A QUESTÃO DA RAÇA EM ACHILLE MBEMBE
A obra Crítica da Razão Negra (2013) de Achille Mbembe faz parte de um projeto mais amplo de crítica ao mundo contemporâneo, junto a Sair da Grande Noite e Políticas da Inimizade. Em vez de uma história das ideias, o livro propõe uma reflexão filosófica e política sobre as formas modernas de dominação, racialização e desumanização. Mbembe mostra como a racionalidade moderna e o projeto iluminista, ao mesmo tempo que proclamaram a razão e a universalidade, fundaram-se na criação de um “Outro” racializado que sustentou o poder e a expansão do Ocidente.
Com a descentralização da Europa e o declínio do
eurocentrismo, o autor observa que as hierarquias raciais não desaparecem, mas
se transformam em formas difusas e neoliberais de controle. Ele questiona se o
fim da centralidade europeia traria o fim do racismo ou apenas sua
reconfiguração. A obra é uma paródia crítica da Crítica da Razão Pura de Kant: se Kant investigou os limites da
razão, Mbembe busca expor o modo como essa razão se comprometeu desde o início
com a racialização e a colonialidade. Para discutir isso, este texto se baseia
na Introdução e Primeiro Capítulo da obra, tratando dos seguintes tópicos: (i)
Vertiginoso Conjunto; (ii) A Raça no Futuro; (iii) Efabulação e
Enclausuramento do Espírito; (iv) Recalibragem; (v) O Substantivo
“Negro”; (vi) Aparência, Verdade e Simulacros.
I. VERTIGINOSO
CONJUNTO
A expressão “vertiginoso
conjunto” é empregada pelo autor para designar a complexa rede de dimensões
históricas, econômicas, psíquicas e políticas que estruturam a Razão Negra, isto
é, o sistema de saber e de poder que sustenta a ideia de raça e a desumanização
do sujeito negro. O termo, longe de indicar apenas uma metáfora, remete a um
sistema vertiginoso de sujeição, uma “jaula enorme” de determinações históricas
e simbólicas que moldam as formas de ser, de pensar e de viver nas sociedades
marcadas pelo colonialismo e pelo capitalismo.
Esse “vertiginoso conjunto” não é
uma estrutura estática: ele possui uma biografia histórica, uma trajetória que
acompanha o nascimento e a transformação da modernidade ocidental. Mbembe
identifica três momentos fundamentais que configuram a história dessa razão
racial, isto é, três fases em que a dominação e a desumanização do negro se
metamorfoseiam, mantendo, porém, sua lógica essencial de exclusão e instrumentalização,
são elas:
(1) Espoliação
Organizada: O primeiro
momento é o da espoliação organizada, que se estende dos séculos XV ao XIX e
corresponde à fase inaugural da economia moderna. Nesse período, o tráfico
atlântico de africanos institui uma das primeiras formas de experimentação
biopolítica: o corpo humano reduzido à condição de mercadoria. Homens e
mulheres arrancados de suas terras são transformados em homens-objeto,
homens-mercadoria e homens-moeda, inseridos na engrenagem de um capitalismo
nascente que os concebe como “recursos vivos”.
A escravidão, assim, inaugura
juridicamente uma categoria de humanidade-coisa, em que o indivíduo perde o
lar, o corpo e o estatuto político: três dimensões daquilo que Mbembe chama de
tripla perda. Trata-se, portanto, de uma forma de morte em vida, uma condição
de dominação absoluta e alienação de nascença, que antecipa a lógica
necropolítica contemporânea.
(2)
Insurreições das Escritas de Si: O segundo momento da biografia
do conjunto é o das insurreições e das escritas de si, que emergem a partir do
século XVIII. Nesse contexto, o sujeito negro começa a escrever-se, a nomear-se
e a narrar sua própria história, inaugurando o que Mbembe chama de “consciência
negra do Negro”, o segundo texto da Razão Negra. Essa consciência é um gesto de
autodeterminação e de subversão, que rompe com a linguagem de exteriorização do
opressor e pergunta, pela primeira vez, “Quem sou eu?”.
As revoltas de escravizados, a
Revolução Haitiana de 1804, os processos de abolição e de descolonização
africana são expressões dessa passagem do objeto ao sujeito, do silêncio
imposto à palavra insurgente. A “escrita de si” torna-se, assim, o esforço de
restituir o negro à sua história, de reativar a experiência originária e de
conjurar o “demônio” da dominação colonial.
