LEIA TAMBÉM (CLIQUE NA IMAGEM)

INTRODUÇÃO AO DISCURSO DO MÉTODO DE RENÉ DESCARTES

 

O objetivo deste texto é servir como uma Introdução do Discurso do Método do filósofo René Descartes. Discurso do Método (DM), publicado em 1637, é uma das obras fundadoras da filosofia moderna, pois nela René Descartes estabelece os princípios de um novo modo de pensar que articula filosofia, método e ciência. Trata-se de um texto que não apenas propõe um método universal para o conhecimento, mas também apresenta uma dimensão autobiográfica e prática, revelando o itinerário intelectual do próprio autor. A divisão do texto em seis partes, feita pelo próprio Descartes, possui fins didáticos, permitindo a exposição gradual de sua concepção de conhecimento e de sua metodologia racionalista. A seguir, serão analisadas detalhadamente as Partes I, II e III do Discurso do Método, com ênfase em seus principais conceitos e implicações filosóficas. 

 

PARTE I: CONSIDERAÇÕES DIVERSIFICADAS SOBRE A CIÊNCIA  

 

A primeira parte do Discurso do Método é marcada por um tom autobiográfico e introdutório. Nela, Descartes reflete sobre sua formação e exprime seu descontentamento com o estado das ciências e da filosofia de sua época. Após ter estudado nas escolas tradicionais e viajado por diversos países, o filósofo percebeu que havia uma grande variedade de opiniões entre os pensadores e entre os povos, o que o levou a desconfiar de todo o saber herdado. Diante dessa diversidade e contradição, Descartes conclui que não podia confiar na autoridade dos mestres nem nas tradições, mas apenas na própria razão, que é igualmente distribuída em todos os seres humanos. 

Um lema fundamental no pensamento cartesiano é que não se pode confiar em que já nos enganou pelo menos uma vez. Isso não significa que não possamos vez ou outra ter certa confiança em nossos sentidos, na autoridade de importantes filósofos ou na ciência, mas sim que o fundamento do conhecimento não pode ser falível. Nossos sentidos e a tradição por vezes nos enganam, logo eles não podem ser a base sobre a qual se constrói o edifício do saber. Nesse sentido, do ponto de vista epistemológico, Descartes era um fundacionalista infabilista. Na epistemologia distinguimos as seguintes posições: 

(1) Fundancionalismo: é a posição de que o conhecimento precisa ser construído a partir de um fundamento que, por sua vez, não é derivado de nenhum outro. 

(2) Coerentismo: é a posição de que a justificação do conhecimento é circular, basta que um sistema de crença seja internamente consistente, sem necessidade de um fundamento inicial básico. 

(3) Infinitismo: não existe um fundamento básico para o conhecimento, nem o sistema se justifica de forma circular, mas toda sentença do sistema se justifica em termos de outra crença e assim infinitamente. 

Descartes considerava o coerentismo e o infinitismo obviamente falsos. Comecemos pelo coerentismo. A metáfora do coerentismo é a de alguém calçando um sapato. O sapato serve tão perfeitamente no pé, que é óbvio que aquele sapato foi feito para aquele é e aquele pé é o pé certo para aquele sapato. Mas em algum nível o sapato se explica em termos do pé e o pé em termos do sapato. Se alguém pergunta: “por que o pé cabe no sapato?” A resposta é:: “por que esse sapato é o número certo para esse pé”. Mas daí se alguém pergunta “por que o sapato é o número certo para esse pé?” A resposta é “é porque o pé cabe no sapato”.  

Em um sistema coerentista a verdade de uma dada crença A é justificada em termos da verdade de B, e B da verdade de C, C da verdade de D, D da verdade de E, E em termos da verdade A, de modo que o círculo se feche, mas não há nenhuma crença que seja “a mais fundamental”. É como em um círculo onde nenhum ponto é mais importante, mas a figura se fecha em si mesma. Alguns coerentistas dizem que o sistema de crença que é internamente coerente consigo mesmo se prova verdadeiro, enquanto os sistemas falsos são aquelas que se autodestroem, como o ouroboros comendo o próprio rabo.  

