FENOMENOLOGIA E TRANSGENERIDADE - TEXTO DE TALIA BETTCHER (TRADUÇÃO)
Embora as pessoas trans tenham sido teorizadas desde o final dos anos 1800, particularmente no campo da sexologia, foi na década de 1950 que uma visão comum da “pessoa transexual” começou a tomar forma. Através do trabalho de Harry Benjamin, Christian Hamburger et al. - na esteira da explosão da mídia em torno da transição de Christine Jorgensen - é que ganhou destaque a compreensão de que haveria uma experiência resistente do próprio Self que não poderia ser modificada por meio de uma intervenção psiquiátrica e que requeria, assim, uma transformação corporal por meio da intervenção cirúrgica e hormonal. Enquanto isso, o trabalho de John Money, John e Joan Hampson e, em seguida, Robert Stoller e Ralph Greenson produziram a noção de "identidade de gênero" (a sensação de ser homem ou mulher). Desse modo, a noção de transexualidade passou a ser associada com a compreensão da identidade de gênero e da inadequação ao corpo. A transexualidade passou a ser entendida como "encontrar-se preso no corpo errado", associando-se às noções de “transtorno de identidade de gênero” e “disforia de gênero”.
Em meados da década de 1990,
houve uma explosão de estudos trans. Esse momento se caracterizou pelo fato de
que as próprias pessoas trans passaram a teorizar sobre a própria experiência,
elaborando compreensões que se opunham ao modelo médico patologizante. Muitos
estudos trans se constituíram em íntima associação à florescente “teoria queer”
da época, embora alguns desses estudos reagissem a essa associação. Embora
muitas das questões abordadas nos estudos trans fossem de caráter filosófico, a
maior parte da discussão ocorreu fora da disciplina de filosofia no que Butler
chamou de "o Outro da Filosofia". Indubitavelmente, essas discussões
se basearam em filósofos como Derrida, Foucault, Merleau-Ponty e, claro, na
própria Butler. Todavia, a disciplina de filosofia demonstrou quase nenhum
interesse nesses estudos trans. Na verdade, foi somente recentemente que se
constituiu algo que poderia ser denominado como "filosofia trans".
No entanto, não se pode negar
que há questões filosóficas importantes que se apresentam à reflexão sobre a
transexualidade. Uma questão, por exemplo, diz respeito especificamente a como
caracterizar a transfobia e a opressão que se baseia na transexualidade. Embora
o modelo dominante tenha sido a ideia de que as pessoas trans são oprimidas por
meio do foco em divisões binárias agudas, tenho argumentado que, além disso, há
mais questões envolvidas, é importante
que se leve em conta a construção da ideia de que pessoas trans estão
"fingindo" ou "enganando" os demais. Faz-se necessário,
pois, refletir em como o contraste entre realidade x aparência desempenha um
papel na transfobia. A imposição do binarismo é um fator importante na
transfobia, mas não é o único tipo de opressão que pessoas trans enfrentam.
Existem várias questões
intimamente relacionadas com as discussões sobre transição de gênero,
identidade de gênero e disforia de gênero (ou, como prefiro chamar,
“descontentamento de gênero”). Em primeiro lugar, temos antes de tudo uma
questão ontológica e talvez semântica: o que significa ser uma mulher e o que
significa ser um homem? Será que a transição de gênero realmente significa uma
mudança de um gênero para o outro? Em segunda lugar, mas ainda relacionado a essas
questões, há uma questão epistemológica: as pessoas trans estão
"corretas" em sua autoidentificação? Em que condições podemos dizer
que alguém está "correto"? Tanto as questões ontológicas como as
epistemológicas podem ser incluídas em uma questão mais geral: como as coisas
devem ser para que as identidades trans sejam válidas?
Essas questões podem ter
importância fenomenológica considerando a prioridade (ou não prioridade) da
própria fenomenologia: pode a experiência da corporeidade em primeira pessoa de
uma pessoa trans ter a capacidade de ressignificar seu próprio corpo no caso de
adotarmos um ponto de partida fenomenológico? Outras questões relacionadas que
têm sido discutidas também envolvem o seguinte: Como podemos adquirir, em
primeiro lugar, experiências corporais de gênero? Até que ponto nossas
experiências de descontentamento com o próprio corpo são mediadas pela cultura?
Isto é, como pode algo tão íntimo como essas experiências corporais serem
informadas pelo significado do corpo e suas possibilidades no interior da
cultura?