(3)
Globalização Neoliberal: O terceiro momento corresponde à era da
globalização neoliberal, em que a lógica racial se recalibra e se universaliza.
O capitalismo financeiro, ao expandir seus mecanismos de exploração, generaliza
a condição outrora imposta ao negro: a redução do ser humano a coisa, objeto e
mercadoria torna-se o destino das humanidades subalternas em escala planetária.
Mbembe descreve esse processo como o “devir-negro do mundo”, no qual o
neoliberalismo transforma o trabalhador e o excluído em “homem-código”,
“homem-máquina”, “homem-fluxo”, sujeitos desprovidos de substância, convertidos
em simples portadores de dados e de energia econômica.
Essa humanidade, que antes era
explorada, agora é também tornada supérflua: não mais necessária ao
funcionamento do capital, torna-se apenas objeto de humilhação e de abandono. A
figura do negro, portanto, deixa de designar uma identidade étnica e passa a
simbolizar a condição ontológica da precariedade universal.
O “vertiginoso conjunto” é,
assim, a própria estrutura da sujeição racial que atravessa a história da
modernidade, reinventando-se a cada época. Ele começa com a coisificação brutal
do corpo negro na escravidão atlântica, ganha densidade simbólica e política
nas lutas de libertação e reaparece, no presente, como a lógica da
desumanização global. Sua vertigem consiste na capacidade de se adaptar e
persistir, convertendo-se em uma ficção útil e em um complexo perverso que
produz medo, culpa e exclusão.
Pode-se compreender essa
estrutura como um engenho de opressão em constante atualização. A escravidão
atlântica constituiu o motor desse engenho, transformando corpos humanos em
combustível econômico; a luta por libertação representou o esforço de
sabotá-lo; e o neoliberalismo contemporâneo aparece como sua nova versão,
alimentada não mais pelo carvão dos escravizados, mas pela energia de todos os
subalternos convertidos em vida descartável.
II. A
RAÇA E SEU FUTURO
Com
o declínio da Europa enquanto centro mundial surge a questão: o rebaixamento da
Europa à condição de simples província do mundo implicará a extinção do
racismo? A resposta de Mbembe é negativa. Segundo ele, o racismo não desaparece
com o fim da hegemonia europeia; antes, reorganiza-se e adquire novas formas,
conservando seu poder de estruturação da realidade e de hierarquização da vida
humana.
Para Mbembe, o Negro e a raça
foram construções fundamentais do pensamento moderno ocidental. A raça, embora
concebida como uma ficção útil, constitui uma das engrenagens mais duradouras
do imaginário político e social do Ocidente. Trata-se de uma categoria volátil
e flexível, que se adapta às transformações históricas e econômicas,
mantendo-se funcional à dominação. Assim como o capitalismo se autonomizou do
calvinismo, o racismo, em tempos de globalização, se autonomiza de sua matriz
europeia e passa a operar em escala planetária, independente do seu contexto de
origem.
Essa autonomização está
relacionada ao que Mbembe chama de recalibragem da raça, algo que será melhor
discutido adiante. No contexto do capitalismo neoliberal, marcado pela
financeirização e pela globalização das relações, o racismo deixa de se apoiar
em fundamentos biológicos e passa a atuar de modo molecular, fragmentado e
difuso. A raça já não se expressa apenas pela cor da pele, mas se desloca para
outras categorias de exclusão, como a religião, a cultura ou a nacionalidade.
Surge, assim, um “racismo sem raças”, cuja lógica se manifesta na islamofobia e
em outras formas de discriminação culturalmente codificadas.
O conceito central que emerge desse diagnóstico é o de “devir-negro do mundo”. O que antes era a condição específica do negro, ser reduzido a coisa, objeto, mercadoria, tende a tornar-se uma condição universal. Sob a lógica do neoliberalismo, a humanidade subalterna é cada vez mais tratada como vida descartável, como um excedente que já não tem sequer valor econômico. O drama contemporâneo, portanto, não é mais apenas o da exploração, mas o do abandono: a tragédia de uma multidão que se torna supérflua, desprovida de função no sistema produtivo e entregue à precariedade e à humilhação.