Considere o exemplo do relativismo. Os relativistas afirmam “não existe verdade”, mas essa crença, se for verdadeira, cria uma contradição, porque um relativista deveria crer que a sentença “não existe verdade” é verdadeira, mas se ela é verdadeira, então existem verdades. Por outro lado, se ela for falsa, então também existe verdade. Logo, um sistema que tenha como parte de si a sentença “não existe verdade” se autodestrói. Descartes concordava com isso: se um sistema é incoerente, então ele é falso. Mas ele discordava de que se um sistema é coerente, então ele é necessariamente verdadeiro.  

De ilustração, pense na saga Harry Potter. Trata-se de um universo internamente coerente consigo mesmo. Poderia ser o caso que houvesse um mundo bruxo convivendo em segredo com o mundo trouxa, mas o fato desse universo ser coerente consigo mesmo não significa que ele é verdadeiro. Para Descartes, coerência não garante verdade. O coerentismo, por não ter um fundamento sólido, era como um grupo de bêbados segurando um no outro tentando não cair ou como o barão de Münchhausen tentando se salvar da areia movediça puxando a si mesmo.  

Descartes também acreditava que o infinitismo era obviamente falso. Nele, uma crença A é justificada por uma crença B, que é justificada por C, que por sua vez é justificado por D, depois por E eassim infinitamente, sem retornar a A. Na filosofia, é amplamente aceito que uma regressão infinita na série de justificação não pode ser o caso. Pense na ilustração de uma engrenagem, com todas as suas rodas girando. Eu posso dizer que o que faz mover a roda 1 é a roda 2, o que faz mover a roda 2 é a 3, o que faz mover a 3 é a 4 e assim por diante. Mas certamente não faz sentido eu responder “não há uma primeira roda que move todas as demais”. Não pode ser, uma engrenagem só pode ser colocada em movimento se uma roda inicial está sendo movida por um motor, senão não há movimento.  

Descartes acreditava que do mesmo modo que na engrenagem, que se não há uma crença que é a base inicial da qual se deriva as demais verdades, então as demais crenças não podem ser garantidas como sendo verdadeira. A verdade é algo que se transmite assim como o movimento, e se não há uma verdade inicial, então não há como garantir a verdade do sistema. Por isso Descartes era um fundacionalista. Para ele, o conhecimento é como um edifício que só se sustenta de pé, se há uma base sólida e uma casa construída pela areia desmorona, um castelo de cartas construído sobre um pano cai caso o pano seja puxado. 

Por causa disso, além de um fundacionalista, Descartes também era infalibilista. O alicerce da casa precisa ser uma verdade infalível, que não seja suscetível à dúvida, porque se houver qualquer risco da base ser falsa, toda a construção fica comprometida. Os falibilistas são aqueles que em filosofia acreditam que a base pode ser falível, mas se isso for assim, estaríamos construindo todo o edifício do conhecimento sobre uma areia movediça. Os tijolos das paredes até podem ser falíveis, mas não o chão da casa. Por isso, Descartes precisava de um método para garantir que o solo do conhecimento fosse uma verdade infalível.  

Para Descartes, as filosofias de sua época não forneciam esse fundamento infalível nem o método adequado para alcançá-lo. Essa crítica ao conhecimento da época é o ponto de partida de seu projeto filosófico. Descartes denuncia a esterilidade do ensino escolástico e a multiplicidade de sistemas filosóficos que, ao invés de conduzir à verdade, geravam apenas disputa e incerteza. Os tomistas de um lado reinvidicavam a verdade do seu sistema, os nomilastas de outros os do seu, de outro lado os escotistas, de outro os lulianos e de outros os suarezianos... Mas não podiam todos esses diversos sistemas escolásticos e medievais estarem certos 

Mas ao invés de criticar um a um para tentar descobrir qual o correto, Descartes prefere chamar a atenção para o problema dos fundamentos. É mais fácil identificar notas de dinheiro falsas, quando se sabe quais são as marcas de uma nota verdadeira do que quais são as características das falsas. Quando o solo seguro do conhecimento fosse identificado, então seria possível construir adequadamente o edifício do conhecimento e identificar porque os outros sistemas estavam baseados em um solo frágil se fosse o caso. Eles até poderiam ser verdadeiros, mas sua verdade não estava garantida enquanto não se garantisse a verdade do seu fundamento. 

