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ENSAIOS SOBRE METAFÍSICA ARISTOTÉLICA (RESUMO)

 

O que se segue é um resumo dos ensaios do livro Aristotelian Metaphysics: Essays in Honour of David Charles organizado por David Bronstein, Thomas Kjeller Johansen, Michail Peramatzis em homenagem a David Charles. O livro apresenta ensaios que discutem a metafísica de Aristóteles. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação das teses do texto original de forma compactada, não uma resenha crítica. A ideia é de que o texto permaneça dos autores originais no sentido de apresentar de modo resumido suas principais teses no livro: Bronstein, David, Thomas Kjeller Johansen, and Michail Peramatzis (eds), Aristotelian Metaphysics: Essays in Honour of David Charles (Oxford, 2024; online edn, Oxford Academic, 23 May 2024). A leitura deste resumo não substitui a leitura do livro original. O resumo se divide nas seguintes partes e subpartes conforme a estrutura do livro: 

 

Parte I: Definição, Significado e Linguagem (Part I: Definition, Meaning, And Language) 

(1) Um Enigma na Teoria da Definição de Aristóteles (Chapter 1. A Puzzle in Aristotle’s Theory of Definition) - David Bronstein 

(2) Antístenes sobre Definição: Metafísica H.3 (Chapter 2. Antisthenes on Definition: Metaphysics H.3) - Marko Malink 

(3) Focalidade, Analogia e a Articulação de Conceitos (Chapter 3. Focality, Analogy, and the Articulation of Concepts) - S. G. Williams 

(4) David Charles sobre Wittgenstein, Aristóteles e Artífices (Chapter 4. David Charles on Wittgenstein, Aristotle, and Artisans) - Paul Snowdon 

Parte II: Categorias, Substância e Essência (Part II: Categories, Substance, and Essence) 

(5) O Açougueiro de Platão: Realismo e Classificação Platônica (Chapter 5. Plato’s Butcher: Realism and Platonic Classification) - Verity Harte 

(6) Indivíduos Não-substanciais nas Categorias de Aristóteles (Chapter 6. Non-substance Individuals in Aristotle’s Categories) - Jennifer Whiting 

(7) Predicação Essencial nas Categorias de Aristóteles: Uma Defesa (Chapter 7. Essential Predication in Aristotle’s Categories: A Defence) - Christof Rapp 

(8) Aristóteles sobre Como a Essência Fundamenta a Necessidade (Chapter 8. Aristotle on How Essence Grounds Necessity) - Michail Peramatzis 

Parte III: Forma, Matéria e Teleologia (Part III: Form, Matter, And Teleology) 

(9) Hilemorfismo Predicativo na Metafísica Z (Chapter 9. Predicative Hylomorphism in Metaphysics Z) - Mary Louise Gill 

(10) Matéria Aristotélica e ‘o Sujeito Subjacente’ (Chapter 10. Aristotelian Matter andthe Underlier’) - Lindsay Judson 

(11) Forma Envolvendo Matéria e Necessidade Hipotética na De Anima de Aristóteles (Chapter 11. Matter-Involving Form and Hypothetical Necessity in Aristotle’s De Anima) - T. K. Johansen 

(12) Vida, Agência e Valor (Chapter 12. Life, Agency, and Value) - James G. Lennox 

Parte IV: Modalidade, Mudança e Espaço (Part IV: Modality, Change, and Space) 

(13) Reflexões sobre a Ontologia Modal de Aristóteles (Chapter 13. Reflections on Aristotle’s Modal Ontology) - Kei Chiba 

(14) Como Aristóteles Entende a Mudança: Uma Leitura de Física 3.1–3 (Chapter 14. How Aristotle Understands Change: A Reading of Physics 3.1–3) - Frank A. Lewis 

(15) Aristóteles: Processos e Continuantes (Chapter 15. Aristotle: Processes and Continuants) - Ursula Coope 

(16) Por Que o Espaço é Discontínuo? De Lineis Insecabilibus 968b5–22 (Chapter 16. Why Is Space Discontinuous? De Lineis Insecabilibus 968b5–22) - Vassilis Karasmanis  

 

PARTE I - DEFINIÇÃO, SIGNIFICADO E LINGUAGEM 

 

1. UM PROBLEMA NA TEORIA DA DEFINIÇÃO EM ARISTÓTELES (David Bronstein) 

De acordo com David Charles, a essência de um objeto deve ser tanto (i) uma unidade, quanto (ii) a causa de outras características necessárias desse objeto. O problema é que Aristóteles apresenta duas concepções diferentes e incompatíveis sobre o que é uma essência e duas concepções diferentes sobre o método de divisão correspondentes a elas. O texto base para essa discussão é o seguinte: “Já declaramos como o 'o que é' (to ti estin) é colocado nas definições (tous horous) e de que maneira há, ou não, demonstração ou definição disso. Agora, porém, falemos sobre como é preciso buscar (thēreuein) aquilo que é predicado no 'o que é' (ta en (i) ti esti katēgoroumena).” (Analíticos Posteriores 2.13, 4 96a20–3) 

Comentaristas divergem sobre duas questões relacionadas ao papel da divisão nesse texto de Aristóteles. Primeiramente, Aristóteles apresenta a divisão como um método para buscar e descobrir essências e definições, ou apenas como uma maneira de expor essências e definições que já foram buscadas e descobertas por outros meios? Em segundo lugar, a divisão (independentemente de sua finalidade) aplica-se às definições com estrutura causal complexa, descobertas por demonstração e representáveis em uma demonstração (como, por exemplo, a definição de eclipse: "perda de luz da lua devido à interposição da Terra entre o sol e a lua") ou a definições de natureza distinta? David Charles argumenta de maneira convincente que Aristóteles apresenta a divisão nesse texto como parte do método para descobrir definições por meio da demonstração. 

As definições discutidas por Aristóteles nesse contexto são provavelmente estruturadas em termos de gênero e diferença específica (definições reais), sendo distintas das definições demonstrativas. Diante disso, surge a questão de saber se definições compostas por gênero e diferença específica atendem aos dois critérios propostos por David Charles para determinar o que constitui a essência formulada em uma definição. Esses critérios são: (i) critério da unidade: a essência deve ser uma única característica do tipo ou um grupo unificado de características, e não meramente uma aglomeração de atributos; (ii) critério da Causalidade: a essência deve ser causalmente anterior às demais características necessárias do tipo, no sentido de que ela explica por que essas características pertencem ao tipo, e nenhuma delas explica por que a essência pertence ao tipo. 

A combinação dos critérios de unidade e causalidade implica que a essência de um tipo natural deve ser ao mesmo tempo unificada e explanatoriamente fundamental. A essência deve ser unificada porque é responsável pela unidade do tipo. Ela também deve ser explanatoriamente fundamental porque deve ser a causa de todos os atributos necessários não essenciais que podem ser demonstrados no tipo, sem ser causada por nenhum deles (ou por qualquer outra coisa). Dada essa formulação, surge a dúvida sobre se as definições baseadas em gênero e diferença específica, obtidas pelo método da divisão, podem satisfazer esses requisitos. 

Os critérios de unidade e causalidade sugerem abordagens distintas para as definições por gênero e diferença específica (definições reais). As definições por gênero e diferença específica são estabelecidas pelo método da divisão, que opera em duas etapas: (i) distinguir a espécie de outras coisas em geral, selecionando seu gênero (por exemplo, "animal" como distinto de "vegetal"); e (ii) distinguir a espécie de outras espécies dentro do mesmo gênero, identificando a diferença específica (como "racionalidade humana" distinta de outras características animais). Assim, temos, por exemplo, a definição: "o ser humano é um animal (gênero) racional (diferença específica)". 