Além disso, Mbembe alerta que a
raça não pertence apenas ao passado, ela possui também um futuro. Os avanços da
biologia e da genética reatualizam antigas fantasias eugenistas, abrindo espaço
para uma engenharia social e racial sustentada por tecnologias de manipulação
genética. A medicina e as ciências da vida, ao mesmo tempo em que prometem
progresso, reintroduzem a lógica de eliminação das raças “indesejadas”,
perpetuando uma forma sofisticada de racismo tecnocientífico.
Essa continuidade demonstra,
segundo Mbembe, que a crítica da modernidade está inacabada. Não se pode
compreender plenamente o advento da modernidade sem reconhecer que ela se
fundou na definição da raça como instrumento de dominação. Nesse sentido, o
racismo não é um resíduo irracional a ser superado, mas o motor do princípio
necropolítico que rege a distribuição da morte e legitima as funções assassinas
do Estado. Na era neoliberal, a necropolítica se universaliza: o poder de
decidir quem pode viver e quem deve morrer ultrapassa as fronteiras raciais
tradicionais e atinge toda a humanidade precarizada: imigrantes, refugiados,
pobres, excluídos.
III.
EFABULAÇÃO E ENCLAUSURAMENTO DO ESPÍRITO
A raça é uma ficção produtiva,
isto é, uma construção imaginária que, ao mesmo tempo em que organiza e
sustenta formas de poder e conhecimento, produz efeitos devastadores sobre o
pensamento, a cultura e a moral do Ocidente. A invenção da raça é inseparável
de um processo de autofabulação europeia, no qual o espírito ocidental se
enclausura em si mesmo, restringindo sua própria capacidade de imaginar a humanidade
de modo plural.
Para Mbembe, a raça não existe
como fato natural, físico ou biológico. Ela é uma criação discursiva e
política, desprovida de base científica, sustentada apenas por sua utilidade
ideológica. A espécie humana, biologicamente homogênea, não oferece qualquer
fundamento para distinções raciais. O que se denomina “raça” é, portanto, uma
ficção útil, uma fantasmagoria produzida pelo medo, pelo desejo e pela
necessidade de dominação.
A raça é uma projeção do
inconsciente europeu, um complexo simbólico que transforma diferenças culturais
e geográficas em hierarquias ontológicas. Nesse contexto, a branquitude aparece
como a outra face da mesma ficção: uma invenção da imaginação europeia que se
pretende natural e universal. O processo pelo qual o Ocidente cria e sustenta
essa ficção é a efabulação. Fabular significa produzir narrativas e imagens
imaginárias que, apresentadas como verdade, constituem uma forma de
conhecimento.
A efabulação da raça nasce do
discurso europeu sobre o Negro, tanto no campo erudito quanto no popular.
Trata-se de uma operação simbólica pela qual se extraem vestígios reais, mas se
urdem histórias e imagens falsas, transformando o imaginário em verdade
objetiva. O resultado é uma relação fundamentalmente imaginária com o Outro, em
que o Negro, enquanto sujeito concreto, desaparece. Ele se torna uma ausência,
um simulacro de humanidade, uma figura que encarna os delírios e temores da
consciência europeia.
A função da efabulação é,
portanto, encobrir a realidade e instaurar o simulacro. O Negro é reduzido a
uma imagem composta de fantasias monstruosas e fósseis, unindo, como diria
Foucault, as figuras do “monstro” (diferença radical) e do “fóssil”
(remanescente de um passado natural). Nesse duplo registro, o negro aparece
como anterior à humanidade, um ser da natureza e não do espírito. Assim, a
fabulação racial estabelece o fundamento simbólico do racismo: a crença de que
há uma linha divisória entre o homem e o não-homem.
É nesse ponto que Mbembe introduz
a noção de enclausuramento do espírito. Paradoxalmente, a expansão geográfica e
imperial da Europa, que ampliou o mundo conhecido, provocou um estreitamento da
imaginação ocidental. O espírito europeu, ao projetar-se sobre o globo,
encerrou-se em si mesmo, incapaz de reconhecer o Outro como sujeito. Esse
enclausuramento manifesta-se na redução do negro à animalidade, à pura
corporeidade desprovida de consciência e razão. O corpo negro passa a pertencer
à ordem da extensão, à matéria condenada à exploração, à morte e à destruição.
Assim, a modernidade europeia, ao mesmo tempo em que proclama a universalidade
da razão e da dignidade humana, legitima a escravidão, o colonialismo e a
hierarquia racial.