 Por isso, o filósofo decide, então, procurar um saber firme e seguro, fundado na evidência da razão. O Discurso foi escrito em francês, e não em latim, justamente para alcançar um público mais amplo e não apenas os eruditosuma escolha coerente com sua intenção de reformar o modo de pensar de todos os homens. Contudo, essa opção linguística também explica por que a metafísica apresentada na Parte IV do Discurso aparece de modo mais sintético e menos elaborado do que nas Meditações. É nas meditações que Descartes mostrará com mais clareza que é só a intuição pura e imediata do cogito que fornece o solo seguro e indubitável do conhecimento, mas aqui ele prefere discutir questões metodológicas mais acessíveis ao grande público. 

Assim, a primeira parte do Discurso representa uma preparação do caminho para o método, uma espécie de sondagem inicial em que Descartes estabelece o motivo e a necessidade de reformar o saber. É o momento da dúvida e da tomada de consciência da insuficiência das ciências existentes. Essas ciências tinham em parte bons pontos, mas os misturavas com erros e obscuridades que afetavam sua segurança. Um exemplo era a Arte Magna do beato Raimundo Lúlio, que embora conservasse certos elementos lógicos e silogísticos úteis, tinha vários outros que soavam misticismo, combinações obscuras de letras e ambições extravagantes, como provar só com a razão o dogma da Trindade e da encarnação de Cristo. 

 

PARTE II: AS REGRAS PRINCIPAIS DO MÉTODO 

 

A segunda parte do Discurso é o núcleo propriamente metodológico da obra. Nela, Descartes propõe quatro regras fundamentais que constituem o método cartesiano, concebido como uma via segura para conduzir a razão no caminho da verdade. Antes, porém, ele apresenta uma crítica às disciplinas tradicionais, a lógica, a análise geométrica dos antigos e a álgebra dos modernos, mostrando que todas, apesar de conterem elementos úteis, possuíam também defeitos que comprometiam seu valor para o verdadeiro conhecimento. 

A lógica, baseada em silogismos, servia mais para explicar a outros o que já se sabia do que para descobrir novas verdades. Tome, por exemplo, as figuras de raciocínio da lógica aristotélica, depois sistematizada pelos medievais com nomes mnemônicos. Saber, por exemplo, que o silogismo BÁRBARA é válido, isto é, que se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também o é, não nos permite descobrir nenhuma verdade. Se soubermos qual a crença fundante que é verdadeira, podemos usar a lógica para derivar o resto do sistema, mas a lógica não nos dá a base do sistema, mas apenas as regras para a dedução.  

 A análise geométrica, por sua vez, embora rigorosa, lidava com objetos demasiadamente abstratos e dependia excessivamente da imaginação. A imaginação é a faculdade ligada à sensibilidade que permitia pensar como figuras geométricas poderiam se arranjar no espaço: figuras que eram sempre ideais, jamais encontradas no mundo empírico. O espaço, caracterizado pela extensão, é, na realidade, uma ideia pura, que nos permite compreender os objetos físicos. A geometria poderia fornecer verdades euclidianas – como que a menor distância entre dois pontos é uma linha reta, mas seus axiomas não permitiam extrapolação para além de seu campo. Hoje sabemos, com as geometrias não-euclidianas, que essas verdades estavam confinadas ao espaço plano e nem pode garantir o fundamento seguro de todo conhecimento sobre o espaço. 

Por fim, a álgebra, com suas regras e cifras, tornava-se confusa e obscura. Tudo que é obscuro atrapalha o espírito. Para Descartes, a verdade é clara. Linguagem difícil, distinções escolásticas obscuras, conceitos confusos podem até fazer um trabalho filosófico parecer bonito e sofisticado, mas é justamente isso que afasto o espírito da verdade e o faz se perder no labirinto de confusões. O filósofo deve pensar e escrever com clareza e a álgebra não tinha essa clareza. 

Aqui Descartes tem em mente álgebra simbólica que começava a se desenvolver nos séculos XVI e XVII, especialmente com matemáticos como Viète e os primeiros algebristas renascentistas. Essa álgebra era uma técnica de resolução de equações gerais por meio de símbolos e operações formais, e não o simples cálculo com números (como na aritmética). Descartes admirava a álgebra por sua generalidade, ela permitia representar problemas geométricos e numéricos por meio de expressões universais, mas também a criticava porque, segundo ele, se tornara confusa e excessivamente técnica, com regras e cifras que obscureciam o pensamento em vez de clareá-lo. Ele queria uma ciência mais transparente e intuitiva, que unisse a clareza da geometria com o poder analítico da álgebra. 

