXONOMIA DAS POSIÇÕES SOBRE IDENTIDADE PESSOAL
Existem dois tipos de identidade: (i) identidade qualitativa: ocorre quando dois entes são exatamente iguais em propriedades; (ii) identidade numérica: ocorre quando dois entes são exatamente o mesmo ente. É importante, ainda, distinguir dois tipos de perguntas diferentes: (i) Qual é a natureza de uma pessoa? (ii) O que faz com que uma pessoa em dois momentos diferentes seja a mesma? O que é necessário para a continuação da existência de cada pessoa ao longo do tempo?
No caso da maioria dos objetos físicos, segundo a visão padrão, o critério de identidade ao longo do tempo é a continuidade física espaço-temporal. Alguns objetos continuam a existir mesmo que sua continuidade física envolva grandes mudanças. Essa continuidade física, nessa perspectiva, garante que um objeto seja o mesmo após vários dias ou anos.
A partir dessa base, podemos apresentar uma visão rival sobre a identidade pessoal. Segundo essa visão, o que faz de mim a mesma pessoa ao longo do tempo é que possuo o mesmo cérebro e corpo. O critério da minha identidade ao longo do tempo consiste na continuidade física do meu cérebro e corpo. Continuamos a existir se, e somente se, nosso cérebro e corpo específicos continuarem a existir e forem o cérebro e corpo de uma pessoa viva. Essa é a versão mais simples desse critério.
Uma versão mais refinada é o Critério Físico, que envolve os seguintes requerimentos: (i) o necessário não é a existência contínua do corpo inteiro, mas a continuidade suficiente do cérebro para ser o cérebro de uma pessoa viva; (ii) X hoje é a mesma pessoa que Y no passado se, e somente se, parte suficiente do cérebro de Y continuou a existir e agora é o cérebro de X; (iii) essa continuidade física não deve ter se ramificado; (iv) a identidade pessoal ao longo do tempo consiste apenas na manutenção desses fatos. Aqueles que defendem o Critério Físico acreditam que o teletransporte é uma forma de morrer, e não de viajar.
Algumas pessoas defendem um tipo de continuidade psicológica, análoga à continuidade física, baseada na existência de uma mente contínua. John Locke sugeriu que a memória e a experiência constituem o critério da identidade pessoal. Embora sua versão original não seja totalmente plausível, ela pode compor parte de uma visão mais ampla. Locke afirmava que alguém só pode ser considerado responsável por um crime se lembrar de tê-lo cometido. Essa afirmação é claramente falsa, pois é possível esquecer experiências passadas, como o simples ato de vestir uma camisa pela manhã.
Para lidar com tais casos, podemos recorrer ao conceito de cadeias sobrepostas de memórias e experiências. Dizemos que existem conexões de memória diretas entre X hoje e Y vinte anos atrás se X consegue se lembrar de algumas experiências de Y. Segundo Locke, apenas essas conexões diretas fazem de X e Y a mesma pessoa. Mesmo na ausência dessas conexões diretas, pode haver continuidade de memória entre X e Y.
Podemos definir duas relações gerais: (i) Conexão psicológica: existência de ligações diretas entre estados psicológicos; (ii) Continuidade psicológica: existência de cadeias sobrepostas de conexões fortes. Dessas duas relações, a conexão é mais importante em teoria e prática, mas ela não pode ser o critério da identidade pessoal por não ser transitiva. Uma relação F é transitiva se, sempre que X está F-relacionado a Y e Y a Z, então X está F-relacionado a Z. A identidade pessoal é uma relação transitiva. Como a conexão forte não é transitiva, ela não pode ser o critério de identidade. Um defensor de Locke, no entanto, pode recorrer à continuidade psicológica, que é transitiva.
Surge assim o Critério Psicológico, que envolve os seguintes requerimentos: (i) Há continuidade psicológica se, e somente se, existem cadeias sobrepostas de conexões fortes; (ii) X hoje é a mesma pessoa que Y no passado se X é psicologicamente contínuo com Y; (iii) Essa continuidade deve ter a causa adequada; (iv) Não deve ter se ramificado; (v) A identidade pessoal ao longo do tempo consiste na manutenção desses fatos.
Existem três versões do Critério Psicológico, que diferem quanto ao que é considerado a causa adequada: a estreita (causa normal), a ampla (qualquer causa confiável) e a mais ampla (qualquer causa). Não é necessário escolher entre essas versões para aceitar a continuidade psicológica.
