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A QUESTÃO DA RAÇA EM ACHILLE MBEMBE

 

A obra Crítica da Razão Negra (2013) de Achille Mbembe faz parte de um projeto mais amplo de crítica ao mundo contemporâneo, junto a Sair da Grande Noite e Políticas da Inimizade. Em vez de uma história das ideias, o livro propõe uma reflexão filosófica e política sobre as formas modernas de dominação, racialização e desumanização. Mbembe mostra como a racionalidade moderna e o projeto iluminista, ao mesmo tempo que proclamaram a razão e a universalidade, fundaram-se na criação de um “Outro” racializado que sustentou o poder e a expansão do Ocidente.

Com a descentralização da Europa e o declínio do eurocentrismo, o autor observa que as hierarquias raciais não desaparecem, mas se transformam em formas difusas e neoliberais de controle. Ele questiona se o fim da centralidade europeia traria o fim do racismo ou apenas sua reconfiguração. A obra é uma paródia crítica da Crítica da Razão Pura de Kant: se Kant investigou os limites da razão, Mbembe busca expor o modo como essa razão se comprometeu desde o início com a racialização e a colonialidade. Para discutir isso, este texto se baseia na Introdução e Primeiro Capítulo da obra, tratando dos seguintes tópicos: (i) Vertiginoso Conjunto; (ii) A Raça no Futuro; (iii) Efabulação e Enclausuramento do Espírito; (iv) Recalibragem; (v) O Substantivo “Negro”; (vi) Aparência, Verdade e Simulacros.

 

I. VERTIGINOSO CONJUNTO

 

A expressão “vertiginoso conjunto” é empregada pelo autor para designar a complexa rede de dimensões históricas, econômicas, psíquicas e políticas que estruturam a Razão Negra, isto é, o sistema de saber e de poder que sustenta a ideia de raça e a desumanização do sujeito negro. O termo, longe de indicar apenas uma metáfora, remete a um sistema vertiginoso de sujeição, uma “jaula enorme” de determinações históricas e simbólicas que moldam as formas de ser, de pensar e de viver nas sociedades marcadas pelo colonialismo e pelo capitalismo.

Esse “vertiginoso conjunto” não é uma estrutura estática: ele possui uma biografia histórica, uma trajetória que acompanha o nascimento e a transformação da modernidade ocidental. Mbembe identifica três momentos fundamentais que configuram a história dessa razão racial, isto é, três fases em que a dominação e a desumanização do negro se metamorfoseiam, mantendo, porém, sua lógica essencial de exclusão e instrumentalização, são elas:

 

(1) Espoliação Organizada:  O primeiro momento é o da espoliação organizada, que se estende dos séculos XV ao XIX e corresponde à fase inaugural da economia moderna. Nesse período, o tráfico atlântico de africanos institui uma das primeiras formas de experimentação biopolítica: o corpo humano reduzido à condição de mercadoria. Homens e mulheres arrancados de suas terras são transformados em homens-objeto, homens-mercadoria e homens-moeda, inseridos na engrenagem de um capitalismo nascente que os concebe como “recursos vivos”.

A escravidão, assim, inaugura juridicamente uma categoria de humanidade-coisa, em que o indivíduo perde o lar, o corpo e o estatuto político: três dimensões daquilo que Mbembe chama de tripla perda. Trata-se, portanto, de uma forma de morte em vida, uma condição de dominação absoluta e alienação de nascença, que antecipa a lógica necropolítica contemporânea.

 

(2) Insurreições das Escritas de Si: O segundo momento da biografia do conjunto é o das insurreições e das escritas de si, que emergem a partir do século XVIII. Nesse contexto, o sujeito negro começa a escrever-se, a nomear-se e a narrar sua própria história, inaugurando o que Mbembe chama de “consciência negra do Negro”, o segundo texto da Razão Negra. Essa consciência é um gesto de autodeterminação e de subversão, que rompe com a linguagem de exteriorização do opressor e pergunta, pela primeira vez, “Quem sou eu?”.

As revoltas de escravizados, a Revolução Haitiana de 1804, os processos de abolição e de descolonização africana são expressões dessa passagem do objeto ao sujeito, do silêncio imposto à palavra insurgente. A “escrita de si” torna-se, assim, o esforço de restituir o negro à sua história, de reativar a experiência originária e de conjurar o “demônio” da dominação colonial.