Essa contradição revela o paradoxo
ético da modernidade ocidental: a mesma civilização que exalta os direitos
humanos é aquela que constrói, por meio da ficção racial, uma zona de não-ser.
O enclausuramento do espírito europeu consiste, portanto, em um ato de
autolimitação moral. A Europa torna-se prisioneira de sua própria fabulação: ao
inventar o negro como não-humano, ela fabrica a si mesma como o único sujeito
do humano. Essa autoficção da identidade europeia, que celebra a própria imagem
e exclui o diferente, sustenta-se juridicamente e politicamente através de um
dispositivo de separação, uma “lógica de curral” que organiza os espaços e
legitima o apartheid colonial.
Mbembe mostra que esse
enclausuramento tem consequências diretas sobre o pensamento e a ética. O
racismo, nascido dessa clausura, torna-se o motor do princípio necropolítico:
isto é, o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer. A ficção racial
funda o direito de matar, ao tornar a morte do Outro moralmente aceitável. A
efabulação e o enclausuramento, ao desumanizarem o negro, normalizam a
destruição organizada e a transformação de certas vidas em vidas descartáveis.
IV.
RECALIBRAGEM
O conceito de recalibragem, em
Achille Mbembe, desempenha um papel central na Crítica da Razão Negra, pois
descreve o processo pelo qual a ficção da raça e o racismo não desaparecem com
o declínio da Europa como centro de gravidade global, mas se transformam
estruturalmente e persistem sob novas formas no mundo contemporâneo. Segundo o
autor, a raça constitui uma categoria volátil, plástica e adaptável, que, ao
contrário do que se poderia supor, não se extingue com o esgotamento do
paradigma europeu. Tal como o capitalismo tornou-se independente de sua origem
calvinista, conforme a análise de Max Weber, a raça se autonomiza de sua matriz
ocidental, adquirindo novos modos de operação e significação no interior do
capitalismo global.
A recalibragem da raça está
profundamente associada às transformações do modo de produção capitalista ao
longo da segunda metade do século XX, especialmente sob o avanço do
neoliberalismo. Este, segundo Mbembe, realiza uma verdadeira fusão entre
capitalismo e animismo, instaurando uma nova lógica de dominação em que o mundo
inteiro se converte em mercadoria. A expansão da forma-mercadoria e a crescente
subordinação dos seres vivos aos imperativos da acumulação capitalista produzem
a dupla violência da raça e do capital, na qual as hierarquias raciais se
entrelaçam com os antagonismos econômicos. Assim, o racismo deixa de ser apenas
um fenômeno ideológico para se tornar uma infraestrutura econômica e política
de controle e exploração.
Mbembe propõe que a condição de
sujeição e desumanização outrora reservada aos negros tende, na
contemporaneidade, a se universalizar. O “devir-negro” designa o processo pelo
qual a subalternidade racial se estende a todas as populações precarizadas e
descartáveis do planeta. A humanidade, sob a égide do capitalismo globalizado,
passa a experimentar a redução do ser humano à condição de objeto, coisa ou
mercadoria. Surge, então, o novo sujeito racial e econômico da era neoliberal:
o “homem-coisa, homem-máquina, homem-código, homem-fluxo”, ou, nas palavras de
Mbembe, o “sujeito neuroeconômico”. Essa figura simboliza uma tragédia inédita:
a de uma humanidade que já não é explorada em sua totalidade, mas humilhada,
descartável e supérflua diante das dinâmicas do capital global.
A recalibragem também se
manifesta em novas formas tecnológicas e culturais de racismo. Na era da
segurança e da vigilância, a raça opera sob o disfarce da religião ou da
cultura, constituindo o que Mbembe denomina, como já considerado, um “racismo
sem raças”. Paralelamente, o desenvolvimento das tecnologias genômicas e da
biotecnologia introduz novos mecanismos de biopolítica e necropolítica, nos
quais o controle da vida e da morte se desloca para o nível molecular e
genético. A possibilidade de selecionar, modificar ou descartar corpos e
populações inteiras por meio de critérios genéticos ou tecnológicos revela uma
nova etapa da dominação racial: uma racialização tecnocientífica que redefine a
fronteira entre o humano e o inumano.
