DIFERENÇAS ENTRE KANT E HUSSERL


    Tanto Husserl quando Kant procuram construir uma filosofia da subjetividade transcendental, buscando desvelar as estruturas apriorísticas que permitem ao sujeito constituir o mundo dos objetos. A princípio, o projeto e os conceitos de ambos podem parecer indicar uma mesma filosofia, contudo a maneira como os termos são entendidos pelos autores é distinta. Embora ambos falem de fenômeno, experiência, idealismo transcendental, intuição, consciência e subjetividade, o sentido que esses conceitos são entendidos dentro do pensamento de cada autor não é o mesmo. Neste texto, será apresentado a relação entre Kant e Husserl a partir especialmente das diferenças entre o psicologismo transcendental kantiano e a fenomenologia husserliana. 

O Idealismo Transcendental em Kant é a posição segundo a qual os objetos que conhecemos são o que são apenas na medida em que são constituídos de modo dinâmico pelos dados sensíveis formatados espaço-temporalmente na sensibilidade e categorizados pelo entendimento. Essa compreensão kantiana foi interpretada por alguns, como Wayne Waxman, como uma espécie de psicologismo, o que colocaria Kant entre aquilo contra o qual Husserl mais direciona suas críticas, embora o psicologismo que Husserl tenha em mente não seja um psicologismo do tipo transcendental. Contudo, o idealismo kantiano seria um psicologismo porque uma referência à mente e aos atos psíquicos é sempre parte daquilo que constitui o objeto. Nesse sentido, o objeto em Kant é aquilo que é psicologicamente constituído.

         Desse modo, é preciso compreender que, para a filosofia kantiana, o objeto não é aquilo que existe fora de nós ou independente de nossa mente, o objeto só existe enquanto é, em certo sentido, produto de nossas operações psicológicas. A coisa em si não é um objeto nem faz qualquer sentido falar que em Kant o objeto é modificado pela mente ou que temos acesso ao objeto apenas indiretamente. Ao contrário disso, o objeto é construído pela própria mente, ele é objeto apenas na relação cognitiva com os atos psíquicos. Isso ocorre porque não faz qualquer sentido falar do objeto como algo em geral ou uma coisa indeterminada, já que o objeto é sempre algo específico e determinado, “algo enquanto algo”, de modo que sua natureza envolve necessariamente uma dimensão psicológica. 

       Dado que o objeto, na filosofia de Kant, é sempre um produto da psique, não se deve pensar que as formas da sensibilidade e as categorias do entendimento sejam meramente condições para a cognoscibilidade dos objetos, como se precisássemos delas para ter acesso aos objetos. Ao invés disso, essas condições são, elas mesmas, constitutivas dos objetos. O objeto é sempre um “para-si”, distinto da coisa que é um “em-si”. Sem as condições de constituição presentes na subjetividade transcendental, não existem objetos. Dessa forma, podemos dizer que as categorias do entendimento não são somente condições para que possamos conhecer os objetos, mas são, melhor dizendo, condições para a própria existência de objetos. É por essa razão que o idealismo transcendental kantiano é, por vezes, lido como, não apenas uma teoria epistêmica de como conhecemos os objetos, mas uma teoria psicologista da constituição dos objetos.

         A filosofia kantiana pode ser denominada, em certo sentido, como sendo uma espécie de psicologismo transcendental que busca encontrar na psiquê humana as condições de constituição dos objetos dados na experiência sensível. Kant está, assim, encontrando uma solução para as críticas céticas que David Hume levantou contra os metafísicos racionalistas. De acordo com Hume, não encontramos na nossa experiência nada que os metafísicos tomavam como seus conceitos fundamentais, como “substância”, “ego”, “alma” etc. Ninguém tem uma experiência de algo como uma substância permanente ou de um ego como elemento de síntese de nossas experiências. Tudo que temos é um fluxo sempre mutável de ideias e impressões que funciona como uma espécie de feixe no qual não encontramos nem um eu que os unifique nem qualquer substância permanente. Com isso, Hume lança sobre a metafísica uma forte sombra de ceticismo e é a partir disso que Kant diz ter encontrado aquilo que o acordou de seu sono dogmático.