 

(3) Globalização Neoliberal: O terceiro momento corresponde à era da globalização neoliberal, em que a lógica racial se recalibra e se universaliza. O capitalismo financeiro, ao expandir seus mecanismos de exploração, generaliza a condição outrora imposta ao negro: a redução do ser humano a coisa, objeto e mercadoria torna-se o destino das humanidades subalternas em escala planetária. Mbembe descreve esse processo como o “devir-negro do mundo”, no qual o neoliberalismo transforma o trabalhador e o excluído em “homem-código”, “homem-máquina”, “homem-fluxo”, sujeitos desprovidos de substância, convertidos em simples portadores de dados e de energia econômica.

Essa humanidade, que antes era explorada, agora é também tornada supérflua: não mais necessária ao funcionamento do capital, torna-se apenas objeto de humilhação e de abandono. A figura do negro, portanto, deixa de designar uma identidade étnica e passa a simbolizar a condição ontológica da precariedade universal.

 

O “vertiginoso conjunto” é, assim, a própria estrutura da sujeição racial que atravessa a história da modernidade, reinventando-se a cada época. Ele começa com a coisificação brutal do corpo negro na escravidão atlântica, ganha densidade simbólica e política nas lutas de libertação e reaparece, no presente, como a lógica da desumanização global. Sua vertigem consiste na capacidade de se adaptar e persistir, convertendo-se em uma ficção útil e em um complexo perverso que produz medo, culpa e exclusão.

Pode-se compreender essa estrutura como um engenho de opressão em constante atualização. A escravidão atlântica constituiu o motor desse engenho, transformando corpos humanos em combustível econômico; a luta por libertação representou o esforço de sabotá-lo; e o neoliberalismo contemporâneo aparece como sua nova versão, alimentada não mais pelo carvão dos escravizados, mas pela energia de todos os subalternos convertidos em vida descartável.

 

II. A RAÇA E SEU FUTURO

 

            Com o declínio da Europa enquanto centro mundial surge a questão: o rebaixamento da Europa à condição de simples província do mundo implicará a extinção do racismo? A resposta de Mbembe é negativa. Segundo ele, o racismo não desaparece com o fim da hegemonia europeia; antes, reorganiza-se e adquire novas formas, conservando seu poder de estruturação da realidade e de hierarquização da vida humana.

Para Mbembe, o Negro e a raça foram construções fundamentais do pensamento moderno ocidental. A raça, embora concebida como uma ficção útil, constitui uma das engrenagens mais duradouras do imaginário político e social do Ocidente. Trata-se de uma categoria volátil e flexível, que se adapta às transformações históricas e econômicas, mantendo-se funcional à dominação. Assim como o capitalismo se autonomizou do calvinismo, o racismo, em tempos de globalização, se autonomiza de sua matriz europeia e passa a operar em escala planetária, independente do seu contexto de origem.

Essa autonomização está relacionada ao que Mbembe chama de recalibragem da raça, algo que será melhor discutido adiante. No contexto do capitalismo neoliberal, marcado pela financeirização e pela globalização das relações, o racismo deixa de se apoiar em fundamentos biológicos e passa a atuar de modo molecular, fragmentado e difuso. A raça já não se expressa apenas pela cor da pele, mas se desloca para outras categorias de exclusão, como a religião, a cultura ou a nacionalidade. Surge, assim, um “racismo sem raças”, cuja lógica se manifesta na islamofobia e em outras formas de discriminação culturalmente codificadas.

O conceito central que emerge desse diagnóstico é o de “devir-negro do mundo”. O que antes era a condição específica do negro, ser reduzido a coisa, objeto, mercadoria, tende a tornar-se uma condição universal. Sob a lógica do neoliberalismo, a humanidade subalterna é cada vez mais tratada como vida descartável, como um excedente que já não tem sequer valor econômico. O drama contemporâneo, portanto, não é mais apenas o da exploração, mas o do abandono: a tragédia de uma multidão que se torna supérflua, desprovida de função no sistema produtivo e entregue à precariedade e à humilhação.