Dentro desse método, existem duas abordagens para lidar com a diferença específica: (i) abordagem da diferença específica única: sustenta que a definição identifica apenas uma única diferença específica; e (ii) abordagem das diferenças específicas múltiplas: permite que múltiplas diferenças específicas componham uma definição. A abordagem da diferença específica única é mais adequada ao critério da unidade, uma vez que o gênero já está implícito na diferença específica. No entanto, essa abordagem enfrenta dificuldades para satisfazer o critério da causalidade. Em contraste, a abordagem das diferenças específicas múltiplas parece mais apta a atender ao critério da causalidade. 

Aristóteles apresenta duas concepções de essência e divisão. A primeira está alinhada com o critério da causalidade e com a abordagem das diferenças específicas múltiplas. Contudo, na segunda concepção, Aristóteles tenta, sem sucesso, reconciliar as duas condições e abordagens. O primeiro passo de Aristóteles é introduzir um tipo de atributo que pertence universalmente a uma coisa, estendendo-se além dela, mas permanecendo dentro do gênero. Por exemplo, "ímpar" pertence universalmente ao número três, assim como a outros números (cinco, sete, etc.), mas não a algo fora do gênero dos números. Podemos chamar esse atributo de Atributo D. 

O passo seguinte de Aristóteles é propor uma regra para identificar as essências e definições de espécies indivisíveis. Essa regra estabelece que, ao buscar a essência de uma espécie indivisível S, deve-se selecionar atributos D até que se chegue ao primeiro ponto em que a conjunção dos atributos D escolhidos pertença universalmente apenas à espécie S. Essa diretriz pode ser chamada de Regra do Atributo D. Aristóteles claramente acredita que a aplicação correta dessa regra é suficiente para identificar a essência. No entanto, embora a Regra do Atributo D pareça adequar-se bem ao Critério da Causalidade, ela não se ajusta igualmente ao Critério da Unidade. Isso porque não está claro se uma essência composta por um gênero e múltiplas diferenças específicas possui a unidade requerida. 

Aristóteles afirma que a divisão garante que nenhum atributo essencial seja deixado de fora da essência, desde que as divisões sejam completas, ou seja, que tudo o que faz parte do gênero dividido se encaixe nos subgêneros definidos pelas diferenças específicas. Para ele, o objetivo de quem define é descobrir a essência de algo. Isso só acontece se a pessoa identificar todos os atributos da essência e entender a ordem correta entre eles. Esse é o Requerimento da Implicação, que diz que os atributos de uma espécie devem formar uma sequência ordenada, na qual o atributo anterior implica o posterior, e não o contrário. 

O Requerimento da Implicação parece ser o princípio que falta na explicação de Aristóteles sobre a divisão exaustiva, pois a divisão sozinha não é suficiente para garantir as assimetrias necessárias entre os atributos de uma essência. Se conseguirmos combinar esse Requerimento com a Regra do Atributo D, as duas abordagens de definição de Aristóteles, uma que usa uma única diferença específica e outra que usa múltiplas, podem ser conciliadas, e seus critérios de unidade e causalidade para a essência podem ser atendidos. O problema é que talvez essa combinação não seja possível. 

Aristóteles apresenta duas concepções diferentes e incompatíveis de essência. Na primeira, cada atributo da essência de uma espécie indivisível deve ser um atributo D. Na segunda, cada atributo em uma essência deve implicar o anterior, o que significa que o último atributo não pode ser um atributo D. Nenhuma essência pode cumprir tanto o Requerimento da Implicação quanto a Regra do Atributo D. Não devemos concluir, a partir disso, que Aristóteles falha em criar uma teoria coerente de essência nos Analíticos Posteriores. Ao invés disso, devemos perceber que a tarefa que ele assume apresenta desafios filosóficos significativos. 

 

2. ANTÍSTENES SOBRE DEFINIÇÃO (Marko Malink) 

 

Em Metafísica H.3, Aristóteles aborda uma objeção levantada por Antístenes e seus seguidores sobre a possibilidade de definição. Os antistenianos concluíram que é impossível definir o que uma coisa é (1043b23–32). Antístenes defendia que, para qualquer objeto, existe uma única "fórmula peculiar", que é o único predicado que pode ser atribuído à coisa. Isso implica que não é possível afirmar nada além dessa fórmula peculiar sobre a coisa, seja em termos verdadeiros ou falsos (1024b34–1025a1). 

Antístenes deduz que, por essa razão, não pode haver contradição entre as afirmações. Se eu disser que Teeteto está sentado, ninguém pode contradizer dizendo que ele não está sentado. Isso ocorre porque, ao fazer isso, estaríamos atribuindo dois predicados distintos, "sentado" e "não sentado", à mesma coisa, o que é impossível, pois só se pode atribuir à coisa sua fórmula peculiar. Além disso, se a fórmula peculiar é verdadeira para uma coisa, a visão de Antístenes implica que é impossível falar falsamente, pois qualquer afirmação falsa implicaria atribuir à coisa algo além de sua fórmula peculiar. 

Além disso, os céticos das definições argumentam que qualquer definição leva a um regresso infinito de definições, no qual o definidor é levado de uma definição para outra, com cada uma sendo "expandida" para explicar a anterior. A discussão de Aristóteles em H.3 parte da suposição platonista de que, numa definição por gênero e diferença, a espécie a ser definida é um composto formado pelo gênero e pela diferença como constituintes. Aristóteles sugere que o argumento de regresso de Antístenes se aplica não apenas às espécies compostas por gênero e diferença, mas, de forma mais geral, a qualquer "substância composta" (1043b28–9). 

O argumento do regresso parte de uma concepção composicional de definição, segundo a qual, para qualquer X, a única maneira de saber o que X é é por meio de uma definição que mencione seus constituintes. Se X não tiver constituintes, não poderá ser definido, e não será possível saber o que é. Por outro lado, se X tiver constituintes, então, para que uma definição nos forneça conhecimento do que X é, o definidor deve saber o que cada um de seus constituintes é. Assim, o definidor deverá fornecer, por sua vez, definições desses constituintes em termos de seus próprios constituintes, e assim por diante. Se o regresso não for interrompido, a sequência de definições não nos permitirá saber o que X é, já que o definidor não terá o conhecimento necessário sobre os constituintes últimos. 

Aristóteles refuta a concepção composicional de definição ao argumentar que o regresso de definições não precisa ser infinito. Ele afirma que, se X é um constituinte de Y, a relação entre X e Y não é recíproca, isto é, X não é idêntico a Y. Ele argumenta que não é possível que um dos constituintes seja idêntico ao composto, como se A ou B fossem idênticos a AB. Portanto, a relação de ser constituinte é transitiva, mas não cíclica, o que significa que não pode haver uma sequência infinita de constituintes em que cada um seja constituinte do próximo, retornando ao início. Isso impede que o regresso de definições seja circular ou infinito. 

 

3. FOCALIDADE, ANALOGIA E A ARTICULAÇÃO DOS CONCEITOS (S. G. Williams) 

 

Os grandes programas de análise conceitual que utilizam a lógica moderna parecem ter enfrentado um fracasso significativo, conduzindo a tentativas frustradas de analistas conceituais de compreender conceitos filosóficos importantes de forma fragmentada. Como consequência, a análise rigorosa foi amplamente abandonada, e muitos filósofos analíticos passaram a se limitar ao diagnóstico de erros em empreitadas filosóficas passadas e futuras. Nesse cenário, uma alternativa promissora tem sido o método de elucidação, que se apresenta como uma poderosa ferramenta na filosofia analítica, focando em esclarecer conceitos em vez de desmembrá-los detalhadamente. 