        Despertado de seu sono dogmático, Kant encontra em seu psicologismo transcendental uma saída para o problema cético de Hume. Ao invés de assumir o pressuposto da metafísica de que conceitos como substância, ego, causalidade etc. são constituintes das coisas elas mesmas, Kant os propõe como categorias do entendimento. Se, por exemplo, os aristotélicos falavam das categorias do ser, como a substância, a quantidade, a qualidade e outros, ou os platônicos direcionavam seu olhar para as formas como elementos eidéticos que permitem a identidade na diferença, Kant direciona seu olhar para o entendimento como o local das categorias e daquilo que permite a unidade na diversidade. Hume estava correto em dizer, por exemplo, que não encontramos substância no feixe de nossas experiências, o que ele ainda não havia notado é que a substância e outras categorias poderiam ser encontradas naquilo que é condição da experiência. Kant propõe, dessa forma, uma psicologia da subjetividade, segundo a qual, substância, tempo e espaço são condições formais da experiência. O psicologismo transcendental se coloca, entretanto, como uma espécie de psicologia não-empírica, na medida em que pretende ir além de Hume, encontrando categorias que estão para além dos limites do que se dá no fluxo da experiência. Se o método de Hume não o permite ultrapassar os limites da mente, atendo-se às impressões como aquilo além de que nada se pode falar, o método transcendental de Kant permite desvelar aquilo que, mesmo não sendo dado na experiência, é uma condição para ela.

Embora Kant proponha uma espécie de psicologia não-empírica, sua filosofia transcendental mantém que todo conhecimento tem sua gênese na experiência, inclusive o conhecimento a priori. Os juízos a priori, em Kant, não são aqueles que meramente precedem a experiência, porque todo conhecimento deve remontar em algum grau à experiência. Na realidade, o juízo a priori é aquele que não envolve a consciência de um dado sensível particular. Mas é a possibilidade de um juízo, não só a priori, mas melhor dizendo, sintético a priori, que dá sentido ao idealismo transcendental kantiano. O juízo sintético é aquele que é substantivo no sentido de que ele faz uma cópula de um sujeito a um predicado que não está intensivamente contido no sujeito. Juízos sintéticos a priori, ou seja, juízos que não envolvem a consciência de dados sensíveis particulares, mas ao mesmo tempo são intensivamente substantivos, são a base de possibilidade para uma psicologia transcendental não-empírica.

        Kant dá como exemplo da possibilidade de juízos sintéticos a priori, a geometria. Os juízos geométricos vão para além de simplesmente explicitar algo que está analiticamente contido no sujeito enunciado. Eles são, entretanto, juízos que requerem uma referência que vem do acréscimo que parte das formas puras do espaço e do tempo, não relativos ao conteúdo sensível particular da sensibilidade, mas justamente do elemento formal puro da intuição sensível. É a existência dos juízos sintéticos a priori, portanto, que possibilitam uma psicologia transcendental ou uma psicologia não-empírica, o que possibilita a dedução metafísica das categorias da faculdade do entendimento e, consequentemente, de sua importância na constituição dos objetos. Essas categorias são, no entanto, compreendidas ainda em sentido psicológico, ainda que aqui tenhamos um tipo de psicologia distinta da psicologia experimental.

Seguindo a interpretação psicologista de Kant, feita por autores como Wayne Waxman, ao rejeitar tanto o racionalismo quanto o empirismo, a filosofia kantiana postula que os primeiros princípios da lógica, da matemática e da ciência são derivados do psiquismo. É verdade que Kant buscou desassociar a psicologia empírica da lógica. Ele diferenciava a lógica natural, que lida com como a mente associa ideias, da lógica artificial, que discorre sobre as normas do pensar corretamente.  A lógica natural pode ser objeto de uma psicologia empírica na medida em que depende de considerar como nossa faculdade de raciocínio opera. Já a lógica artificial não pode pertencer ao campo de uma psicologia empírica, mas deve, por outro lado, ter sua base traçada até às estruturas essenciais do pensamento ou da psique. Isto é, os conteúdos essenciais e fundamentais do conhecimento, como as formas puras da intuição (espaço e tempo) e as categorias do entendimento (as de quantidade, qualidade, modalidade e relação) são derivadas das operações psicológicas responsáveis pela construção de representações. 