Além disso, Mbembe alerta que a raça não pertence apenas ao passado, ela possui também um futuro. Os avanços da biologia e da genética reatualizam antigas fantasias eugenistas, abrindo espaço para uma engenharia social e racial sustentada por tecnologias de manipulação genética. A medicina e as ciências da vida, ao mesmo tempo em que prometem progresso, reintroduzem a lógica de eliminação das raças “indesejadas”, perpetuando uma forma sofisticada de racismo tecnocientífico.

Essa continuidade demonstra, segundo Mbembe, que a crítica da modernidade está inacabada. Não se pode compreender plenamente o advento da modernidade sem reconhecer que ela se fundou na definição da raça como instrumento de dominação. Nesse sentido, o racismo não é um resíduo irracional a ser superado, mas o motor do princípio necropolítico que rege a distribuição da morte e legitima as funções assassinas do Estado. Na era neoliberal, a necropolítica se universaliza: o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer ultrapassa as fronteiras raciais tradicionais e atinge toda a humanidade precarizada: imigrantes, refugiados, pobres, excluídos.

 

III. EFABULAÇÃO E ENCLAUSURAMENTO DO ESPÍRITO

 

A raça é uma ficção produtiva, isto é, uma construção imaginária que, ao mesmo tempo em que organiza e sustenta formas de poder e conhecimento, produz efeitos devastadores sobre o pensamento, a cultura e a moral do Ocidente. A invenção da raça é inseparável de um processo de autofabulação europeia, no qual o espírito ocidental se enclausura em si mesmo, restringindo sua própria capacidade de imaginar a humanidade de modo plural.

Para Mbembe, a raça não existe como fato natural, físico ou biológico. Ela é uma criação discursiva e política, desprovida de base científica, sustentada apenas por sua utilidade ideológica. A espécie humana, biologicamente homogênea, não oferece qualquer fundamento para distinções raciais. O que se denomina “raça” é, portanto, uma ficção útil, uma fantasmagoria produzida pelo medo, pelo desejo e pela necessidade de dominação.

A raça é uma projeção do inconsciente europeu, um complexo simbólico que transforma diferenças culturais e geográficas em hierarquias ontológicas. Nesse contexto, a branquitude aparece como a outra face da mesma ficção: uma invenção da imaginação europeia que se pretende natural e universal. O processo pelo qual o Ocidente cria e sustenta essa ficção é a efabulação. Fabular significa produzir narrativas e imagens imaginárias que, apresentadas como verdade, constituem uma forma de conhecimento.

A efabulação da raça nasce do discurso europeu sobre o Negro, tanto no campo erudito quanto no popular. Trata-se de uma operação simbólica pela qual se extraem vestígios reais, mas se urdem histórias e imagens falsas, transformando o imaginário em verdade objetiva. O resultado é uma relação fundamentalmente imaginária com o Outro, em que o Negro, enquanto sujeito concreto, desaparece. Ele se torna uma ausência, um simulacro de humanidade, uma figura que encarna os delírios e temores da consciência europeia.

A função da efabulação é, portanto, encobrir a realidade e instaurar o simulacro. O Negro é reduzido a uma imagem composta de fantasias monstruosas e fósseis, unindo, como diria Foucault, as figuras do “monstro” (diferença radical) e do “fóssil” (remanescente de um passado natural). Nesse duplo registro, o negro aparece como anterior à humanidade, um ser da natureza e não do espírito. Assim, a fabulação racial estabelece o fundamento simbólico do racismo: a crença de que há uma linha divisória entre o homem e o não-homem.

É nesse ponto que Mbembe introduz a noção de enclausuramento do espírito. Paradoxalmente, a expansão geográfica e imperial da Europa, que ampliou o mundo conhecido, provocou um estreitamento da imaginação ocidental. O espírito europeu, ao projetar-se sobre o globo, encerrou-se em si mesmo, incapaz de reconhecer o Outro como sujeito. Esse enclausuramento manifesta-se na redução do negro à animalidade, à pura corporeidade desprovida de consciência e razão. O corpo negro passa a pertencer à ordem da extensão, à matéria condenada à exploração, à morte e à destruição. Assim, a modernidade europeia, ao mesmo tempo em que proclama a universalidade da razão e da dignidade humana, legitima a escravidão, o colonialismo e a hierarquia racial.