V. O
SUBSTANTIVO NEGRO
O substantivo “Negro” constitui o
eixo conceitual central da Crítica da Razão Negra de Achille Mbembe. É por meio
da análise da criação, função e subversão desse termo que o autor articula sua
crítica mais profunda à modernidade e ao capitalismo. Para Mbembe, bem como
para outros pensadores pós-coloniais, o “Negro” não designa uma essência
biológica ou uma realidade natural, mas antes uma invenção sociopolítica e
simbólica. Trata-se de uma ficção útil à dominação, um dispositivo discursivo
que legitima a exploração e a exclusão, sustentando as hierarquias raciais que
estruturaram o mundo moderno.
Desde suas origens, o termo
“Negro” não expressa uma identidade, mas sim uma atribuição. Ele é, antes de
tudo, um ato de nomeação exterior, uma imposição que busca transformar o outro
em objeto de saber e de poder. Mbembe descreve essa operação como o Primeiro Texto da Razão Negra, ou a Consciência Ocidental do Negro, que
fala sempre em terceira pessoa, perguntando: “Quem é esse?”.
Essa consciência, ao nomear o
outro, não procura reconhecê-lo, mas sujeitá-lo e explorá-lo. Assim, o “Negro”
é definido como a figura da exclusão, do embrutecimento e da degradação, o
arquétipo dos valores inferiores e o símbolo do obscuro e do pecaminoso. Nomear
alguém como negro é feri-lo, despersonalizá-lo, reduzir sua humanidade a uma
marca de diferença que justifica sua subjugação.
Nesse processo de nomeação violenta,
o “Negro” adquire o status de não-ser. Na economia simbólica da modernidade,
ele representa o reflexo empobrecido do homem ideal, identificado com o branco.
Essa negação da plena humanidade do outro implica a subtração de atributos como
razão, autocontrole, cultura e civilização. O “Negro” torna-se, assim, o
emblema daquilo que não é plenamente humano, o jazigo de disparates e
alucinações sobre o qual a Europa projetou sua imagem invertida.
Mais do que um constructo
ideológico, essa invenção teve uma função estrutural na economia capitalista: o
termo “Negro” nasce no contexto da escravidão moderna, designando os corpos
transformados em mercadorias, moedas e objetos de troca. Nessa perspectiva, o
negro é a cripta do capitalismo, o fundamento oculto da acumulação primitiva, o
símbolo da humanidade reduzida à sua pura materialidade. Sua condição equivale
à de uma morte social, uma existência degradada e alienada desde a origem.
Do ponto de vista subjetivo, o
substantivo “Negro” opera uma violência ainda mais profunda. Frantz Fanon, a
quem Mbembe frequentemente se alinha, descreve o negro como sobredeterminado
pelo exterior: uma identidade aprisionada na imagem e na cor da pele, sempre
interpretada como perigo, ameaça ou anomalia. A racialização atua como uma
força de enclausuramento psíquico, gerando uma bipartição do espírito, uma
neurose fóbica e obsessiva que aliena o sujeito de si mesmo. A linguagem, nesse
contexto, funciona como instrumento de encarceramento: o petit-nègre, linguagem infantilizada e estigmatizante, reduz o
sujeito negro a uma caricatura. Espera-se dele que seja o “bom preto”, dócil e
esvaziado de interioridade, condenado à dimensão ôntica, a cor, o corpo, a
superfície, em detrimento de sua dimensão ontológica, o ser humano pleno.
No entanto, a história do “Negro”
não é apenas a história da sujeição, mas também da subversão. Mbembe identifica
nesse movimento de resistência a emergência do que chama de Segundo Texto da Razão Negra, ou a Consciência Negra do Negro.
Trata-se do momento em que o sujeito negro, recusando-se a permanecer como
objeto da designação alheia, pergunta: “Quem sou eu?”. Essa pergunta marca o
início da autodeterminação e da reapropriação do substantivo imposto. O
movimento da Negritude, nesse sentido, representa uma virada histórica: ele
transforma o termo “Negro” em conceito afirmativo, um idioma pelo qual os povos
africanos e afrodescendentes se anunciam e se afirmam como mundo. Ao fazer
isso, eles confirmam sua co-pertença à humanidade, não como repetição do universal
europeu, mas como criação autônoma de sentido.