Existe um equívoco natural em relação a essas visões. Muitos acreditam no Materialismo ou Fisicalismo, segundo o qual não existem objetos ou estados mentais independentes do corpo. Em uma versão, todo evento mental é um evento físico no cérebro. Os não-fisicalistas podem ser dualistas (eventos mentais não são físicos, mesmo se dependentes de eventos cerebrais) ou idealistas (tudo é essencialmente mental).
Dadas essas distinções, supõe-se que os fisicalistas devam aceitar o Critério Físico. No entanto, isso não é necessário: eles podem aceitar o Critério Psicológico, inclusive na versão que permite qualquer causa confiável. O Critério Físico baseia a identidade na existência contínua do cérebro suficiente; o Critério Psicológico baseia-se na continuidade psicológica com a causa adequada. Ambos são critérios reducionistas, pois afirmam que a identidade pessoal consiste em fatos específicos, que podem ser descritos de forma impessoal, sem pressupor a existência do indivíduo.
Uma visão não-reducionista rejeita essas afirmações. Alguns defendem que somos entidades separadas, distintas do cérebro, corpo e experiências, uma substância mental ou ego cartesiano. Outros negam a existência separada, mas sustentam que a identidade pessoal envolve um fato adicional, que não se reduz à continuidade física ou psicológica. Essa é a chamada visão do Fato Adicional.
Assim, temos a seguinte taxonomia das visões sobre identidade pessoal:
(1) Reducionismo: A identidade pessoal se reduz a fatos físicos ou psicológicos, sem necessidade de postular entidades adicionais.
1.1. Fisicalismo: A identidade pessoal se baseia na continuidade física do cérebro ou do organismo e depende da manutenção física suficiente e não ramificada.
1.1.1 Fisicalismo cerebalista: A identidade pessoal se baseia na continuidade física do cérebro e depende da manutenção física suficiente e não ramificada.
1.1.2 Fisicalismo sistêmico: A identidade pessoal se baseia na continuidade física do organismo (cérebro, corpo e ambiente) e depende da manutenção física suficiente e não ramificada.
1.2. Psicologismo A identidade pessoal é baseada na continuidade ou conexão mental da memória e experiências.
1.2.1 Psicologismo conexcionista: a identidade pessoal se baseia em conexões diretas entre experiências ou traços psicológicos.
1.2.2. Psicologismo continuista: A identidade pessoa baseia-se em cadeias sobrepostas de conexões psicológicas fortes.
1.2.2.1. Psicologismo continuista estrito: A identidade pessoal ao longo do tempo depende da continuidade psicológica (cadeias sobrepostas de conexões mentais) e da causa normal dessa continuidade. Isto é, apenas mecanismos “naturais” do cérebro e da mente produzem a continuidade.
1.2.2.2. Psicologismo continuista amplo: A identidade pessoal ao longo do tempo depende da continuidade psicológica, mas a causa pode ser qualquer causa confiável. Isto é, A causa pode ser tecnológica, artificial ou incomum, desde que mantenha a continuidade psicológica de maneira segura.
1.2.2.3. Psicologismo continuista ilimitado: A identidade pessoal depende apenas da continuidade psicológica, independente de qualquer causa. A origem da continuidade não importa; qualquer processo que mantenha a cadeia de experiências é suficiente.
2. Não-Reducionismo: A identidade pessoal não se reduz apenas à continuidade física ou psicológica; envolve algo a mais.
2.1. Cartesianismo: A pessoa é uma substância distinta tanto da mente quanto do corpo, sendo um ego ou consciência pura.
2.2. Personalismo não-substancial: sustenta que a pessoa é uma unidade real e irredutível de experiência, necessária para explicar a continuidade e inteligibilidade da vida mental, mas não é uma substância simples, imaterial ou independente do corpo e dos processos psicológicos.
II. RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES CONTRA O PSICOLOGISMO
Para John Locke, o que faz de nós a mesma pessoa que eramos quando criança é a nossa memória, ou “consciência”, de nossas experiências infantis. O bispo Joseph Butler apresenta a seguinte objeção à tese de Locke: é autoevidente que a consciência da identidade pessoal pressupõe a identidade pessoal, e, portanto, não pode constituí-la assim como o conhecimento não pode constituir a verdade que ele pressupõe. Segundo uma interpretação dessa objeção, o argumento seria algo como: “Faz parte do conceito comum de memória que só podemos lembrar experiências nossas. Logo, a continuidade da memória pressupõe identidade pessoal. Portanto, o mesmo vale para a Relação R (a relação psicológica de continuidade). Você afirma que a identidade pessoal consiste na Relação R; mas isso é falso se a própria Relação R pressupõe identidade pessoal.”