Diante disso, Descartes propõe um novo método que preserva as vantagens dessas disciplinas, mas elimina seus inconvenientes, visando um conhecimento claro, distinto e universal. As quatro regras do método são apresentadas como princípios simples, porém de aplicação rigorosa e prática. Essas regras são:  

 

(1) Regra da Evidência: a primeira é a regra da evidência, que exige não aceitar nada como verdadeiro sem o reconhecimento claro e distinto de sua veracidade, evitando a pressa e o preconceito. Descartes era um intuicionista, ele acreditava que certas ideias podiam ser conhecidas por intuição intelectual pura e imediata. Considere uma verdade do tipo 2+2=4, como sabemos que isso é verdadeiro? Os intuicionistas na matemática dizem que é “claro e evidente” que a soma de dois e dois resulta 4. Percebemos isso com os “olhos do intelecto”, e essa apreensão intelectual é chamada de “intuição”. A intuição não é um mero seeming, não é como dizer “me parece que 2+2=4”. A clareza pertence à ideia não ao sujeito. É a ideia que se impõe como algo do qual não é possível duvidar. 

Para Descartes, nos nascemos com certas ideias, as chamadas ideias inatas. A princípio, é como se estivéssemos inconscientes delas. No entanto, o contato com o mundo empírico “desperta” em nós o conhecimento dessas ideias. Descartes, ao contrário do que muitos pensam, acrediatava que todo conhecimento começa com a experiência. É a experiência sensível que desperta nossa intuição. Mas a nossa intuição apreende algo cuja fonte não é a experiência, mas sim o próprio intelecto. É por isso que Descartes é um racionalista. O racionalismo é a posição em filosofia segundo a qual o conhecimento envolve a cognição que toma consciência de ideias que não tem uma fonte empírica, ainda que essa cognição precise ser despertada por algo que começa na experiência. A posição oposta, a de que todo conhecimento envolve a consciência da cognição de um dado empírico particular é chamada de Empirismo.  

Descartes acreditava que há na nossa mente tanto ideias inatas quanto ideias que são oriundas dos sentidos. Para Descartes, todas as operações do pensamento (imaginar, perceber, querer, julgar, se referem a ideias, entendidas como conteúdos da mente (ou modos do pensamento). Essas ideias podem ser classificadas segundo sua origem: (i) ideias inatas: são aquelas que nascem com a própria razão; (ii) ideias adventícias: São aquelas que parecem vir de fora, isto é, da experiência sensível; (iii) Ideias factícias: são aquelas formadas pela imaginação, combinando outras ideias (como a ideia de sereia ou de quimera). 

Assim, nossa mente é como uma piscina de bolinhas. Suponha uma psicina com bolinhas de três cores (brancas, vermelhas e azuis). As brancas sempre estiveram na piscina, mas nunca nos demos conta delas. Foram quando as bolinhas vermelhas começaram a chegar que fomos começando a perceber as brancas. As bolinhas vermelhas são as ideias adventícias. Depois, combinando ideias adventícias, formamos ideias factícias, que na analogia são as bolinhas azuis. O filósofo é aquele que tem o trabalho de separar o joio do trigo, de separar as bolinhas brancas e deixá-las em evidências. Na nossa analogia, poderíamos adaptar o exemplo e dizer que as bolinhas brancas são translúcidas, elas têm uma luz especial, uma clareza inconfundível que as distingue das demais. Essa luz é o que Descartes chama de “clareza e distinção” e são apenas essas ideias que podem estar na base do conhecimento.  