 

Essa contradição revela o paradoxo ético da modernidade ocidental: a mesma civilização que exalta os direitos humanos é aquela que constrói, por meio da ficção racial, uma zona de não-ser. O enclausuramento do espírito europeu consiste, portanto, em um ato de autolimitação moral. A Europa torna-se prisioneira de sua própria fabulação: ao inventar o negro como não-humano, ela fabrica a si mesma como o único sujeito do humano. Essa autoficção da identidade europeia, que celebra a própria imagem e exclui o diferente, sustenta-se juridicamente e politicamente através de um dispositivo de separação, uma “lógica de curral” que organiza os espaços e legitima o apartheid colonial.

Mbembe mostra que esse enclausuramento tem consequências diretas sobre o pensamento e a ética. O racismo, nascido dessa clausura, torna-se o motor do princípio necropolítico: isto é, o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer. A ficção racial funda o direito de matar, ao tornar a morte do Outro moralmente aceitável. A efabulação e o enclausuramento, ao desumanizarem o negro, normalizam a destruição organizada e a transformação de certas vidas em vidas descartáveis.

 

IV. RECALIBRAGEM

 

O conceito de recalibragem, em Achille Mbembe, desempenha um papel central na Crítica da Razão Negra, pois descreve o processo pelo qual a ficção da raça e o racismo não desaparecem com o declínio da Europa como centro de gravidade global, mas se transformam estruturalmente e persistem sob novas formas no mundo contemporâneo. Segundo o autor, a raça constitui uma categoria volátil, plástica e adaptável, que, ao contrário do que se poderia supor, não se extingue com o esgotamento do paradigma europeu. Tal como o capitalismo tornou-se independente de sua origem calvinista, conforme a análise de Max Weber, a raça se autonomiza de sua matriz ocidental, adquirindo novos modos de operação e significação no interior do capitalismo global.

 

A recalibragem da raça está profundamente associada às transformações do modo de produção capitalista ao longo da segunda metade do século XX, especialmente sob o avanço do neoliberalismo. Este, segundo Mbembe, realiza uma verdadeira fusão entre capitalismo e animismo, instaurando uma nova lógica de dominação em que o mundo inteiro se converte em mercadoria. A expansão da forma-mercadoria e a crescente subordinação dos seres vivos aos imperativos da acumulação capitalista produzem a dupla violência da raça e do capital, na qual as hierarquias raciais se entrelaçam com os antagonismos econômicos. Assim, o racismo deixa de ser apenas um fenômeno ideológico para se tornar uma infraestrutura econômica e política de controle e exploração.

Mbembe propõe que a condição de sujeição e desumanização outrora reservada aos negros tende, na contemporaneidade, a se universalizar. O “devir-negro” designa o processo pelo qual a subalternidade racial se estende a todas as populações precarizadas e descartáveis do planeta. A humanidade, sob a égide do capitalismo globalizado, passa a experimentar a redução do ser humano à condição de objeto, coisa ou mercadoria. Surge, então, o novo sujeito racial e econômico da era neoliberal: o “homem-coisa, homem-máquina, homem-código, homem-fluxo”, ou, nas palavras de Mbembe, o “sujeito neuroeconômico”. Essa figura simboliza uma tragédia inédita: a de uma humanidade que já não é explorada em sua totalidade, mas humilhada, descartável e supérflua diante das dinâmicas do capital global.

A recalibragem também se manifesta em novas formas tecnológicas e culturais de racismo. Na era da segurança e da vigilância, a raça opera sob o disfarce da religião ou da cultura, constituindo o que Mbembe denomina, como já considerado, um “racismo sem raças”. Paralelamente, o desenvolvimento das tecnologias genômicas e da biotecnologia introduz novos mecanismos de biopolítica e necropolítica, nos quais o controle da vida e da morte se desloca para o nível molecular e genético. A possibilidade de selecionar, modificar ou descartar corpos e populações inteiras por meio de critérios genéticos ou tecnológicos revela uma nova etapa da dominação racial: uma racialização tecnocientífica que redefine a fronteira entre o humano e o inumano.