No entanto, em vez de descartar completamente o método analítico em favor do método de elucidação, a melhor abordagem parece ser uma integração entre ambos. Nesse contexto, as ideias de Aristóteles oferecem recursos valiosos. Dois conceitos aristotélicos, em particular, se mostram úteis: (i) analogia: uma relação que pode assumir a forma simples de “x é semelhante a y” ou a forma estrutural do tipo “assim como A está para B, C está para D.” (ii) focalidade: a descrição de relações entre um conjunto de subconceitos ou elementos disjuntivos, organizados em torno de um foco central, a partir do qual os outros elementos (satélites) podem ser definidos. 

Há uma tradição aristotélica bem estabelecida que emprega uma abordagem orientada pela linguagem, baseada em analogia e focalidade, fundamentada na noção de homonímia. Podemos definir um nome como homônimo quando ele significa dois ou mais conceitos; por outro lado, também podemos dizer que dois ou mais conceitos são homônimos quando compartilham um mesmo nome que os representa. Nos casos de maior interesse, lidamos com o que pode ser chamado de homonímia conectada, que exibe características tanto de focalidade quanto de analogia. 

Explorar a focalidade e a analogia por meio da homonímia e dos significados das palavras tem o mérito de aproveitar os esforços analíticos e taxonômicos de filósofos anteriores, ainda que esses esforços tenham sido informais. Aristóteles acreditava que sua abordagem baseada em focalidade e analogia poderia ajudar a compreender diversos conceitos filosóficos importantes, ainda que fragmentados em sua natureza. Um conceito fragmentado, nesse contexto, é aquele que pode ser entendido como essencialmente disjuntivo ou como um conceito formado por agrupamentos. 

O uso da focalidade pode ser descrito por meio de uma estratégia investigativa como esta: 

(1) Examinar palavras individuais para identificar possíveis usos homônimos. 

(2) Determinar usos focais mínimos que centralizam ou organizam os outros significados. 

(3) Aplicar diretrizes causais-analógicas para avaliar a riqueza das conexões e pertinência entre os significados. 

(4) Concluir pela homonímia, assumindo que nenhuma consideração contrária invalide a análise. 

(5) Identificar as conexões apropriadas para determinar uma unidade flexível entre os conceitos. 

 

4. DAVID CHARLES SOBRE WITTGENSTEIN, ARISTÓTELES E ARTESÕES (Paul Snowdon) 

 

Na discussão sobre os jogos de linguagem, Wittgenstein frequentemente utiliza exemplos de pessoas engajadas em atividades práticas, como operários e pedreiros em obras. David Charles estabelece uma conexão entre esses exemplos e as reflexões de Aristóteles sobre os artesãos. Para Charles, as ideias de Aristóteles sobre os artesãos são mais profundas e consistentes do que as de Wittgenstein sobre os construtores, além de oferecerem alternativas às conclusões que Wittgenstein propõe. Dois pontos principais emergem dessa discussão: (i) a explicação de Charles sobre as questões levantadas por Wittgenstein acerca do fundamento do significado e da compreensão; (ii) o uso, por Charles, da figura do artesão, conforme descrita por Aristóteles, como uma solução para as limitações percebidas no pensamento de Wittgenstein. 

Charles inicia sua análise abordando a reação de Wittgenstein, no início das Investigações Filosóficas, à descrição feita por Santo Agostinho sobre o aprendizado da linguagem. Um dos objetivos de Charles é examinar essa reação. Outro tema central é o que poderia ser chamado de antigeneralismo” de Wittgenstein, ou seja, a ideia de que os elementos das nossas linguagens, extremamente complexos, são diversos e substancialmente distintos. Por isso, tentar oferecer uma explicação unificada para todas as expressões linguísticas seria ineficaz ou até enganoso. 

De maneira resumida, o argumento de Wittgenstein é que não existe uma essência universal compartilhada por todas as partes da linguagem, o que ele acredita ser uma oposição à perspectiva de Agostinho. No entanto, a análise de Agostinho não pressupõe necessariamente tal essência. Uma das implicações problemáticas das visões de Wittgenstein, na interpretação de Charles, é que elas desafiam uma concepção “realista” do pensamento e da linguagem. Para Charles, é natural acreditar na existência de “condições de verdade independentes de ratificação” , ou seja, condições que são verdadeiras independentemente de serem reconhecidas ou aceitas por nós. Assim, Wittgenstein estaria equivocado ao sugerir uma visão do pensamento e da linguagem que rejeite essa possibilidade. Essa leitura posiciona Wittgenstein como um “antirrealista”, na terminologia de Dummett, embora não seja evidente que Wittgenstein realmente adote essa postura. 

De qualquer forma, segundo Charles, o “platonista”, oponente de Wittgenstein, sustenta duas ideias principais: (i) compreendemos termos que se referem a objetos e propriedades com base no impacto que esses têm sobre nós; (ii) nossas frases são verdadeiras ou falsas dependendo da existência ou não dos objetos relacionados conforme descrito. No entanto, Agostinho não afirma essas ideias, e tampouco está claro se Wittgenstein as rejeitaria. A primeira tese platonista, segundo Charles, diz respeito à nossa interação com o ambiente, pela qual adquirimos termos que identificam coisas e características. Wittgenstein parece concordar com isso, pois reconhece que palavras podem representar objetos. Já a rejeição à segunda tese depende da interpretação de Wittgenstein como antirrealista, o que pode ser um equívoco. 

Charles apresenta dois elementos centrais na posição de Wittgenstein: (i) a centralidade da técnica: aprender um conceito envolve adquirir uma técnica para discriminar objetos, e dominar essas técnicas é parte essencial do entendimento do conceito; (ii) o externalismo: descrever essas técnicas requer referência aos objetos sobre os quais as praticamos. No entanto, Charles critica Wittgenstein por não reconhecer que nossa compreensão dos objetos exige a capacidade de explicar como condições de verdade realistas podem emergir de forma clara e compreensível. 

Para reforçar esse ponto, Charles utiliza uma distinção feita por Aristóteles entre três tipos de artesãos: (i) o artesão de baixo nível: treinado para realizar técnicas específicas, mas incapaz de compreendê-las plenamente ou de atuar fora dessas tarefas; (ii) o médico empírico: segue evidências práticas de eficácia, mas não compreende por que os tratamentos funcionam; (iii) o mestre artesão: compreende não apenas as técnicas, mas também os princípios e razões subjacentes a elas, sendo capaz de justificar suas ações e inovações. 

Charles destaca dois aspectos do mestre artesão que considera particularmente relevantes: (i) sua independência e capacidade crítica: ele não está limitado às práticas iniciais que aprendeu, podendo criticá-las, aprimorá-las e criar novas abordagens; (ii) sua defesa do uso de termos com base em conhecimento profundo: ele justifica os termos usados para descrever categorias, como “madeira” ou “ferro”, com base em seu entendimento das propriedades das substâncias. 

O exemplo do mestre artesão pode ser útil no debate sobre o antirrealismo. Para criticar o antirrealismo de Wittgenstein, Charles sugere duas estratégias: (i) apresentar evidências de que nosso pensamento não é compatível com o antirrealismo, mostrando que há verdades independentes de nossa verificação ou compreensão; (ii) refutar os argumentos antirrealistas, demonstrando falhas nas razões apresentadas para rejeitar a objetividade da verdade. 

Embora o exemplo do mestre artesão seja interessante, ele não necessariamente refuta o suposto antirrealismo de Wittgenstein, a menos que seus argumentos dependam de uma concepção limitada de engajamento intelectual por parte dos usuários da linguagem. Como Wittgenstein não parece restringir o significado a práticas simples, o exemplo do mestre artesão não bloqueia suas reflexões sobre a natureza da compreensão. Além disso, dado o estilo de escrita muitas vezes enigmático de Wittgenstein, é preciso cautela ao atribuir conclusões definitivas a ele. 