Para responder à objeção, podemos definir um conceito mais amplo: a quasi-memória. Tenho uma quasi-memória precisa de uma experiência passada quando: (i) parece-me que estou me lembrando da experiência; (ii) alguém realmente teve essa experiência; (iii) minha aparente lembrança é causada por essa experiência passada de maneira adequada. Memórias comuns são apenas um caso especial de quasi-memórias: são quasi-memórias de experiências nossas.
Agora podemos voltar à objeção de Butler. Segundo ele, a continuidade da memória não pode constituir, nem parcialmente, o que faz de várias experiências os eventos de uma única pessoa, porque a memória dessa pessoa pressupõe sua identidade contínua. Mas, na interpretação que estamos considerando agora, a memória pressupõe identidade apenas porque, em nosso conceito usual, só lembramos nossas próprias experiências. Essa objeção pode ser neutralizada usando o conceito mais amplo de quasi-memória.
Ao reformular o Critério Psicológico, não precisamos afirmar que, se tenho uma quasi-memória precisa de uma experiência passada, isso já me torna a pessoa que teve essa experiência. Uma vida mental pode conter algumas quasi-memórias de experiências que ocorreram na vida de outra pessoa. O ponto central é outro: apelamos para cadeias sobrepostas de muitas conexões desse tipo, como fios entrelaçados formando uma corda.
Há forte conectividade de quasi-memória quando, ao longo de cada dia, existe um número suficiente de conexões diretas, comparável ao que ocorre em vidas humanas comuns. Fios sobrepostos de forte ligação fornecem continuidade de quasi-memória. Reformulando Locke, podemos dizer que a unidade da vida de uma pessoa é criada, em parte, por essa continuidade. Não estamos apelando a um conceito que pressupõe identidade pessoal. Como a continuidade de quasi-memória não pressupõe identidade, ela pode constitui-la, ao menos parcialmente (uma vez que o critério também inclui outros tipos de continuidade psicológica).
No entanto, outra interpretação da objeção do bispo Butler é a seguinte: “Na memória, estamos diretamente conscientes de nossa própria identidade ao longo do tempo, e conscientes de que essa identidade é um fato adicional — algo que não pode consistir apenas em continuidade física ou psicológica. Temos consciência de ser um sujeito persistente de experiências, algo distinto do cérebro e do corpo.”
Em certo sentido, isso é verdade: mesmo reduccionistas não negam que pessoas existem. Pelo conceito comum, pessoas não são pensamentos, mas os sujeitos que os têm. O reduccionista pode aceitar que uma pessoa é “o sujeito de experiências”, mas apenas no sentido linguístico, não como uma entidade separada, distinta do cérebro e dos processos físicos e mentais. A pergunta é: estamos diretamente conscientes de ser um Ego cartesiano? A resposta parece ser negativa para muitos de nós e mesmo supondo que tivéssemos essa consciência, ainda haveria uma objeção ao cartesianismo: como Locke e Kant argumentaram, pode haver uma sucessão de “egos” psicologicamente contínuos, como bastões sendo passados em uma corrida de revezamento. Não perceberíamos a troca. Portanto, não podemos saber que tais entidades persistem.
Do ponto de vista fenomenológico, nossas experiências não nos dão razão para acreditar em um sujeito separado. Sem outras razões, deveríamos rejeitar essa crença. Podemos dizer que existem “pensadores” porque atribuímos pensamentos a alguém; mas isso não implica que o “pensador” seja uma entidade metafisicamente separada.
Uma proposta intermediária, contudo, consiste em rejeitar tanto o reducionismo quanto o cartesianismo. Essa posição, chamada de personalismo não-substancial, adota três teses: (i) não existem egos cartesianos; (ii) não podemos descrever experiências sem nos referirmos à pessoa que as tem; (iii) a unidade de uma vida mental não pode ser explicada de forma impessoal. Essa é a posição de Strawson, Shoemaker e Kant. Strawson, inspirado em Kant, argumenta que só podemos ter conhecimento do mundo se tivermos consciência de nós mesmos como pessoas com identidade temporal. Shoemaker desenvolve ideias semelhantes. Se válidos, esses argumentos refutariam a ideia de que nossas vidas podem ser descritas sem referência pessoal.