Me parece que, talvez a
questão inicial mais essencial que um teórico dos estudos trans possa levantar,
é simplesmente esta: Qual é a fenomenologia da “disforia de gênero”? Como ela
deve ser entendida? A resposta depende da precisão descritiva e do rigor como
uma tentativa de configurar a experiência trans do descontentamento de gênero
por meio de vários conceitos teóricos. Jay Prosser afirma, por exemplo, que
"a imagem de vivenciar-se no corpo errado descreve de forma mais efetiva a
experiência de des-corporificação vivida por pessoas trans antes da transição
de gênero: o sentimento de uma disforia corporal sexuada profundamente
experimentada subjetivamente." Mas será que ele está mesmo certo?
Vamos primeiro considerar o
apelo a uma incongruência entre a identidade de gênero consciente e várias
realidades materiais como a base do descontentamento transgênero. Eu assumo um
senso consciente do meu próprio "self" enquanto mulher ou homem a fim
de fazer parte do senso geral de como uma pessoa entende "o que" ela
é e de como ela entende "quem" ela é - incluindo como ela se encaixa
no mundo. Portanto, uma autoidentidade consciente inclui uma concepção do que
significa ser uma mulher ou ser um homem. Essa autoconcepção pode, é claro, ser
incongruente com a realidade social/material em que a pessoa se encontra: uma
pessoa pode se entender como uma mulher, mas ser considerada pelos outros como
um homem.
Um apelo a essa incongruência,
no entanto, mostra-se inadequada em sua forma de enquadrar o descontentamento
de gênero trans, isso porque a autoidentidade de gênero costuma ser uma das
coisas que podem passar por transformações. “Não tive a experiência trans por
excelência de sempre sentir que deveria ter sido mulher”, diz Julia Serano. “Para
mim, esse reconhecimento surgiu de forma mais gradual.” Alguns de nós nem
sempre sabiamos quem éramos - isso era algo que tínhamos que descobrir por meio
de uma luta. Fomos criados para ter uma identidade de gênero consciente -
informados de que éramos menino ou menina. E passamos a acreditar nisso. Ao
longo de um processo longo e às vezes difícil, tivemos que desfazer essas
crenças e adotar outras. Se for assim, a autoidentidade consciente não pode ancorar a motivação para a transição, pois às vezes a construção dessa
identidade é, na verdade, parte do processo.
No entanto, compreender a
fenomenologia da transformação da identidade de gênero pode muito bem ser uma
tarefa importante. De acordo com Jay Prosser no livro "Second Skins"
(Segunda Pele), uma narrativa autobiográfica não é apenas necessária como o
sinal definidor da transexualidade; é também aquilo por meio do qual a
subjetividade como transexual é possibilitada. Mais do que isso, argumenta
Prosser, a narrativa autobiográfica tem uma função importante para os
transexuais "pós-transição" a fim de reparar a dissonância entre o eu
passado e o presente por meio das características retrospectivas e progressivas
da autobiografia. Quer isso esteja certo ou não, certamente é o caso que uma
nova identidade de gênero deve desempenhar um papel importante em conferir
inteligibilidade na transição. Por exemplo, ao incluir uma narrativa de
"corpo errado" dentro da identidade de gênero de alguém, esse alguém
pode localizar a si mesmo no interior de um fenômeno inteligível, dando sentido
ao descontentamento de gênero e à transição. E apelos desse tipo também podem
ser úteis para garantir a legitimidade da identidade de alguém para si mesmo e
para os outros.
É claro que as descrições sobre descontentamento de gênero trans têm comumente buscado transcender ou
aprofundar a identidade de gênero consciente, apelando para a noção de
corporificação experienciada. Essa compreensão de incongruência gerou um
contraste entre a perspectiva de primeira e terceira pessoa a respeito o corpo.
Da perspectiva de primeira pessoa, o corpo é vivenciado "de dentro".
Pode-se ter consciência de que se está de pé, de que se está movendo-se, e
assim por diante, sem ter que se ver ou se tocar em movimento. Uma das
características dessa experiência do corpo é que ela está disponível apenas
para nós mesmos - ninguém mais experimenta nosso corpo dessa forma. Do ponto de
vista da terceira pessoa, em contraste, o corpo é vivenciado "de
fora". Uma pessoa pode ver e tocar seu corpo assim como os outros também podem.