 

PARTE II. CATEGORIAS, SUBSTÂNCIAS E ESSÊNCIAS 

 

5. A METÁFORA DO AÇOGUEIRO DE PLATÃO: REALISMO E CLASSIFICAÇÃO PLATÔNICA (Verity Hart) 

 

O realismo abordado neste texto refere-se à visão de que existe, em sua essência, uma estrutura única e universal da realidade, independente da mente ou da linguagem, sendo responsabilidade da filosofia ou da ciência buscar sua compreensão. Essa perspectiva é exemplificada pelo externalismo de Hilary Putnam, em oposição à ideia de "criação de mundos" de Nelson Goodman, e é frequentemente associada ao pensamento de Platão. Contudo, é essencial distinguir entre o realismo de Platão e as interpretações contemporâneas dele. Embora Platão seja amplamente associado ao realismo no sentido de que a divisão conceitual deve refletir a estrutura da realidade, que existe independentemente da mente ou da linguagem, sua abordagem possui nuances importantes. 

Além desse realismo tradicional, Platão também demonstra uma sensibilidade às capacidades humanas. Isso implica que suas classificações não visam apenas captar uma realidade "natural" ou "fundamental", mas estão profundamente interligadas a áreas de competência humana, como a música, a linguagem e outros tipos de conhecimento sistematizado. Diferentemente de Aristóteles, que separa o natural do artificial, Platão não adota essa distinção de forma rígida. Ele considera o mundo natural como produto de uma criação divina inteligente (a demiurgia), o que implica que a realidade já está estruturada de maneira inteligível. Assim, as classificações de Platão não privilegiam um domínio específico (como o natural) em detrimento de outros (como o artificial). Em vez disso, ele aplica seu método a diferentes esferas da experiência humana, cada qual com sua própria expertise, sem hierarquizá-las como mais fundamentais. 

Para ilustrar seu método de divisão conceitual, Platão utiliza a metáfora do açougueiro que corta o animal "nas juntas", ou seja, em pontos naturais de divisão. De forma análoga, as classificações platônicas procuram "cortar" a realidade em suas articulações inteligíveis, acessíveis pela razão humana. Essas "juntas" não são arbitrárias; elas correspondem à estrutura da realidade, que é revelada pelas Formas (ou Ideias). No entanto, essa estrutura também é influenciada pela intervenção divina, como indicado em textos como Fédro 265c8–266c1 e Filebo 16c5–17a5. 

Para Platão, a realidade pode ser acessada de duas maneiras: (i) pela experiência sensorial, que não é guiada pela razão, e (ii) pela razão, que é orientada pelas Formas inteligíveis. Dessa forma, diferentes áreas de expertise (como música e linguagem) podem iluminar distintos aspectos da realidade, sem que uma seja necessariamente mais importante que a outra. Por exemplo, a voz pode ser analisada de maneiras diferentes pela música, que foca no tom e no ritmo, e pela linguística, que prioriza a fonética. 

Embora Platão defenda um realismo robusto, no qual as classificações humanas estão conectadas a uma realidade única e fundamental, ele não afirma que exista uma única classificação privilegiada da realidade. Em vez disso, diferentes classificações podem capturar aspectos variados dessa realidade, dependendo do domínio de expertise em questão. O realismo platônico é, portanto, complexo: ele reconhece uma realidade independente, mas também destaca o papel ativo da razão humana e das habilidades especializadas na compreensão dela. Existe, para Platão, uma diferença inevitável entre as classificações que criamos e a realidade em si. Mesmo que nossas classificações se baseiem na realidade, elas sempre deixam de abarcar certos aspectos que escapam à categorização. 

 

6. INDIVÍDUOS NÃO-SUBSTANCIAIS NAS CATEGORIAS DE ARISTÓTELES (Jennifer Whiting) 

 

Um debate central entre estudiosos de Aristóteles, especialmente em relação à sua obra Categorias é a questão de como entender os "indivíduos não-substanciais" (como "o branco individual”).  Há duas posições a esse respeito: (i) posição tradicional (John Lloyd Ackrill, Robert Heinaman e Terence Irwin): os indivíduos não-substanciais são particulares, ou seja, itens únicos e não compartilháveis; (ii) posição alternativa (G. E. L. Owen e Michael Frede): os indivíduos não-substanciais são propriedades totalmente determinadas, capazes de inerir em múltiplos sujeitos numericamente distintos. A classificação proposta por Aristóteles divide os entes em quatro categorias principais:



O texto das Categorias (2a34–b6) favorece claramente a teoria alternativa. Nele, Aristóteles afirma: “Todas as outras coisas são ou ditas acerca das substâncias primeiras como sujeitos, ou estão nelas como sujeitos (ē en hupokeimenais autais)”. Isso significa que, se as substâncias primeiras (os indivíduos concretos) não existissem, seria impossível que as outras coisas (propriedades e acidentes) existissem. O trecho sugere que um indivíduo não-substancial pode existir em qualquer corpo individual, desde que esteja em algum corpo. Isso implica que, por exemplo, um branco determinado não está necessariamente vinculado a um corpo específico, mas pode estar presente em múltiplos corpos. 

Embora textualmente a teoria alternativa pareça ser a mais plausível, a teoria tradicional encontra maior aceitação por dois fatores combinados: (i) um paralelo entre substâncias e não-substâncias, no qual a distinção entre indivíduos não-substanciais e as espécies e gêneros aos quais pertencem é tratada como equivalente à distinção entre indivíduos substanciais e suas respectivas espécies e gêneros. Isso leva à conclusão de que Aristóteles deveria entender a individualidade nas categorias não-substanciais de forma semelhante à categoria de substância; (ii) a exigência de localização espaço-temporal, segundo a qual a individualidade de um indivíduo substancial requer uma localização espaço-temporal determinada, levando à ideia de que um indivíduo não-substancial também deve ser uma propriedade particular com uma localização espaço-temporal única. 

Contudo, é possível aceitar o ponto (i) e rejeitar o ponto (ii). É viável compreender a individualidade das não-substâncias nos mesmos termos que as substâncias, sem precisar vincular essa individualidade a uma localização espaço-temporal definida ou à unidade espaço-temporal associada a ela. A concepção de individualidade que sustenta a teoria alternativa está ancorada no "método de divisão" de Platão. Aristóteles atribui à divisão um papel significativo (ainda que não apodítico, ou seja, não demonstrativo) na investigação científica, mas modifica a abordagem platônica de duas formas principais: (i) rejeita a divisão dicotômica, ou seja, a ideia de que um gênero deve ser exaustivamente dividido com base em uma única diferença; (ii) enfatiza a divisão por diferenças essenciais, insistindo que os gêneros não devem ser divididos com base em características acidentais, mas sim segundo diferenças que pertencem à essência do gênero. 

É provável que Aristóteles tenha criado o termo katholou (universal) inspirado pelo uso que Platão fazia da expressão proposicional kath' holou, que significa "de acordo com um todo" ou "em relação a um todo". O uso de kathhekaston por Aristóteles está conceitualmente vinculado ao de katholou, de maneira que não ocorre com hen arithmō(i). Além disso, o sentido especial de kathhekaston parece se relacionar à posse de uma localização espaço-temporal determinada. Isso abre espaço para a possibilidade de um indivíduo existir em uma pluralidade de sujeitos numericamente distintos e descontínuos, tanto espacial quanto temporalmente. Por essas razões, a teoria alternativa emerge como a mais provável à luz do texto de Aristóteles. 