De qualquer modo, mesmo que mencionemos pessoas ao descrever o conteúdo de pensamentos e desejos, isso não significa que esses eventos são de uma entidade metafisicamente distinta. Dado isso, Georg Lichtenberg observa que Descartes deveria ter dito “há um pensamento ocorrendo” e não “penso, logo existo”. Podemos descrever pensamentos e suas relações sem atribuí-los a um ego substancial. Na verdade, Descartes até poderia ter dito “penso, logo existo”, mas errou ao concluir que esse “eu” é uma entidade separada do corpo e dos eventos mentais.
Alguns filósofos afirmam que o conceito de um Ego cartesiano é ininteligível. Essa alegação, contudo, é falsa. Em princípio, poderia haver evidências empíricas que sustentassem uma concepção cartesiana do ego. Por exemplo, poderíamos ter fortes indícios de reencarnação. Mas, de fato, não possuímos o tipo de evidência que daria suporte a tal visão. Mesmo que a noção de um Ego Puro cartesiano, ou de uma substância espiritual, seja coerente e compreensível, não temos fundamentos empíricos para acreditar que tais entidades existam. Tampouco há evidência para qualquer outro tipo de entidade pessoal que exista separadamente. Em contraste, possuímos evidências convincentes de que o cérebro é o portador da continuidade psicológica e de que a conexão psicológica pode variar ao longo de um contínuo de graus.
Alguns defensores dos Egos cartesianos, contudo, não vinculam sua posição a fatos publicamente observáveis ou introspectivamente acessíveis. Eles aceitam a possibilidade de que o Ego cartesiano que você é agora possa, de repente, deixar de existir e ser substituído por outro Ego que herda todas as suas características psicológicas, à semelhança de corredores que trocam o bastão em uma corrida de revezamento. Nesta versão cartesiana sem características, você poderia deixar de existir enquanto lê esta página, e seu corpo poderia ser assumido por uma nova pessoa exatamente como você. Ninguém jamais poderia detectar tal mudança. Não poderia haver qualquer evidência pública ou privada mostrando se isso ocorre ou, caso ocorra, com que frequência. Portanto, não podemos nem mesmo afirmar que tais eventos são improváveis.
Quando a crença em Egos cartesianos é desvinculada, dessa forma, de qualquer conexão com fatos observáveis ou introspectivamente acessíveis, a acusação de ininteligibilidade se torna mais plausível. Não está claro se os cartesianos podem evitar cair nessa versão sem características da sua própria posição. De todo modo, temos razões suficientes para rejeitar o cartesianismo.
Bernard Williams apresenta outra objeção ao Critério Psicológico da identidade pessoal, que procura mostrar que a continuidade psicológica não é suficiente para garantir a persistência de uma pessoa. Em seu exemplo, um neurocirurgião poderia manipular o cérebro de um indivíduo de modo a causar amnésia, implantar falsas memórias ou alterar o caráter. Williams argumenta que, mesmo diante de grandes interrupções na continuidade psicológica, a pessoa continuaria a existir desde que o cérebro e o corpo permanecessem funcionalmente ativos. Essa linha de raciocínio sugere que a identidade pessoal depende, sobretudo, da continuidade física, o que favoreceria o Critério Físico.
Em resposta, os defensores do Critério Psicológico propõem o conceito de Espectro Psicológico. Trata-se de uma série de casos imaginários que variam gradualmente no grau de continuidade psicológica. A lógica do espectro indica que não há um ponto crítico abrupto no qual a pessoa deixa de existir, pequenas perdas de memória ou mudanças de caráter não resultam em extinção da identidade pessoal. Assim, se aceitarmos que a identidade pessoal não pode depender de limites arbitrários, é plausível sustentar que a continuidade psicológica permanece relevante mesmo em casos extremos.
Além disso, a análise inclui o Espectro Físico e o Espectro Combinado, nos quais se consideram variações na continuidade física e psicológica simultaneamente. Essa abordagem reforça que a dependência absoluta de uma parte crítica do cérebro ou de um percentual específico para manter a identidade é improvável, evidenciando que o Critério Psicológico não é incompatível com a persistência do indivíduo em condições de alterações graduais.
Finalmente, a defesa do Critério Psicológico incorpora a ideia de que a continuidade psicológica é causalmente dependente de processos físicos no cérebro, sem necessidade de postular entidades separadas ou egos cartesianos. Dessa forma, responde-se à objeção de Williams mostrando que a identidade pessoal pode ser entendida em termos de continuidade psicológica gradativa e não como um salto abrupto determinado por limites críticos ou pela existência de uma substância separada.