Clareza e distinção somente estão presentes quando uma ideia se impõe de forma que é impossível duvidar dela. Esse “não poder duvidar” não é no sentido de que “dada minha formação”, eu não posso duvidar, mas sim que é impossível para um ser racional, tendo a mente livre de preconceitos e viéses, duvidar dessa ideia porque ela se impõe de forma indubitável. O caso mais ilustrativo é o cogito, é uma ideia impossível de ser colocada em dúvida e não é porque eu possa inferir de que se duvido, logo penso (Descartes nunca propôs o cogito como uma inferência), mas sim porque o cogito é um dado imediato autoevidente 

Assim, o conhecimento verdadeiro deve se impor à mente com tal nitidez e distinção que se torne impossível duvidar dele. Essa regra implica uma rejeição da probabilidade e dos juízos provisórios: entre o verdadeiro e o falso não há meio-termo. Descartes inaugura, assim, o modelo de certeza absoluta que marcará a filosofia moderna, fundado na autonomia da razão e na rejeição de toda autoridade externa como critério de verdade. 

 

(2) A Regra da Análise (ou da Divisão): A segunda regra consiste em dividir cada dificuldade em tantas partes quanto possível e necessário para melhor resolvê-la. Inspirada no método matemático, essa regra visa a decompor o complexo em seus elementos simples, reduzindo o obscuro ao claro. A análise é, portanto, o processo pelo qual o pensamento destrincha os problemas até encontrar os primeiros princípios evidentes: as ideias simples que servirão de base para a reconstrução ordenada do conhecimento. Essa decomposição tem um papel heurístico: ao dividir o todo em partes elementares, a mente adquire clareza e controle sobre o objeto de estudo. 
Na prática, essa regra introduz o princípio da redução do complexo ao simples, o que torna possível tratar qualquer problema, inclusive os filosóficos, com o mesmo rigor e método aplicados às ciências exatas. Trata-se, aqui, da primeira parte do método de análise e síntese.  A análise e a síntese aparecem em Descartes não apenas como procedimento técnico, mas como estrutura epistemológica que delimita a natureza e o alcance do conhecimento humano. 

    Essas regras, a análise e a síntese, exprimem a dupla natureza do método cartesiano. Por um lado, a análise (decomposição) é o caminho da descoberta, partindo dos efeitos em direção às causas; por outro, a síntese é o caminho da exposição e da prova, mediante o qual as verdades são deduzidas umas das outras com base em princípios evidentes. Descartes reconhece a análise como mais verdadeira e apropriada ao ensino, pois revela o percurso efetivo da descoberta, enquanto a síntese possui maior força de convencimento, embora não mostre o processo de invenção. 

Assim, a análise cartesiana é essencialmente heurística, enquanto a síntese é demonstrativa. Uma heurística, portanto, é um método ou caminho de descoberta de verdades ou soluções, em contraste com um método demonstrativo, que apenas prova ou expõe verdades já conhecidas.  A partir dessa distinção, Descartes procura unir o melhor da análise dos geômetras antigos e da álgebra dos modernos, corrigindo os defeitos de uma por meio da outra e elaborando um método que pudesse ser aplicado a todas as ciências. 

 

(3) A Regra da Síntese (ou da Ordem) 

A terceira regra prescreve conduzir os pensamentos por ordem, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer e ascendendo gradualmente aos mais compostos. Essa regra complementa a anterior: se a análise decompõe, a síntese recompõe. Para Descartes, o pensamento deve seguir uma ordem racional, análoga àquela que se observa nas demonstrações geométricas, em que cada passo se encadeia logicamente ao anterior. Mesmo quando não há uma ordem natural entre os objetos, o espírito deve presumi-la, impondo uma sequência metódica à investigação. 
O objetivo é que, seguindo sempre do simples ao composto, nenhuma verdade permaneça inacessível: toda proposição, por mais complexa que pareça, pode ser alcançada se se partir de princípios evidentes e se avançar gradualmente com clareza. Essa concepção reflete a confiança cartesiana no poder da razão e na estrutura ordenada da realidade, que pode ser compreendida através de um método rigoroso. 

 

(4) A Regra da Enumeração (ou Revisão Geral) 

A quarta e última regra recomenda efetuar revisões tão completas e enumerações tão gerais que se tenha a certeza de nada omitir. Trata-se de um princípio de verificação e controle, que assegura a exatidão e a completude da investigação. Essa regra é comparável à sétima das Regulae ad Directionem Ingeniionde Descartes já afirmava a importância de revisar todas as etapas do raciocínio de modo contínuo, sem interrupção. No Discurso, ela assume um caráter mais sistemático: a enumeração garante a coerência do processo e evita falhas no encadeamento do raciocínio. 
Além de reforçar o caráter metódico da investigação, essa regra confere ao método cartesiano uma dimensão prática: permite ao sujeito verificar se seguiu corretamente as etapas do pensamento, assegurando que o resultado final seja confiável e completo. 