 

V. O SUBSTANTIVO NEGRO

 

O substantivo “Negro” constitui o eixo conceitual central da Crítica da Razão Negra de Achille Mbembe. É por meio da análise da criação, função e subversão desse termo que o autor articula sua crítica mais profunda à modernidade e ao capitalismo. Para Mbembe, bem como para outros pensadores pós-coloniais, o “Negro” não designa uma essência biológica ou uma realidade natural, mas antes uma invenção sociopolítica e simbólica. Trata-se de uma ficção útil à dominação, um dispositivo discursivo que legitima a exploração e a exclusão, sustentando as hierarquias raciais que estruturaram o mundo moderno.

Desde suas origens, o termo “Negro” não expressa uma identidade, mas sim uma atribuição. Ele é, antes de tudo, um ato de nomeação exterior, uma imposição que busca transformar o outro em objeto de saber e de poder. Mbembe descreve essa operação como o Primeiro Texto da Razão Negra, ou a Consciência Ocidental do Negro, que fala sempre em terceira pessoa, perguntando: “Quem é esse?”.

Essa consciência, ao nomear o outro, não procura reconhecê-lo, mas sujeitá-lo e explorá-lo. Assim, o “Negro” é definido como a figura da exclusão, do embrutecimento e da degradação, o arquétipo dos valores inferiores e o símbolo do obscuro e do pecaminoso. Nomear alguém como negro é feri-lo, despersonalizá-lo, reduzir sua humanidade a uma marca de diferença que justifica sua subjugação.

Nesse processo de nomeação violenta, o “Negro” adquire o status de não-ser. Na economia simbólica da modernidade, ele representa o reflexo empobrecido do homem ideal, identificado com o branco. Essa negação da plena humanidade do outro implica a subtração de atributos como razão, autocontrole, cultura e civilização. O “Negro” torna-se, assim, o emblema daquilo que não é plenamente humano, o jazigo de disparates e alucinações sobre o qual a Europa projetou sua imagem invertida.

Mais do que um constructo ideológico, essa invenção teve uma função estrutural na economia capitalista: o termo “Negro” nasce no contexto da escravidão moderna, designando os corpos transformados em mercadorias, moedas e objetos de troca. Nessa perspectiva, o negro é a cripta do capitalismo, o fundamento oculto da acumulação primitiva, o símbolo da humanidade reduzida à sua pura materialidade. Sua condição equivale à de uma morte social, uma existência degradada e alienada desde a origem.

Do ponto de vista subjetivo, o substantivo “Negro” opera uma violência ainda mais profunda. Frantz Fanon, a quem Mbembe frequentemente se alinha, descreve o negro como sobredeterminado pelo exterior: uma identidade aprisionada na imagem e na cor da pele, sempre interpretada como perigo, ameaça ou anomalia. A racialização atua como uma força de enclausuramento psíquico, gerando uma bipartição do espírito, uma neurose fóbica e obsessiva que aliena o sujeito de si mesmo. A linguagem, nesse contexto, funciona como instrumento de encarceramento: o petit-nègre, linguagem infantilizada e estigmatizante, reduz o sujeito negro a uma caricatura. Espera-se dele que seja o “bom preto”, dócil e esvaziado de interioridade, condenado à dimensão ôntica, a cor, o corpo, a superfície, em detrimento de sua dimensão ontológica, o ser humano pleno.

No entanto, a história do “Negro” não é apenas a história da sujeição, mas também da subversão. Mbembe identifica nesse movimento de resistência a emergência do que chama de Segundo Texto da Razão Negra, ou a Consciência Negra do Negro. Trata-se do momento em que o sujeito negro, recusando-se a permanecer como objeto da designação alheia, pergunta: “Quem sou eu?”. Essa pergunta marca o início da autodeterminação e da reapropriação do substantivo imposto. O movimento da Negritude, nesse sentido, representa uma virada histórica: ele transforma o termo “Negro” em conceito afirmativo, um idioma pelo qual os povos africanos e afrodescendentes se anunciam e se afirmam como mundo. Ao fazer isso, eles confirmam sua co-pertença à humanidade, não como repetição do universal europeu, mas como criação autônoma de sentido.