Ou seja, pode-se sentir o corpo de alguém à medida que ele está disponível para
os demais. Ao reconhecer que se pode experimentar o corpo dessas duas maneiras
como sendo de um determinado sexo ou gênero, obtemos uma incongruência de
primeira e terceira pessoa que é invocada para enquadrar o descontentamento
transgênero. Um homem trans experimenta seu corpo como masculino “por dentro”,
enquanto reconhece (e experimenta) que seu corpo é, "por fora", visto
e experimentado por outros como feminino.
Teóricos tais como Henry Rubin
e Jay Prosser recorreram a esse tipo de modelo em suas formulações de
descontentamento trans. Para ambos, os fenômenos da experiência do membro
fantasma e agnosia corporal (ou anosognosia) possuem um papel de destaque. A
imagem corporal interna pode incluir partes do corpo que não aparecem na
representação de terceira pessoa e que não são consideradas materialmente,
enquanto outras partes do corpo podem não ser reconhecidas apesar de sua
presença no registro de terceira pessoa.
Rubin, por exemplo, se vale da
obra de Merleau-Ponty para dar sentido às experiências descritas acima. Ele
também se baseia nos três níveis de ontologia corporal de Sartre. O primeiro
nível é caracterizado, para ele, como uma experiência trans do próprio corpo
"de dentro" (o corpo-para-si), que é sexuado de uma da
maneira. O segundo nível é caracterizado como o reconhecimento de que o corpo
de alguém, acessível aos outros (o corpo-para-outros), é sexuado de
maneira diferente. E o terceiro nível, de profunda alienação, é caracterizado
pela experiência em primeira pessoa do corpo como um objeto para os outros, que
Rubin usa para entender "a dolorosa compreensão de um transexual de que
sua carne, seu corpo para os outros é... não o que ele vê em sua imagem
corporal”.
Um ponto crucial nessas
formulações é que a transição envolve uma mudança literal na materialidade do
corpo por meio da intervenção cirúrgica ou hormonal. Gayle Salamon em “Assuming
a Body” (Assumindo um Corpo), levanta uma preocupação a respeito dessa
concepção, que diz respeito à possível suposição de que o que está em jogo é a
materialidade bruta do corpo (ao invés do corpo material como interpretado de
alguma forma específica) felizmente conformado a uma imagem corporal que por si
mesma demanda apenas algum corpo material bruto. É porque nosso corpo e partes
do corpo possuem um significado cultural que eles podem vir a ter um
significado para nós. Assim, o significado cultural do corpo precisa ser
centralizado na compreensão do descontentamento trans. Como Salamon argumenta,
nossa própria experiência com o corpo sentido pode estar saturada de
significação cultural, altamente sensível a ela. Isso sugere a possibilidade da
experiência corporal ressignificar o corpo. E é certamente verdade que, pelo
menos para algumas pessoas trans, o descontentamento de gênero pode ser aliviado
pela reinterpretação ou recodificação das partes do corpo.
Esse reconhecimento incide na
questão explicativa: na medida em que o descontentamento trans é entendido como
mediado culturalmente, é difícil manter a visão de que o corpo é a única fonte
do descontentamento, de que as pessoas trans “nascem assim” ("born this
way") . No entanto, a questão de como surge o descontentamento continua a
ser inquietante. Salamon, por exemplo, seguindo Schilder, propõe uma imagem
corporal que se desenvolve ao longo do tempo, por meio da memória, e que não é
incomum que o esquema corporal se desalinhe com o corpo como objeto visual,
digamos. No entanto, é difícil ver como uma imagem corporal feminina poderia
surgir no envolvimento ambiental com o mundo, quando mulheres trans como
"meninos" não têm oportunidades de desenvolver tal imagem. Com
certeza, Salamon também enfatiza a importância do investimento afetivo em seu
corpo - e não precisa haver uma amarração tão estreita entre o sentido interno
da experiência e o envolvimento externo. No entanto, ainda não está claro o que
são esses investimentos afetivos e como eles podem surgir. De uma perspectiva
trans, a questão do "por que" pode parecer particularmente
misteriosa: se alguém foi condicionado para ser de uma maneira, por que a
experiência interna é de outra maneira? Embora possamos admitir que os
investimentos contrários se encontram culturalmente saturados, sua origem
permanece mistificada.