Podemos dizer que, para o psicologismo transcendental kantiano, as formas da sensibilidade e categorias do entendimento não podem ser adequadamente compreendidas sem referência às operações psicológicas de representação. A universalidade lógica e as formas do juízo precisam ser implementadas na cognição e no pensamento em geral, revelando sua dependência das operações psíquicas. Na filosofia kantiana, a epistemologia e a lógica estão subordinadas a uma espécie de psicologia transcendental não-empírica, o que faz com que a geometria e a física, por exemplo, tenham sua base na psicologia humana. Nesse sentido, Kant herda o projeto psicologista de David Hume, que buscava fundamentar noções como causalidade, substância e mesmo as faculdades de memória e imaginação, em uma teoria psicológica do entendimento humano. Contudo, ao distanciar-se do empirismo próprio da filosofia experimental humeana, Kant propõe uma psicologia não-empírica.

Pode parecer estranho falar de um psicologismo a priori, talvez pelo fato de que hoje empregamos o termo a priori muitas vezes como significando algo que precede a experiência. Contudo, como considerado, a priori, em Kant, não é meramente o que precede a experiência, mas aquilo que não envolve a consciência de um dado sensível particular. No psicologismo transcendental, nenhum conhecimento pode de fato preceder a experiência, dado que é nela, como diz a primeira sentença da Crítica da Razão Pura, que todo conhecimento começa, isto é, tem sua gênese. O psicologismo kantiano parte, na verdade, de uma herança de propor uma teoria psicológica do entendimento humano na esteira de autores como Locke, Berkeley e Hume. Esses autores buscavam uma filosofia psicológica que apontava para o fato de que conceitos como causalidade, identidade, espaço, substância e tempo estavam pressupostos em todos os nossos atos psíquicos, fossem eles cognitivos ou conativos. 

          A base da psicologia transcendental de Kant está, de certa forma, na autoconsciência do “eu penso”, no dado psicológico e subjetivo da pura consciência. Os conceitos e as intuições puras são essenciais para o psiquismo de qualquer ser condicionado pela sensibilidade. A teoria kantiana pressupõe, pois, uma autoconsciência relacionada a uma determinada psicologia: a mente de um ser que depende da sensibilidade para ter conhecimento. Certamente, a teoria de Kant pode ser expandida, não só para os humanos, mas para qualquer ser possível cuja mente conhece trabalhando sobre dados sensíveis. Mas essa limitação, dada por um tipo específico de mente, mostra que Kant não esperava acessar um tipo de consciência completamente purificada de tudo o que é psicológico. 

O idealismo transcendental de Kant não trata de formas apriorísticas da consciência que estejam acima de qualquer psiquismo ou que fornecessem as estruturas normativas e epistemológicas de qualquer consciência possível. Ao contrário, a filosofia transcendental kantiana depende de pensar as estruturas transcendentais de uma específica condição psicológica, a de, digamos, uma consciência encarnada que depende dos sentidos para conhecer. O caráter a priori, necessário e universal da filosofia transcendental de Kant não exclui, pois, seu psicologismo. Ao invés disso, mesmo os conceitos de universalidade, necessidade e a priori precisam ser compreendidos psicologicamente. Por exemplo, a universalidade de uma representação não é uma universalidade ilimitada, mas uma universalidade cujos limites são dados pela psicologia de tal modo que mesmo uma representação universal não pode se aplicar às coisas elas mesmas, já que transcendem as fronteiras de nossa mente.

         Parte do psicologismo de Kant está, portanto, em trabalhar uma teoria do entendimento humano cuja fronteira é delimitada pelos limites da mente. É por essa razão que uma tese fundamental de seu sistema é a de que não temos acesso à coisa em si mesma, tudo que conhecemos é o fenômeno. Não se deve confundir isso com pensar que não temos acesso aos objetos em si, mas só aos objetos para nós mesmos. Para Kant, não existe objeto em si mesmo sem referência à cognição, os objetos já são, eles mesmos, sempre fenomenológicos. A distinção kantiana entre coisa em si mesma e fenômeno não deve ser confundida com uma interpretação de que os fenômenos sejam uma ilusão ou algo enganador. Os fenômenos não são como ilusões que se interpõem entre nós e os objetos eles mesmos, eles são, na verdade, aquilo que resulta das operações de nossa mente em dar uma forma ao elemento material derivado dos sentidos. 