III. POR QUE A IDENTIDADE PESSOAL NÃO IMPORTA?
A identidade pessoal ao longo do tempo, entendida como a questão de ser numérica e estritamente a mesma pessoa, não é aquilo que realmente importa do ponto de vista moral ou prático. O que importa são os laços de continuidade psicológica, isto é, a conectividade das memórias, crenças, desejos e experiências que constituem a vida de um indivíduo. A preocupação central não é se “sou exatamente a mesma pessoa” em termos metafísicos, mas se há uma transmissão de experiências e características psicológicas que sustenta o que valoramos em relação à nossa vida.
O caso da mente dividida ilustra claramente essa tese. Imagine uma pessoa cujo cérebro é dividido de modo que cada hemisfério mantém um fluxo independente de consciência. Após a divisão, surgem dois indivíduos distintos, cada um possuindo uma continuidade psicológica parcial com o original. Do ponto de vista da identidade pessoal estrita, surge um problema: quem é o verdadeiro “eu” que sobreviveu? É impossível responder de forma definitiva. Contudo, do ponto de vista da continuidade psicológica, cada indivíduo mantém laços significativos com o original, como memórias, características de personalidade e traços psicológicos, o que garante que cada um preserve algo do “eu” original que realmente importa para interesses e valores.
Insistir na identidade pessoal como uma entidade numérica e indivisível é irrelevante para avaliar o que de fato nos importa. Nos casos de mente dividida, ainda que não exista uma única pessoa continuando, cada resultado preserva a experiência, os interesses e os desejos originais, demonstrando que o valor da sobrevivência não depende da identidade pessoal em sentido estrito. Assim, o que importa é a continuidade e o grau de conectividade psicológica, e não a questão metafísica de “ser a mesma pessoa”.
Abandonar a ideia de que existe um “fato adicional” sobre a identidade pessoal, um núcleo metafísico, indivisível e essencial que define quem eu sou, não é algo triste, e sim libertador. Para o não-reducionista, segundo a qual há um Ego ou um “eu profundo” cuja existência é tudo ou nada, a vida é como um túnel de vidro: fechado, estreito e acelerado em direção a uma escuridão final. A morte, nesse contexto, significava o fim absoluto de um “eu” entendido como uma entidade separada.
Ao adotar o reducionismo, esse túnel desaparece. Não existe um “fato profundo” sobre ser a mesma pessoa; a existência pessoal é apenas uma questão de continuidade psicológica e física, composta pelos eventos mentais e corporais que se encadeiam. Com isso, descobrimos que não estamos mais confinados dentro de um ego substancial, mas parte de uma rede contínua de relações humanas. A diferença entre a nossa vida e a vida das outras pessoas diminui, as outras pessoas tornam-se mais próximas e importantes.
Esse novo modo de ver também transforma nossa relação com a morte. Para o não-reducionista, a morte pode parecer algo absolutamente terrível porque significa que ninguém mais será quem nós somos. O reducionismo psicológico permite descrever a morte de outro modo: não haverá, no futuro, experiências conectadas às nossas experiências presentes. Mas isso não significa que nada de nós sobreviva. Permanecerão memórias, influências, conselhos e efeitos indiretos, além de relações mais fracas de continuidade psicológica. Abandonar a identidade pessoal como algo metafisicamente profundo é, ao invés de deprimente, consolador e libertador.
IV. IDENTIDADE PESSOAL E RACIONALIDADE
A teoria psicologista da identidade pessoal sugere que o que realmente importa para o futuro de uma pessoa não é a identidade absoluta de um “eu” contínuo, mas sim a conectividade e a continuidade psicológica entre estados mentais presentes e futuros. Essa visão desafia a concepção clássica do Egoísmo Racional, segundo a qual cada indivíduo deve agir sempre de modo a maximizar seu próprio bem-estar ao longo de todo o seu futuro, presumindo que todas as partes desse futuro pertencem igualmente ao mesmo “eu”.
Ao adotar o critério psicológico, podemos argumentar que é racional preocupar-se menos com partes do futuro em que a continuidade psicológica é fraca, mesmo que essas partes pertençam ao mesmo corpo ou cérebro. O Egoísmo Racional Clássico assume erroneamente que a identidade pessoal absoluta é necessária para justificar a preocupação com o próprio futuro. A teoria psicologista mostra que o que fundamenta nossa preocupação racional não é pertencer a um “eu” indivisível, mas a manutenção das relações psicológicas significativas, como memória, intenções, desejos e outras conexões mentais, que ligam nosso eu presente ao eu futuro.