 

7. UMA DEFESA DA PREDICAÇÃO ESSENCIAL NAS CATEGORIAS DE ARISTÓTELES (Christof Rapp) 

 

O núcleo das Categorias, tal como chegou até nós, concentra-se principalmente em uma classificação em dez tipos de modos de ser. Cada modo de ser, quando considerado isoladamente, ou seja, tomado como tal e não como parte de uma afirmação, designa ou substância (ousia), ou quantidade, ou qualidade, ou relação, ou lugar, ou tempo, ou estado, ou posse, ou ação, ou paixão (Categorias 4, 1b25–27). Tradicionalmente, essas dez classes foram chamadas de "categorias" (katēgoriai). O uso do termo katēgoria cria a expectativa de que as dez categorias enumeradas nas Categorias sejam destinadas a representar classes de predicação ou predicados. No entanto, isso não é exatamente o que Aristóteles afirma. Ele busca, de forma clara, classificar os seres (onta), e não apenas os predicados, em sentido estrito (Categorias 1a20). 

Nas Categorias, Aristóteles distingue duas formas pelas quais os seres podem se relacionar entre si: "ser dito de" (to kathhypokeimenou legesthai), que surge ao perguntarmos o que algo é; e "estar em um sujeito" (einai en hypokeimenō). A partir dessas relações, surgem quatro combinações possíveis: (i) seres que são ditos de um sujeito, mas não estão em um sujeito (como espécies e gêneros, ou seja, as substâncias segundas); (ii) seres que estão em um sujeito, mas não são ditos de nenhum sujeito (isto é, particulares não substanciais); (iii) seres que estão em um sujeito e também são ditos de um sujeito (isto é, universais não substanciais); e; (iv) seres que não estão em um sujeito nem são ditos de um sujeito (substâncias primeiras ou substratos). 

De acordo com a interpretação tradicional, para assegurar que aquilo que é "dito de" um sujeito realmente define o que esse sujeito é, é fundamental empregar o teste do nome-definição. Esse teste associa a relação de "ser dito de" à predicação essencial, distinguindo-a de relações acidentais. A defesa dessa leitura tradicional depende do reconhecimento de que o significado técnico de "ser dito de" é inequívoco quando Aristóteles utiliza as expressões legesthai kata tinos ou legesthai com genitivo. Outros usos desses termos não devem ser interpretados como indicadores confiáveis da relação "ser dito de". Paolo Crivelli questiona essa interpretação tradicional, argumentando que, em determinados contextos, "ser predicado de" (katēgoreisthai tinos) é usado de forma restrita para significar exatamente o mesmo que "ser dito de" (legesthai kata tinos). É plausível que Aristóteles tenha pretendido um uso técnico consistente e que esse uso esteja conectado à predicação essencial. 

De qualquer modo, a espinha dorsal do essencialismo nas Categorias é a distinção entre as relações "estar em" e "ser dito de". Ao longo do texto, Aristóteles parece pressupor que as substâncias primeiras pertencem inevitavelmente a certas substâncias segundas, ou seja, a uma espécie específica e aos gêneros correspondentes. Como tanto o nome quanto a definição das substâncias segundas se aplicam aos substratos dos quais são predicadas, as substâncias segundas indicam o que as substâncias primeiras são, estabelecendo, assim, uma relação de predicação essencial. 

As substâncias segundas dependem das substâncias primeiras, e, assim, as Categorias defendem o chamado "realismo aristotélico": a posição de que não existem universais não instanciados. O essencialismo aristotélico nas Categorias pode ser entendido como a tese de que as substâncias primeiras (indivíduos concretos) pertencem necessariamente a certas substâncias segundas (como espécies e gêneros) e que estas últimas "revelam" ou "explicam" algo essencial sobre as primeiras. Entretanto, esse essencialismo não tem um caráter causal ou explicativo, como ocorre no essencialismo da Metafísica de Aristóteles. Enquanto na Metafísica as formas e essências são vistas como "causas do ser" e desempenham um papel causal e explicativo fundamental, nas Categorias, afirmar que uma substância segunda "revela" ou "explica" uma substância primeira significa apenas que ela indica a espécie ou o gênero ao qual essa substância pertence. Essa revelação, contudo, não implica que a substância segunda cause a existência ou constituição da substância primeira. 

 

8. ARISTÓTELES EM COMO A ESSÊNCIA FUNDAMENTA A NECESSIDADE (Michail Peramatzis)  

 

Aristóteles não entende a necessidade como algo fundamental ou primitivo. Em vez disso, ele argumenta que as características necessárias dos (tipos de) seres derivam de sua essência. Da mesma forma, proposições que atribuem características necessárias a esses seres têm como base proposições sobre o que essencialmente lhes pertence. Para Aristóteles, como "necessariamente" equivale a "não possivelmente não", a modalidade, em termos gerais, é fundamentada na essência, enquanto a essência não depende da modalidade. 

O essencialismo de Aristóteles pode ser sintetizado em quatro pontos principais: (i) necessidade, per se e essência: o conhecimento demonstrativo apoia-se em necessidades que se aplicam universalmente e estão fundamentadas na essência de um ser; (ii) essencial e meramente necessário per se: Aristóteles distingue entre características que integram a essência de um ser e aquelas que decorrem de sua essência, mas não a compõem diretamente; (iii) essência e causa: a essência de um ser serve como a causa explicativa de suas necessidades e atributos; (iv) assimetria entre essência-causa e necessidade: a essência é o fundamento das necessidades, mas o inverso não ocorre. 

Se válido, o essencialismo de Aristóteles tem os elementos para sustentar que a essência fundamenta a necessidade, mas não o contrário, pois ele recorre aos conceitos de causa e explicação. Se a essência, por definição, atua como causa ou explicação para características necessárias (ainda que não essenciais), torna-se evidente por que ela sustenta a necessidade, enquanto a necessidade, por si só, não explica ou fundamenta a essência. Para Aristóteles, essência e causa não podem ser consideradas de forma isolada, já que nenhuma delas, sozinha, é suficiente para justificar a assimetria entre essência e necessidade. Em vez disso, seu essencialismo sugere uma integração, uma "essência causal" ou "causa essencial", que desempenha esse papel explicativo. Embora essência e causa possam ser modos diferentes de se referir a um mesmo fenômeno, cada conceito assume funções teóricas e explicativas específicas, sendo interdependentes, mas conceitualmente distintos. 

Assim, o essencialismo aristotélico defende que a essência fundamenta a necessidade ao incluir intrinsecamente um tipo substantivo de causa. Esse tipo de causa estabelece uma assimetria robusta expressa pelo "porque". Ao mesmo tempo, a relação entre causa e essência não é algo externo ou contingente, mas, ao contrário, é sensível à natureza do objeto, funcionando como um fixador de identidade. A afirmação de que essência e causa "são a mesma coisa" indica uma conexão tão profunda que não é possível conceber uma essência sem algum tipo de causa substancial ou uma causa genuína que seja acidental. Portanto, a causa deve ser, pelo menos em parte, um determinante da natureza do tipo em questão. Essa visão essencialista concebe a relação entre essência e causa como uma interdependência ou "mesmidade" sem identidade, sem reduzir uma à outra. 

 

PARTE III – FORMA, MATÉRIA E TELEOLOGIA  

 

9. HILEMORFISMO PREDICATIVO NA METAFÍSCA Z (Mary Louise Gill) 

 

Na Metafísica Z, Aristóteles analisa a relação entre matéria e forma utilizando o que se pode chamar de hilemorfismo predicativo. Nos capítulos Z.1–16, Aristóteles apresenta diversos critérios para a substancialidade, evidenciando que nenhum ente pode satisfazer todos esses critérios simultaneamente e, portanto, triunfar como substância primeira. Essa análise demonstra uma abordagem aporética, mas produtiva, no entendimento da substancialidade. Além disso, o tratamento aristotélico da matéria como um sujeito persistente através da mudança compromete a substancialidade até mesmo do candidato mais promissor de Aristóteles: a forma substancial. 