A reivindicação da raça, distinta
da designação racial colonial, foi um modo de fazer reviver o corpo imolado e
restituir ao sujeito negro sua história e sua voz. Por meio das lutas políticas
e culturais, a palavra “Negro” foi ressignificada: de signo da degradação,
tornou-se símbolo da dignidade e da luta pela liberdade. Assim, na leitura de
Mbembe, o substantivo “Negro” condensa a própria dialética da modernidade, o
lugar onde a violência da dominação é nomeada, mas também o ponto de partida
para a reconstrução de uma subjetividade livre. No fim, o projeto da Crítica da
Razão Negra é o de transcender o peso da raça, libertando o humano da gramática
da cor e da coisa, e abrindo espaço para um novo horizonte de ser, um sujeito
humano universal, não mais definido pelas sombras do passado colonial.
VI.
APARÊNCIA, VERDADE E SIMULACROS
Como considerado, a raça não
constitui uma verdade biológica, mas sim uma ficção do imaginário, uma
construção simbólica que se impõe sobre o real e o deforma. Essa ficção, ao
organizar o mundo em termos hierárquicos e excludentes, gera profundos
distúrbios na subjetividade dos indivíduos e nas estruturas políticas que regem
a vida social. A raça, segundo Mbembe, não existe como fato natural, físico,
antropológico ou genético, mas como “ficção útil”, uma criação do imaginário
coletivo que se apresenta como verdade objetiva.
Trata-se de uma forma de
representação primária que reduz o sujeito à sua aparência externa, negando-lhe
a interioridade. O racismo, portanto, opera por meio da produção de simulacros,
substituindo o rosto real por uma máscara. Essa máscara, o simulacro racial, é
o “duplo”, o “equivalente” e o “substituto” do rosto humano. Ao eleger a
aparência como critério da verdade, a raça exalta fantasias e encobre a
realidade, instaurando uma lógica em que a imagem substitui o ser. Dessa forma,
o racismo se alimenta de um imaginário que fabrica o outro como figura do erro,
do medo e da degeneração, e transforma o corpo negro em um espelho distorcido
da humanidade.
A raça é, portanto, uma ficção
criada por uma operação imaginária. Essa operação imaginária, que como
considerado pode ser denominado como efabulação, tem como efeito uma crise da
verdade e da representação. No universo da raça, a distinção clássica entre
verdade e aparência se dissolve, pois, o sujeito é cindido entre o interior e o
exterior. A linguagem racial, observa Mbembe, é imperfeita e inadequada,
incapaz de descrever o real: ela não nomeia o ser, mas o encena. No caso do
negro, a palavra e o objeto não coincidem; a linguagem racial é uma ficção que
confunde o verdadeiro e o falso. A palavra não representa a coisa, e o signo se
autonomiza da realidade, instaurando um regime em que o simbólico substitui o
real.
Nessa lógica, o racismo produz
uma “verdade das aparências”, na qual a exterioridade torna-se o único critério
do ser. A verdade do indivíduo designado a uma raça não está em sua
interioridade, mas nas aparências que lhe são impostas, nas imagens que o poder
fabrica e naturaliza. As consequências desse processo são devastadoras tanto
para o sujeito racializado quanto para o espírito ocidental. Como considerado,
do lado europeu, a expansão colonial, embora tenha ampliado os horizontes
geográficos, produziu uma retração da imaginação cultural e histórica, um
enclausuramento do espírito. A Europa construiu uma “razão racializada” que
restringe a humanidade à aparência branca, negando o outro como sujeito de
razão. Do lado do negro, o enclausuramento assume a forma de uma bipartição do
espírito: o indivíduo é aprisionado no “calabouço das aparências” e se vê
condenado a viver sob o olhar do outro.
Em última instância, a efabulação
e o simulacro racial permitem que o racismo de Estado opere como engrenagem
bio-necropolítica, legitimando a violência e a coisificação do outro. O racismo
não apenas define quem vive e quem morre, mas determina como se pode existir,
transformando o corpo negro em objeto de controle, medo e eliminação. Assim, o
imaginário racial não é uma simples ilusão, mas um dispositivo de poder que
organiza o mundo e estrutura as relações de vida e morte. Contra essa lógica,
Mbembe identifica o gesto do Segundo
Texto da Razão Negra: o movimento de autodeterminação e subversão pelo qual
o sujeito racializado busca reencontrar sua verdade fora da prisão do
simulacro. Essa busca por autenticidade e liberdade constitui um ato de
resistência à ficção racial e à identidade alienada.

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