Dessa forma, a teoria psicologista permite reformular o Egoísmo Racional: não precisamos tratar todas as partes do futuro como igualmente importantes, mas apenas aquelas com as quais mantemos forte continuidade psicológica. Isso implica que é possível agir racionalmente em relação ao próprio interesse sem depender de uma identidade pessoal substancial ou absoluta, rompendo a ligação tradicional entre o autointeresse e identidade pessoal. Essa perspectiva leva, pois, a um Egoísmo Racional Revisado, que se aproxima de uma Teoria Crítica da Finalidade Presente, na qual a racionalidade e a preocupação própria se baseiam não em um ego contínuo e indivisível, mas na força das relações psicológicas presentes, permitindo agir de forma racional mesmo quando a identidade pessoal futura não é totalmente preservada.
V. IDENTIDADE PESSOAL E MORALIDADE
O Reducionismo Psicológico sustenta que a identidade pessoal não é um fato profundo “tudo ou nada”, mas depende de continuidade física e psicológica ao longo do tempo. Essa mudança de perspectiva gera implicações significativas para a moralidade, tanto em princípios gerais quanto em casos concretos. Consideramos as implicações do psicologismo para os seguintes problemas morais:
(1) Paternalismo e imprudência:
Quando alguém age contra seus próprios interesses, podemos justificar intervenções paternalistas se houver risco de grande dano. Embora normalmente não tenhamos o direito de impedir que alguém aja irracionalmente, se o Reducionismo psicológico mostra que a identidade pessoal não é absoluta, a proteção contra erros graves torna-se moralmente defensável. A autonomia não garante o direito de infligir a si mesmo grandes danos sem justificativa.
(2) Moralidade do aborto:
No início da gravidez, o Reducionismo psicológico permite considerar que o óvulo fertilizado ainda não constitui uma pessoa completa. Portanto, abortos precoces não são moralmente equiparáveis à morte de uma pessoa. À medida que o desenvolvimento avança, a continuidade psicológica aumenta, e a destruição do organismo passa a ser moralmente mais grave. Essa abordagem permite avaliar o aborto de forma gradual, reconhecendo que a gravidade moral cresce com o desenvolvimento da pessoa.
(3) Fim da vida e cuidados médicos:
Se a consciência e as características mentais distintivas se perdem antes da morte biológica, a pessoa deixa de existir enquanto sujeito moral. Nesses casos, pode-se argumentar que prolongar a vida ou impedir a morte não é moralmente obrigatório, pois a entidade que mereceria proteção deixou de existir. A distinção entre pessoa e organismo biológico torna-se central na avaliação ética do final da vida.
(4) Merecimento moral e crimes passados:
No Reducionismo psicológico, sem um “fato profundo” de identidade, não há base moral para afirmar que alguém merece punição por crimes cometidos por um “eu” anterior. A continuidade psicológica pode justificar medidas preventivas ou cautela, mas a atribuição de merecimento absoluto é questionável. Isso muda a forma de pensar sobre justiça penal e responsabilidade moral.
(5) Compromissos e promessas:
A obrigação de cumprir promessas depende da continuidade psicológica. Se esta se enfraquece, os compromissos podem perder força, mas é possível criar promessas estruturadas para incluir todos os “eus futuros”, garantindo a efetividade ética de compromissos ao longo do tempo.
(6) Princípios distributivos:
O Reducionismo psicológico incentiva avaliar cada experiência individualmente, em vez de considerar vidas inteiras como unidades morais. Isso reforça políticas que priorizam a redução de sofrimento imediato, em vez de maximizar benefícios totais ao longo de toda a vida. A unidade moral deixa de ser a pessoa como um todo e passa a ser estados particulares de bem-estar, tornando a atenção à qualidade das experiências concretas mais relevante que a igualdade global de recursos ou felicidade.
(7) Separação de pessoas e escopo moral:
Ao tratar pessoas como conjuntos de experiências sem um núcleo profundo de identidade, o Reducionismo psicológico amplia o escopo moral. Cada experiência importa, independentemente da identidade contínua, permitindo justificar preocupação moral com qualquer pessoa ou momento específico, sem depender de um “eu profundo” e indivisível.

Comentários