          Nossa mente não pode conhecer nada sem que seja pelo trabalho que faz a partir do material derivado dos sentidos. Como considerado, mesmo o conhecimento a priori tem sua origem na experiência. Contra o racionalismo, o sistema kantiano não permite a existência de nenhuma intuição intelectual pura. É a ideia de uma intuição intelectual pura que faz com que a razão caia numa espécie de autoilusão, que Kant denominava como dialética transcendental. É essa ilusão que faz com que a mente ache poder conhecer Deus, a alma e o mundo, saltando do fato de esses três conceitos serem condições lógicas do pensamento para eles serem condições ontológicas. O psicologismo kantiano exclui, pois, qualquer possibilidade de uma capacidade de apreender conteúdos cognitivamente relevantes que se apresentem diretamente à consciência sem passar pela sensibilidade. Em Kant, toda intuição é uma intuição sensível.

Do que foi dito até aqui podemos pontuar quatro elementos da filosofia transcendental de Kant e sua diferença com a fenomenologia de Edmund Husserl: (i) Kant adotava um psicologismo transcendental não-empírico, cuja teoria da consciência era subordinada a pensar a autoconsciência de mentes que só podem conhecer por meio dos sentidos, já Husserl propunha-se a se opor a todo tipo de psicologismo, buscando, por meio da redução transcendental, fazer um retorno às estruturas fundamentais de toda consciência possível; (ii)  o idealismo transcendental de Kant foca em como a subjetividade constitui o mundo dos objetos, enquanto o idealismo transcendental de Husserl é, na verdade, uma forma de correlacionismo que busca conciliar realismo e idealismo; (iii) Kant propunha uma distinção entre fenômeno e coisa em si, enquanto para Husserl, o fenômeno é aquilo que se mostra tal como se mostra a partir de si mesmo; (iv) Kant defendia que toda intuição é uma intuição sensível e que a ideia de uma intuição intelectual pura era uma autoilusão da razão; já para Husserl, temos uma intuição eidética, uma intuição intelectual pura e imediata pela qual acessamos as essências das coisas. 

            Sobre o primeiro e segundo pontos, o idealismo transcendental de Husserl não está subordinado ao psicologismo, a consciência à qual Husserl pretende retornar é a consciência pura, às estruturas essenciais de toda consciência possível, independentemente de qualquer manifestação condicionada da autoconsciência. Ademais, o Idealismo Transcendental de Husserl é, na verdade, uma forma de correlacionismo. Para Husserl, a consciência e o mundo são co-originários, o mundo é constituído pela consciência, mas a consciência é dependente do mundo. Assim, o Idealismo de Husserl é, na verdade, uma conciliação entre realismo e idealismo por meio da ideia de correlação. Não é meramente que a subjetividade constitui o mundo dos objetos, mas é que não há subjetividade sem o mundo dos objetos. Ambos os elementos, subjetividade e mundo, são interdependentes. 

           Edmund Husserl não cai no Idealismo tradicional nem repete o Idealismo transcendental psicologista de Kant, como se só a consciência estivesse direcionada para o mundo ou como se o mundo dos objetos fosse meramente um produto de nossa psicologia. Em Husserl, o objeto também é objeto em referência a uma consciência, não só à consciência psicologicamente condicionada, mas a toda consciência possível. Para todo ato de ver existe uma coisa vista, para todo observar há um observado, para todo olhar há um olhado, para todo ouvir um ouvido, para todo cheirar um cheirado, e para todo lembrar um lembrado. 

Assim, em Husserl, não basta falar numa consciência intencional, é preciso identificar também a natureza constitutiva dos objetos intencionais. É nesse sentido que se pode falar de uma análise noético-noemática. Os atos de consciência (noeses) e a coisa visada (noema), encontram-se numa correlação noético-noemática apriorística. A intencionalidade faz com que o ego puro projete atos intencionais que incidem no objeto, que por sua vez está direcionado à consciência que o visa.

        Husserl fala, então, de um a priori da correlação intencional, isto é, o sujeito e o objeto surgem como inseparáveis, não numa relação de duas anterioridades separadas, nem numa dialética de antagônicos, mas como uma correlação de emergências simultâneas e inseparáveis. O foco não está mais na ênfase idealista no sujeito, nem na ênfase realista do objeto, mas sim na correlação universal e apriorística eu-mundo. Existe uma vinculação universal e inexorável de correlação sujeito-objeto, sem o qual não existiria nem “eu”, nem “mundo”. Essa correlação, portanto, está posta antes de qualquer coisa, por isso, a priori. Isso não significa que as ‘coisas’ (embora essa não seja a melhor palavra) não existiriam se não houvesse nenhum sujeito, mas sim que só pode haver objeto se houver um sujeito que lhe dê sentido. Mas esse sentido não é dado arbitrariamente por uma consciência idealista, antes é constituído na própria aparição do fenômeno à consciência. Não existe, portanto, um objeto visado sem uma consciência intencional que o vise, nem consciência intencional sem um objeto intencional visado.