A Metafísica, que Aristóteles denomina sabedoria, filosofia primeira, ciência do ser enquanto ser e, em referência aos seus objetos mais elevados, teologia, possui uma estrutura distinta das ciências especiais, incluindo a filosofia natural. Enquanto as ciências especiais investigam um gênero específico do ser, como o número (aritmética), a mudança (filosofia natural) ou a vida (biologia), a filosofia primeira examina o ser em geral e busca os princípios e as causas do ser substancial (ousia). Em Metafísica Γ.2, Aristóteles organiza sua investigação em torno de uma noção central de ser: o ser substancial. 

No início da Metafísica Z.1, Aristóteles afirma que o ser é dito de muitas maneiras e distingue quatro modos principais de ser: (i) ser acidental; (ii) ser como verdade; (iii) tipos de ser categorial; e (iv) ser potencial e atual (VI, 2, 1026a33–b2). Ele identifica a substância (ousia) como o tipo primário de ser e busca suas causas e princípios. Inicialmente, Aristóteles descreve a substância como to ti esti kai tode ti (“o que é e este algo”), sugerindo que ele procura algo que satisfaça ambas as descrições, com ênfase na segunda. 

Nas Categorias, Aristóteles defende o critério de ser um sujeito último como fundamental para a substancialidade. Substâncias individuais, como um humano ou um cavalo particular, são os sujeitos últimos (hupokeimena) que suportam as propriedades não substanciais, como qualidades e quantidades. No entanto, na Metafísica, Aristóteles reavalia essa perspectiva: os objetos físicos particulares não podem ser substâncias primeiras de forma direta, pois são compostos de matéria e forma. Nesse composto, a matéria serve como sujeito da forma e, por isso, poderia ser vista como um candidato mais forte à posição de sujeito último. 

Aristóteles introduz o conceito de kathhauto (“por si mesmo”, “em virtude de si mesmo”) para delimitar a essência. Nos Primeiros Analíticos 1.4, ele apresenta dois modos de predicação kathhauto: (i) um predicado pertence a um sujeito kathhauto se o sujeito não pode existir sem o predicado, e o predicado é essencial para a definição do sujeito; e (ii) um predicado pertence a um sujeito kathhauto se o predicado não pode existir sem o sujeito, e o sujeito é essencial para a definição do predicado. 

No final de Z.1, Aristóteles conclui que seus predecessores investigaram a questão fundamental sobre o ser: ti to on (“o que é o ser?”). Em Z.3, ele descreve a substância como sendo dita de ao menos quatro maneiras: essência, universal, gênero e sujeito. Em Z.4, delimita a essência (to ti ēn einai) como aquilo que um ente é kathhauto. Substâncias primeiras são aquelas cujo ser é definido integralmente por sua essência, sendo o que são apenas por si mesmas. Em Z.6, Aristóteles sugere que Sócrates pode satisfazer esse critério, ao ser explicado por sua natureza como organismo vivo. 

Aristóteles argumenta que organismos vivos são substâncias primeiras porque sua essência e forma explicam completamente seu ser e comportamento natural. Eles possuem uma independência metafísica, sendo separáveis em conta e causalidade de tudo o mais. Nessa abordagem, Aristóteles redefine a relação entre matéria e forma como análoga à relação entre gênero e diferença específica: a matéria é um "indeterminável" que a forma diferencia, tornando o ente algo definido. O composto é definido inteiramente pela forma, enquanto a matéria permanece subordinada como potencialidade pura. 

O hilemorfismo predicativo emerge aqui como uma solução: a forma é aquilo que é predicado da matéria. É a forma que confere identidade e características definidoras ao objeto material. Esse hilemorfismo predicativo permite a Aristóteles articular como matéria e forma interagem na constituição das substâncias, preservando a centralidade da forma na explicação do ser enquanto ser. 

 

10. MATÉRIA ARISTOTÉLICA E O “SUBJACENTE” (Lindsay Judson) 

 

Para Aristóteles, o conceito de "matéria" pode ser abordado de duas maneiras distintas, mas profundamente conectadas, como um princípio e como aquilo que é material. Na Física I, o foco de Aristóteles está na matéria entendida como um princípio. Em termos simples, ser um princípio das substâncias naturais significa ser um dos elementos fundamentais pelos quais essas substâncias devem ser adequadamente explicadas. 

Ao longo da Física I, Aristóteles investiga os princípios das coisas que existem por natureza, identificando três deles: forma, privação e o hupokeimenon. Sua ideia central é que todo ente submetido a mudança é, de alguma forma, um composto. Um dos componentes desse composto, uma privação, desaparece durante a mudança, sendo substituído por algo novo, a forma. No entanto, o outro componente não desaparece: o que subjaz à mudança é o sujeito da privação, o hupokeimenon. 

Para Aristóteles, o hupokeimenon deve ser entendido como o sujeito da mudança substancial, e não como uma entidade lógica cuja essência permanece constante ao longo da mudança. Essa distinção é crucial para compreender como Aristóteles vê a matéria como princípio e seu papel na explicação das transformações nas substâncias naturais. 

 

11. FORMA ENVOLVENDO MATÉRIA E NECESSIDADE HIPOTÉTICA NO DE ANIMA DE ARISTÓTELES (T. K. Johansen) 

 

O ponto de partida para discussão deste texto é o trecho do primeiro capítulo de De Anima, onde Aristóteles apresenta sua estratégia para explicar as afecções psicológicas. Esse trecho serve como uma introdução programática para o restante de sua psicologia, na medida em que se enquadra na filosofia natural. O ponto principal é que as afecções psicológicas devem ser estudadas como pertencentes ao corpo, e não da mesma forma que um matemático estuda propriedades matemáticas separadas do corpo (De Anima 403a25–b19).  

Nesse texto do De Anima, Aristóteles menciona a relação entre matéria e forma. Há três leituras possíveis da noção de forma e matéria que aparece nessa passagem: (i) a explicação do cientista natural simplesmente combina a matéria e a forma como estudadas pelos materialistas e dialéticos; (ii) a forma em si é essencialmente materializada (interpretação de David Charles); e (iii) a forma natural hipoteticamente exige um determinado tipo de matéria.  

A afirmação da terceira interpretação, então, é que uma forma natural, por necessidade hipotética, implica uma realização material específica. A noção de necessidade hipotética está incorporada à de causalidade final ou teleologia. Existem causas finais e causas contributivas, e as últimas são hipoteticamente necessárias para as primeiras. Isso é, portanto, uma noção muito mais forte do que uma simples condição necessária: é a relação entre um fim e um meio causal específico para alcançar esse fim. 

A terceira interpretação apresenta vantagens em relação às demais. Na primeira interpretação, o psicológico e o físico são vistos como dois tipos distintos de eventos que podem ser separados em sua explicação, o que levanta a questão de por que um evento psicológico deve ser realizado com um evento físico específico. A segunda interpretação, proposta por David Charles, oferece uma visão mais empolgante ao tratar os processos mentais como intrinsecamente psicofísicos, eliminando o problema da relação entre o psicológico e o físico como eventos distintos, típico da filosofia pós-cartesiana da mente. Já a terceira interpretação, embora não forneça o forte argumento anti-cartesiano da segunda, sugere que, desde que a definição da forma envolva uma causa final que hipoteticamente necessite da matéria como instrumento para essa função, não há uma questão residual sobre por que essa forma é realizada em tal matéria. A forma, entendida de maneira funcional, exige que a função seja realizada em um tipo específico de matéria, o que implica uma inseparabilidade entre o psicológico e o físico, mesmo que não seja explicitada na definição formal. 