A principal preocupação que
tenho com todo este modelo diz respeito à sua inadequação descritiva. Em
primeiro lugar, esse modelo concentra-se exclusivamente na experiência da
corporificação: muitos homens e mulheres trans que se identificam como binários
não passam por nenhuma mudança corporal. Para eles, uma mudança na autoapresentação
de gênero em público pode ser suficiente. Uma centralização do corpo exigiria
traçar uma linha teórica nítida entre as pessoas trans que alteram seus corpos
e aquelas que não o fazem. Isso é evidente nas obras de Prosser e Rubin. Nelas
vemos um contraste entre pessoas “transexuais” e “transgêneros”. Esse contraste
está particularmente em jogo na teoria de Prosser. Como seu trabalho visa as
primeiras teorias de gênero de Butler, ele quer se distanciar de uma ênfase no
"superficial", como roupas e a manifestação visual do corpo, sendo
que ele vê esta última como central para a concepção de Butler de investimento
psíquico no corpo. Em contraste, Prosser quer falar de
"profundidade". Para ele, isso significa focar na experiência interna
de primeira pessoa do encontrar-se "corporificado" - uma experiência
para ele que tem pouco a ver com a apresentação do gênero e pouco a ver com a
representação visual do corpo.
Este compromisso com a
diferença teórica acentuada é altamente questionável, visto que ambos os dois "tipos"
de pessoas trans se identificam fortemente como homens ou mulheres e assim
"vivem suas vidas". Na verdade, a fronteira entre essas duas formas
de experiência trans é altamente permeável, com questões sobre mudanças
corporais que confrontam as pessoas trans de uma forma profundamente pessoal e
idiossincrática. Além disso, tal descrição parece apagar o papel que a
expressão de gênero pode desempenhar na emergência da identidade trans. Antes
da transição, pode-se realizar uma expressão de gênero - que no momento é
socialmente constituída como nada além de uma fantasia - e, ainda assim,
experimentar uma sensação de autorreconhecimento. O modelo de incongruência não
acomoda bem esse fenômeno.
O desenvolvimento de uma
explicação que dê o devido peso à expressão de gênero pode exigir um profundo
repensar do contraste sujeito/objeto assumido pelo modelo de incongruência. A
expressão de gênero é uma aparência socialmente constituída para os outros. E
isso sugere que uma consciência de si mesmo como uma apresentação de gênero é
mais como uma consciência de si mesmo como um objeto para os outros (terceiro
nível de Sartre). Se for assim, entretanto, não faria sentido imaginar uma
incongruência entre as perspectivas da primeira e da terceira pessoa (ou o
primeiro e o segundo níveis). Em vez disso, pareceria exigir duas consciências
conflitantes de si mesmo como um objeto ou objeto potencial para os outros -
uma invalidação ou "desrealização" e uma validação ou
"realização".
Uma segunda inadequação
descritiva dessas descrições é a aparente abstração da violência e opressão das
pessoas trans e nossa resistência a ela. Pode haver uma fenomenologia da
opressão e resistência trans? Como ela poderia ser? O descontentamento
teorizado no modelo do “corpo errado” está totalmente desconectado dessas
questões. Mas talvez haja uma conexão profunda entre a fenomenologia da
opressão/resistência e a fenomenologia do descontentamento trans que motiva a
transição de gênero.
María Lugones postula a
existência de mundos múltiplos em relações de contestação, opressão e
resistência. Com base nessa ideia, propus que as pessoas trans podem ser
construídas como um gênero em um mundo (dominante) e como outro gênero em um
mundo resistente. Para Lugones, isso permite a possibilidade de uma consciência
de si mesmo como múltiplo - que é, a experiência de si como uma pessoa em um mundo e outra pessoa
em outro. Como a fenomenologia do descontentamento trans pode aprender com
isso? Por exemplo, enquanto está no processo de reconstrução da autoidentidade,
uma pessoa trans pode experimentar o conflito de “duelos de concepções
narrativas” - cada uma invalidando ou explicando a outra. Isso pode produzir
uma autoconcepção liminar ou dupla. Mais profundamente, como podemos formular
uma fenomenologia da liminaridade que leva em conta a experiência trans de
“realização” e “desrealização” simultâneas em relação às nossas aparências aos
outros? Aqui, as teorias de Lugones e a fenomenologia feminista latina de forma
mais geral podem se mostrar especialmente instrutivas na teorização de uma
fenomenologia trans. E a expectativa, claro, é que a fenomenologia trans também
seja capaz de dar algumas novas iluminações em troca.
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