Sobre o terceiro ponto, em relação à distinção entre fenômeno e coisa em si, Husserl parte da identificação entre ser e aparecer. Ao invés de haver uma coisa em si por trás dos fenômenos, a onto-fenomenologia husserliana pressupõe que o verdadeiro fenômeno é a coisa ela mesma. O fenômeno é aquilo que se mostra tal como se mostra a partir de si mesmo. Se algo é interpretado por nós, não em seu sentido de ser originário, mas como algo que não é a coisa ela mesma, então não podemos falar de fenômeno. Ao invés disso, estamos diante do processo de superimposição, pela qual impomos a algo que se mostra um sentido de ser que não lhe é adequado. Uma mera aparição ilusória não é o fenômeno, por isso, para fazer e deixar ver um fenômeno precisamos de um método que nos faça ir além das superimposições ilusórias e nos permita voltar à essência daquilo que se mostra. O método que permite tal retorno é o método fenomenológico. 

Por fim, quanto ao quarto ponto, o método transcendental de Husserl revela sua diferença com Kant na medida em que o fenomenólogo busca alcançar uma intuição eidética pura. A intuição eidética só se dá após a purificação do olhar de tudo aquilo que é empírico e permite reconhecer como dado cognitivo puro a apreensão da essência daquilo que se mostra. Essa apreensão intelectiva, embora parta de algum modo de dados sensíveis que requerem purificação, não é, ela mesma, dependente de qualquer gênese empírica. A intuição se dá por uma espécie de ato de consciência que apreende, por meio de uma intelecção pura, a essência eidética da coisa ela mesma. Isso é algo inadmissível no psicologismo transcendental de Kant, tanto porque toda intuição para ele é sensível quanto porque nunca temos acesso à coisa ela mesma. 

Desse modo, Husserl entende por pura ou transcendental, a análise fenomenológica na medida em que apreende os fenômenos enquanto idealidades purificadas de qualquer conteúdo empírico. Isso é possível graças à redução eidética, que consiste no retorno do fato empírico singular à “essência” pura e universal. Desse modo, o que se considera é a essência pura fenomenologicamente reduzida e tomada como ideia. A essência é aquilo que o objeto é em si mesmo. A essência se refere às estruturas que subsistem na variação imaginativa, método de variar imaginariamente um objeto a fim de delimitar suas propriedades essenciais e é utilizando-se desse método que se pode alcançar aquilo que a coisa é, não só para uma consciência condicionada psicologicamente, mas para toda e qualquer consciência possível. 

A fenomenologia de Husserl é, portanto, uma ciência da fenomenalidade, em que por ciência entende-se um conhecimento fundamentado de maneira rigorosa. Isso significa que a fenomenologia consiste em uma descrição das estruturas essenciais daquilo que se mostra, tal como se mostra para qualquer consciência possível. Por isso, o método fenomenológico é também um método transcendental. Mas não se trata mais de uma investigação transcendental das condições de constituição do mundo dos objetos realizada por uma autoconsciência que tudo conhece pelos sentidos. Ao contrário disso, a redução fenomenológica transcendental é um retorno às estruturas essenciais de toda consciência possível. 

É em razão disso, que o método fenomenológico requer não só uma primeira epoché, que suspenda nossa superimposição sobre aquilo que se mostra, mas também uma segunda epoché, uma suspensão rumo ao eu transcendental. Essa segunda suspensão requer uma purificação da própria consciência. A autoconsciência psicológica que Kant investiga não pode sobreviver a essa segunda epoché. É somente rumo a uma consciência completamente purificada de tudo aquilo que é psicológico e condicionado, que o método transcendental de Husserl se dirige. Portanto, o idealismo transcendental de Kant difere de Husserl porque o primeiro parte de um psicologismo transcendental que exclui a possibilidade da intuição eidética e de um acesso às coisas elas mesmas, coisas que são fundamentais para a fenomenologia husserliana.


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