 

PARTE III – REGRAS DA MORAL TIRADAS DO MÉTODO 

 

Do ponto de vista metodológico, tomando como radicalismo do ponto de partida (como depois chamará Husserl), a ideia de passar em revisão todo o corpo do conhecimento, o filósofo não pode assumir nada como verdadeiro enquanto ainda não tiver lançado o solo seguro do conhecimento. Ele assume um início socrático de situar-se em um lugar de não-saber. No entanto, o filósofo é também uma pessoa real, vivendo a sua vida no mundo. Como o filósofo pode continuar vivendo se durante a etapa metodológica não tem nada em que possa acreditar com firmeza? 

É por isso que Descartes propõe uma moral provisório. A verdadeira ética possui princípios eternos, mas enquanto o filósofo ainda não estabeleceu as bases para descobrir e justificar a segurança desses princípios, ele ainda precisa de certas regras provisórias para guiar seu viver no mundo da vida, no mundo dos homens.  Por isso, na terceira parte do Discurso do Método, Descartes introduz o conceito de moral provisória, um conjunto de máximas que serviriam como guia de conduta enquanto o filósofo ainda reconstruía o edifício do conhecimento.  

Como o método exige duvidar de tudo o que não é evidente, o risco seria cair em uma paralisia prática. Para evitar isso, Descartes estabelece uma moral prática e transitória, destinada a garantir estabilidade e prudência durante o período de dúvida. Essa moral tem, portanto, um caráter provisório e propedêutico. O próprio autor utiliza a metáfora de um abrigo temporário — um “alojamento”, no qual se deve permanecer até que o novo edifício do saber esteja construído. Ela não pretende fornecer uma ética definitiva, mas um conjunto de princípios de prudência que permitem viver bem e agir corretamente enquanto se busca a verdade. 

As máximas que compõem essa moral provisória são quatro: 

(1) Obediência às leis e costumes do país: a princípio é uma regra pragmática, enquanto está construindo o corpo do conhecimento e não está certo de quais sãos os seus deveres com a moral eterna, o filósofo faz por bem não se colocar em risco de ser preso ou condenado pela legislação de seu país. Também é seguro manter-se de acordo com os preceitos da religião na qual se foi educado - não é o momento de se colocar em risco de ser condenado por heresia, nem é seguro desafiar dogmas religiosos sem estar certo da verdade.  

Descartes propunha governar-se pelas opiniões mais moderadas, afastando-se dos extremos e seguindo aquelas que fossem comumente aceitas pelos mais sensatos. Para identificar tais opiniões, deveria observar mais o que as pessoas prudentes faziam do que o que diziam. Essa busca pela moderação se justificava pelo princípio de que todo excesso tende a ser prejudicial, e que, ao se manter em equilíbrio, o indivíduo se desviaria menos do caminho correto, mesmo que viesse a errar. Essa primeira regra, portanto, tinha o propósito de garantir prudência comunitária e estabilidade moral, evitando que a dúvida filosófica o levasse à desordem prática. 

 

(2) Ser o mais firme e dedicado possível em suas ações: Para Descartes, uma vez que as ações da vida não admitem atraso, era necessário seguir com determinação até mesmo as opiniões mais duvidosas, desde que fossem adotadas racionalmente. Ele comparava essa atitude à dos viajantes perdidos numa floresta, que devem escolher uma direção e segui-la em linha reta, em vez de ficarem vagando sem rumo. Tal firmeza, ainda que baseada em decisões provisórias, permitiria alcançar algum progresso e, sobretudo, evitar arrependimentos e remorsos. Essa regra visava combater a irresolução e a inconstância, vícios que poderiam paralisar a ação durante o processo de dúvida. 

(3) Procurar vencer a si mesmo antes de procurar vencer o destino: Não é o momento para pensar em mudar o mundo. É mais seguro buscar se tornar uma pessoa melhor do que transformar a coletividade. Não é seguro se tornar um revolucionário antes de estar certo da verdade e um indivíduo deve primeiro transformar a si mesmo antes de querer transformar o mundo.  