 

12. VIDA, AGÊNCIA E VALOR (James G. Lennox) 

 

David Charles ressalta que, para Aristóteles, as explicações científicas são, por natureza, fundamentalmente causais. Para compreender plenamente a noção de explicação teleológica em Aristóteles, é essencial entender como os fins dos processos naturais atuam como causas. Isso implica que o conceito de causa deve ser definido de maneira a incluir os fins como um tipo de causa. Charles estabelece três requisitos que Aristóteles considera indispensáveis para casos genuínos de causalidade teleológica: (i) a existência de objetivos ligados às necessidades ou desejos de organismos ou agentes, essenciais para sua sobrevivência ou bem-estar; (ii) agentes ou organismos definidos essencialmente por sua sensibilidade a tais objetivos; e (iii) capacidades presentes em naturezas adequadamente unificadas, que existem em função de ações ou processos direcionados a esses objetivos. 

Uma causa teleológica pode ser definida como uma explicação causal na qual uma ação, processo ou função ocorre porque conduz a um fim que é considerado um bem, seja para o agente que realiza a ação ou para outro beneficiário. Esse fim não é meramente um resultado previsível, mas algo que contribui de forma positiva para a vida ou o bem-estar do agente ou organismo, de acordo com sua natureza. David Charles propõe o modelo de "Sensibilidade à Bondade", segundo o qual a teleologia aristotélica pode ser compreendida por analogia com ações intencionais, nas quais o agente é sensível à bondade do objetivo e dos meios para alcançá-lo. Esse modelo pode ser expandido para argumentar que o conceito de agência, juntamente com um conjunto de conceitos normativos associados, deve ser, e na prática já é, estendido a todos os seres vivos. 

O que parece necessário, portanto, é um conceito que capture as características comuns entre os desejos de agentes conscientes e deliberantes e as necessidades atendidas pela natureza robusta e contextualmente sensível de toda atividade vital. Harry Binswanger introduziu o termo significância valorativa para descrever aspectos do ambiente de um organismo que podem ser considerados úteis, benéficos, vantajosos ou necessários para sustentar sua vida. Os objetivos da atividade orgânica possuem significância valorativa com base no que o organismo precisa para manter e promover sua existência, bem como nas ações necessárias para alcançar esses objetivos, independentemente de o organismo desejar ou reconhecer cognitivamente tais objetivos como valiosos ou benéficos. Em outras palavras, a significância valorativa reflete a relação objetiva entre as necessidades vitais do organismo e as características do ambiente que favorecem sua sobrevivência e florescimento, independentemente de consciência ou desejo explícito. 

 

PARTE IV. MODALIDADE, MUDANÇA E ESPAÇO 

 

13.  REFLEXÕES SOBRE A ONTOLOGIA MODAL DE ARISTÓTELES 

 

A ontologia geral de Aristóteles, como apresentada em sua obra Metafísica, é centrada no estudo do ser enquanto ser (τὸ ὂνὄν). A ontologia de Aristóteles tem uma estrutura pros hen ("focada em um") e que considera não só as categorias de ser (substância e acidentes), mas também os modos de ser. São três os modos de ser: (i) Completude (entelecheia, ἐντελέχεια): conceito modal que expressa a completude ou realização plena de algo, especialmente no contexto de sua unidade e ser tendo uma certa supremacia sobre o que esse algo unifica ou governa (exemplo: a alma como unidade que governa o corpo); (ii) potencialidade (dinamis, δύναμις): capacidade ou disposição intrínseca de algo para se tornar ou realizar algo, governada por uma completude (entelequia) que determina sua forma e identidade; (iii) atualidade (energeia, ἐνέργεια): é o modo de ser em atividade ou em funcionamento de algo que é definido e específico. Ela representa a realização plena de uma potencialidade. 

Aristóteles distingue dois tipos de potencialidade/atualidade: (i) potencialidade/atualidade simpliciter: é baseada na potencialidade completada que é adquirida no objetivo do movimento. (ii) movimento (kinēsis): forma de potencialidade incompleta e passiva em que a atualidade é entendida como um processo em andamento, ainda não finalizado.  potencialidade passiva na mudança é caracterizada por uma estrutura triádica que envolve: (i) agente: a causa eficiente da mudança; (ii) paciente: o sujeito que sofre a mudança; (iii) contato: a interação observável entre agente e paciente, que ocorre em um tempo e espaço definidos. 

Para Aristóteles, o universo não é composto apenas por eventos aleatórios, mas é, em sua totalidade, um sistema dinâmico e ordenado, e essa ordem é entendida como logos (razão, princípio organizador). Essa ideia de ordem se estende também às operações cognitivas da alma e às ações intencionais. Aristóteles identifica duas faculdades cognitivas da alma: (i) percepção sensorial (aisthēsis): capacidade de perceber o mundo através dos sentidos(ii) pensamento discursivo (dianoia): opera sob a orientação de um modo normativo de falar (logos). Com base nessas faculdades, Aristóteles propõe duas iniciativas cognitivas da alma: (i) iniciativa-ergon: processo pelo qual a alma acessa diretamente as causas eficientes através da observação sensorial; (ii) iniciativa-logos: processo pelo qual a alma busca compreender a forma (eidos) a partir da essência (ousia) das coisas.  Embora a iniciativa-ergon e a iniciativa-logos sejam fontes cognitivas independentes, elas cooperam para fornecer uma compreensão completa da realidade: 

A partir disso, Aristóteles faz uma distinção clara entre (i) conhecimento por observação: é baseado na percepção sensorial de coisas particulares aqui e agora; (ii) conhecimento por definição: envolve a compreensão da forma (eidos) ou essência (ousia) de algo, a qual é não-sensível e, portanto, não pode ser diretamente observada. O objetivo de Aristóteles é compreender o logos (princípio organizador) da essência ou substância e mostrar como a forma, como um logos, se relaciona com a matéria quando está em atualidade (energeia).  Isso envolve: (i) investigação baseada na observação: examina como as coisas estão em movimento e ordem no mundo sensível; (ii) investigação racional: busca definir a essência das coisas, identificando o elemento causal básico que unifica a substância. 

Aristóteles destaca a causa eficiente como o elemento que conecta o logos (a forma ou essência) e o ergon (a atualidade observável). A causa eficiente é o agente que traz a atividade (energeia) a partir da potencialidade (dinamis).  Nesse contexto, Aristóteles rejeita a visão dos eleatas sobre o movimento. Os eleatas, como Parmênides e Zenão, sustentavam que o movimento não pode pertencer ao ser, pois identificavam a mudança com o não-ser. Aristóteles rejeita essa posição, observando que o movimento não é simplesmente uma transição do ser para o não-ser, em vez disso, ele sustenta que o movimento é uma forma de atividade (energeia) regulada internamente pela entelecheia (a realização plena de uma potencialidade).  

Aristóteles propõe a seguinte definição modal do movimento: o movimento é a completude (entelecheia) da coisa potencial, enquanto potencial. Com base nessa definição modal, Aristóteles classifica os movimentos em quatro tipos: (i) substancial: geração e corrupção; (ii)  qualitativo: mudança de qualidade; (iii) quantitativo: aumento e diminuição: (iv) locativo: mudança de lugar. Assim como o movimento, a alma também é explicada em termos da ontologia modal de Aristóteles. Ele discute a alma em dois aspectos: (i) separabilidade em termos de definição (logos): a alma é separável em termos de definição porque pode ser compreendida como uma forma (eidos) independentemente da matéria; (ii) inseparabilidade em termos de atividade (ergon): a alma é não-separável em termos de atividade porque só pode realizar suas funções (por exemplo, nutrir, perceber, pensar) em um corpo vivo.   