A reivindicação da raça, distinta da designação racial colonial, foi um modo de fazer reviver o corpo imolado e restituir ao sujeito negro sua história e sua voz. Por meio das lutas políticas e culturais, a palavra “Negro” foi ressignificada: de signo da degradação, tornou-se símbolo da dignidade e da luta pela liberdade. Assim, na leitura de Mbembe, o substantivo “Negro” condensa a própria dialética da modernidade, o lugar onde a violência da dominação é nomeada, mas também o ponto de partida para a reconstrução de uma subjetividade livre. No fim, o projeto da Crítica da Razão Negra é o de transcender o peso da raça, libertando o humano da gramática da cor e da coisa, e abrindo espaço para um novo horizonte de ser, um sujeito humano universal, não mais definido pelas sombras do passado colonial.

 

VI. APARÊNCIA, VERDADE E SIMULACROS

 

Como considerado, a raça não constitui uma verdade biológica, mas sim uma ficção do imaginário, uma construção simbólica que se impõe sobre o real e o deforma. Essa ficção, ao organizar o mundo em termos hierárquicos e excludentes, gera profundos distúrbios na subjetividade dos indivíduos e nas estruturas políticas que regem a vida social. A raça, segundo Mbembe, não existe como fato natural, físico, antropológico ou genético, mas como “ficção útil”, uma criação do imaginário coletivo que se apresenta como verdade objetiva.

Trata-se de uma forma de representação primária que reduz o sujeito à sua aparência externa, negando-lhe a interioridade. O racismo, portanto, opera por meio da produção de simulacros, substituindo o rosto real por uma máscara. Essa máscara, o simulacro racial, é o “duplo”, o “equivalente” e o “substituto” do rosto humano. Ao eleger a aparência como critério da verdade, a raça exalta fantasias e encobre a realidade, instaurando uma lógica em que a imagem substitui o ser. Dessa forma, o racismo se alimenta de um imaginário que fabrica o outro como figura do erro, do medo e da degeneração, e transforma o corpo negro em um espelho distorcido da humanidade.

A raça é, portanto, uma ficção criada por uma operação imaginária. Essa operação imaginária, que como considerado pode ser denominado como efabulação, tem como efeito uma crise da verdade e da representação. No universo da raça, a distinção clássica entre verdade e aparência se dissolve, pois, o sujeito é cindido entre o interior e o exterior. A linguagem racial, observa Mbembe, é imperfeita e inadequada, incapaz de descrever o real: ela não nomeia o ser, mas o encena. No caso do negro, a palavra e o objeto não coincidem; a linguagem racial é uma ficção que confunde o verdadeiro e o falso. A palavra não representa a coisa, e o signo se autonomiza da realidade, instaurando um regime em que o simbólico substitui o real.

Nessa lógica, o racismo produz uma “verdade das aparências”, na qual a exterioridade torna-se o único critério do ser. A verdade do indivíduo designado a uma raça não está em sua interioridade, mas nas aparências que lhe são impostas, nas imagens que o poder fabrica e naturaliza. As consequências desse processo são devastadoras tanto para o sujeito racializado quanto para o espírito ocidental. Como considerado, do lado europeu, a expansão colonial, embora tenha ampliado os horizontes geográficos, produziu uma retração da imaginação cultural e histórica, um enclausuramento do espírito. A Europa construiu uma “razão racializada” que restringe a humanidade à aparência branca, negando o outro como sujeito de razão. Do lado do negro, o enclausuramento assume a forma de uma bipartição do espírito: o indivíduo é aprisionado no “calabouço das aparências” e se vê condenado a viver sob o olhar do outro.

Em última instância, a efabulação e o simulacro racial permitem que o racismo de Estado opere como engrenagem bio-necropolítica, legitimando a violência e a coisificação do outro. O racismo não apenas define quem vive e quem morre, mas determina como se pode existir, transformando o corpo negro em objeto de controle, medo e eliminação. Assim, o imaginário racial não é uma simples ilusão, mas um dispositivo de poder que organiza o mundo e estrutura as relações de vida e morte. Contra essa lógica, Mbembe identifica o gesto do Segundo Texto da Razão Negra: o movimento de autodeterminação e subversão pelo qual o sujeito racializado busca reencontrar sua verdade fora da prisão do simulacro. Essa busca por autenticidade e liberdade constitui um ato de resistência à ficção racial e à identidade alienada.


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Bruno dos Santos Queiroz

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