Descartes considerava que apenas os pensamentos estão plenamente sob nosso controle; por isso, o sábio deve habituar-se a desejar apenas o que pode efetivamente alcançar. Inspirado na filosofia estoica, ele via nessa regra o segredo da verdadeira liberdade e da tranquilidade interior: ao limitar seus desejos, o indivíduo se torna contente e independente das circunstâncias externas. Essa máxima, portanto, ensinava o autocontrole e a serenidade diante daquilo que escapa ao poder humano. 

 

(4) Empregar toda vida no cultivo da razão e na busca da verdade: Ser filósofo é ser um amante da verdade. Mas o filósofo não ama a verdade no sentido de acreditar possuí-la sem antes ter passado em revisa, pelo crivo da dúvida, todas as suas crenças. O filósofo ama a verdade no sentido de aspirar por ela, de persegui-la e fazer de sua busca o propósito de suas pesquisas. O filósofo não deve ter medo da verdade, não deve temer descobrir que tudo aquilo que acredita com fervor seja falso. Se preciso for demolir tudo que acredita em nome da verdade, deve fazê-lo.  

O filósofo deve se ocupar de buscar a verdade. Descartes considerava essa ocupação a mais doce e inocente possível, pois nela residia o propósito mais elevado da existência humana. Essa máxima refletia sua vocação filosófica e seu compromisso com o método racional como guia para o conhecimento. Segundo o filósofo, se a vontade segue o entendimento, basta julgar bem para agir bem, e nisso consiste a felicidade do homem racional. É fundamental sobretudo a busca pela verdade, por uma vida ética, por uma existência autêntica e por um coração amoroso: um coração que ama a verdade e não descansa enquanto não a encontrar. É o eros do Banquete de Platão, que sempre busca e persegue o bem. Não se pode ser verdadeiro filósofo aquele que não ama a verdade.  

 

A moral provisória de Descartes, embora limitada, possui um papel essencial dentro do Discurso do Método. Ela é o elo entre a dúvida e a reconstrução do saber, evitando que o ceticismo destrutivo paralise a ação. Descartes distingue-se, assim, dos céticos que duvidam apenas por duvidar; sua dúvida é metódica e orientada pela intenção de encontrar um fundamento seguro, a “rocha” firme da verdade, em oposição à “terra movediça” das opiniões. É, nesse sentido, um “ceticismo anticético”, como uma escada que depois de ser usada para subir deve ser abandonada. O ceticismo metodológico deve levar à própria superação do ceticismo, deve conduzir à verdade certa e definitiva.  

Por fim, a moral definitiva, ou perfeita, é apresentada como o último grau da sabedoria, que só pode ser alcançado quando as demais ciências especialmente a medicina e a mecânica, estiverem plenamente desenvolvidas. A moral provisória, portanto, é um passo necessário e funcional dentro do sistema cartesiano, pois garante a continuidade prática da vida enquanto o filósofo busca a certeza teórica do conhecimento. Ela é provisória, novamente, assim como a escada, pois deve levar à descoberta de princípios éticos eternos e imutáveis.  

 

Comentários

FAÇA UMA DOAÇÃO

Se você gostou dos textos, considere fazer uma doação de qualquer valor em agradecimento pelo material do blog. Você pode fazer isso via PIX!

Chave PIX: 34988210137 (celular)

Bruno dos Santos Queiroz

VEJA TAMBÉM

20 MITOS DA FILOSOFIA

CULTURA E SOCIEDADE - ANTHONY GIDDENS

O MITO DA LIBERDADE - SKINNER (RESUMO)

SER E TEMPO (RESUMO)

TRANSTORNO OBSESSIVO - COMPULSIVO (TOC) - TIPOS, CAUSAS, INTERPRETAÇÕES E TRATAMENTO

TEXTOS BÍBLICOS ABSURDOS

SOCIOLOGIA DO CORPO - ANTHONY GIDDENS (RESUMO)

O SER E O NADA (RESUMO)

AS ORIGENS DO TOTALITARISMO - HANNAH ARENDT (RESUMO)

AMOR LÍQUIDO - ZYGMUNT BAUMAN (RESUMO)