 

14. COMO ARISTÓTELES ENTENDE A MUDANÇA? 

 

Na Física 3.1–3, Aristóteles dá continuidade à sua investigação sobre conceitos fundamentais da filosofia natural, analisando a natureza da kinesis (mudança). Ele inicia o Livro 3 revisando distinções familiares e explicando a mudança em termos das potências ativas e passivas que a constituem, bem como as atividades correspondentes de cada uma. Aristóteles adverte que empregará modos de raciocínio típicos da dialética, o que se reflete em diferentes estratégias argumentativas ao longo dos capítulos: um argumento reductio (3.1) baseado nos Tópicos e Analíticos Posteriores, uma revisão de opiniões tradicionais sobre a mudança (endoxa) em 3.2, e uma série de aporias lógicas organizadas em forma de dilema em 3.3. 

No centro dessa discussão está a famosa analogia aristotélica que compara a mudança com uma estrada de mão dupla, inspirada na ideia heracliteana de que o caminho para cima e o caminho para baixo são, de certo modo, o mesmo. Essa analogia serve para esclarecer a relação entre o papel ativo do agente da mudança e o papel passivo do paciente. O trecho problemático em Física 3.3, 202b20–1, levanta questões sobre como interpretar essa relação entre os componentes ativos e passivos da mudança.  

Duas principais interpretações são possíveis usando a analogia do ensino do professor (componente ativo) e do aprendizado do aluno (componente passivo): (i) interpretação simétrica:  o ensino do professor e a aprendizagem do aluno são dois aspectos simultâneos de uma única mudança, que é a aquisição de conhecimento pelo aluno; (ii) interpretação assimétrica: a mudança é identificada exclusivamente com o papel passivo do aprendiz, embora o ensino do professor e a aprendizagem do aluno ocorrem simultaneamente, a mudança em si é equivalente apenas à aprendizagem. 

A interpretação assimétrica, porém, enfrenta um problema: Aristóteles parece listar tanto o agir sobrequanto o ser afetado por como ingredientes da mudança, o que torna difícil sustentar que apenas um deles a constitua completamente. Além disso, em vários trechos, Aristóteles parece favorecer a visão simétrica ao enfatizar a relação entre os dois constituintes da mudança. 

Além dessas leituras sobre a constituição da mudança, há também abordagens sobre sua localização: (iii) localização da mudança no aprendiz: Tanto a atividade do ensino quanto a da aprendizagem ocorrem no aluno, reforçando a ideia de que a mudança se dá integralmente no paciente; (iv) distribuição das potências antes da mudança: Antes de sua realização, as potências ativa e passiva estão distribuídas entre professor e aluno, a potência ativa de ensinar pertence ao professor e a potência passiva de aprender pertence ao aluno. 

As leituras (iii) e (iv) são amplamente aceitas no pensamento aristotélico, enquanto (i) e (ii) competem como possíveis interpretações de sua visão final.  No entanto, a interpretação simétrica parece ser a mais fiel à filosofia de Aristóteles. Nessa abordagem, ensino e aprendizado são mutuamente interdependentes e partes inseparáveis do mesmo processo, reforçando a ideia de que a mudança não se reduz a um único dos seus aspectos, mas resulta da interação entre ambos. 

 

15. ARISTÓTELES: PROCESSO E CONTINUIDADE (Ursula Coope) 

 

David Charles defende a ideia de que o movimento (kinēsis) está mais próximo do que entendemos como processo do que do que chamamos de evento. Nesse sentido, Charles faz duas afirmações chave sobre a kinēsis: (i) ela possui "profundidade modal", ou seja, poderia ter se desenvolvido de maneira diferente de como efetivamente se desenvolveu; (ii) é o tipo de entidade capaz de ter propriedades contrárias em momentos distintos.  

Essas afirmações de Charles sobre o status ontológico da kinēsis, quando analisadas junto com as observações de Aristóteles, levantam duas questões. Primeiramente, se uma kinēsis não é uma entidade capaz de sofrer mudança, Aristóteles pode realmente sustentar que uma mesma kinēsis seja (de forma não derivativa) o sujeito de propriedades contrárias em diferentes momentos? Em segundo lugar, se uma kinēsis é composta de partes temporais, como ela pode ter profundidade modal? Como pode ser uma entidade que poderia ter sido interrompida, mas não foi? 

As obras de Aristóteles sugerem duas visões distintas sobre o status ontológico da kinēsis, e há razões para acreditar que ele tenha alterado sua posição a esse respeito. Em Categorias e Física 5–6, Aristóteles apresenta uma perspectiva segundo a qual a kinēsis não é o tipo de coisa que pode (de forma não derivativa) possuir propriedades contrárias em momentos diferentes. Essa visão também implica que a kinēsis não é o tipo de entidade capaz de possuir profundidade modal. 

Por outro lado, em outras passagens da Física, Aristóteles sugere uma visão diferente sobre a kinēsis, compatível tanto com a tese de que a kinēsis pode (de forma não derivativa) ter propriedades contrárias em momentos distintos, quanto com a tese de que ela possui profundidade modal. Nessa segunda visão, a kinēsis continua a ser substancialmente diferente de uma substância duradoura. Diferentemente de uma substância, a kinēsis é composta de partes temporais; para que ela exista, é necessário que uma parte suceda outra no tempo. Contudo, nessa nova perspectiva, a kinēsis se assemelha a um contínuo, pois possui uma unidade que lhe permite (de forma não derivativa) ter propriedades contrárias em momentos distintos e possuir aquilo que chamamos de "profundidade modal". 

A concepção apresentada em Física 8 representa uma evolução em relação à perspectiva dos livros 5–6, permitindo uma compreensão mais refinada do movimento como algo que pode ser interrompido e que pode exibir propriedades incompatíveis em momentos distintos. Além disso, a kinēsis é comparada a uma substância duradoura, mas com a diferença crucial de se desdobrar no tempo, possuindo partes temporais e uma natureza processual. 

 

15. POR QUE O ESPAÇO É DESCONTÍNUO? (Vassilis Karasmanis) 

 

O De Lineis Insecabilibus, um tratado pseudo-aristotélico, foi escrito para refutar a teoria das "linhas indivisíveis", que propõe que as linhas (e, por extensão, o espaço) são compostas por átomos discretos, e não contínuas. O tratado apresenta cinco argumentos a favor dessa teoria, seguidos de sua refutação. 

O primeiro argumento é dividido entre o dado (as linhas indivisíveis são aquelas medidas pela mesma unidade) e o que se busca provar (a existência de uma linha indivisível). O segundo argumento sustenta que, segundo a teoria, as linhas formadas pela medida devem ser indivisíveis e, portanto, contadas uma única vez. 

O terceiro argumento, mais complexo, se divide em duas partes: (i) a primeira trata de quadrados formados por linhas racionais, mostrando que todos seriam comensuráveis; (ii) a segunda, por meio da reductio ad absurdum, sugere que ao dividir o plano por uma linha prescrita, a linha resultante não será racional, irracional, nem qualquer outra categoria conhecida, como a apotome (linha que não pode ser expressa como soma ou diferença de quantidades racionais). 

Esse argumento leva a três conclusões: (i) a linha gerada não será racional, nem irracional, nem outro tipo; (ii) as linhas geradas não terão uma natureza própria; (iii) essas linhas ficarão entre as racionais e irracionais. A ideia de indivisibilidade é problemática porque as linhas resultantes não se encaixam em nenhuma categoria existente, sugerindo contradições lógicas.  

Assim, o De Lineis Insecabilibus refuta a teoria das linhas indivisíveis, mostrando que ela leva a contradições ao tentar tratar o espaço de maneira discreta e indivisível. No entanto, a refutação aristotélica, que vê o infinito como algo potencial, é mais eficaz para preservar a continuidade e evitar tais contradições. 

 

 

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Bruno dos Santos Queiroz

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