IMAGINÁRIO DECOLONIAL - TEXTO DE EDUARDO MENDIETA (TRADUÇÃO)
O trabalho clássico considerado como a primeira articulação da noção filosófica de “imaginário decolonial” é o livro de Emma Pérez de 1999, chamado "The Decolonial Imaginary: Writing Chicanas into History" (O Imaginário Decolonial: escritas chicanas na História). Embora Pérez seja uma historiadora e seu texto seja uma intervenção pontual na prática da escrita historiográfica, ele não deixa de ser um texto muito influenciado pela filosofia em geral e, em particular, pela obra do filósofo da história Hayden White e do filósofo francês Michel Foucault. Na verdade, um dos objetivos de Pérez é desenterrar, resgatar, restaurar e reativar os conhecimentos "subjugados" dos cidadãos estadunidenses de origem mexicana, chamados de “chicanos”, especialmente em relação ao conhecimento das mulheres chicanas lésbicas. O que também torna o livro de Pérez um texto-chave é sua distintiva abordagem interseccional. Isso fica evidente na forma como o livro está dividido em três seções metodológicas: “Archaeology: Colonialist Historiography, Writing the Nation into History” (“Arqueologia: historiografia colonialista, a escrita da nação na história”); “From Archaeology to Genealogy: Discursive Events and Their Case Studies” (“Da Arqueologia à Genealogia: Eventos Discursivos e Seus Estudos de Caso”); e “Genealogy: History’s Imprints upon the Colonial Body" ("Genealogia: impressões da história sobre o corpo colonial"). Assim, Pérez traça um plano de pesquisa interseccional cavando e peneirando os sedimentos de um imaginário colonial e colonizador, percorrendo uma genealogia que coloca em primeiro plano as identidades diaspóricas e pós-revolucionárias mexicanas para chegar ao que ela chama de “(re)visão feminista do terceiro espaço”.
Pérez define o imaginário decolonial da seguinte forma:
“Acredito que o lapso de tempo
entre o colonial e o pós-colonial pode ser conceituado como o imaginário
decolonial. Bhabha denomina a lacuna intersticial entre o moderno e o
pós-moderno, o colonial e o pós-colonial, como um lapso de tempo. É
precisamente aqui que a história chicana se encontra hoje, em um lapso de tempo
entre o colonial e o pós-colonial. Se estamos dividindo a história nessas
categorias - relações coloniais, relações pós-coloniais e assim por diante -,
gostaria de propor um imaginário decolonial como um espaço de ruptura, a
alternativa ao que está escrito na história. Eu acho que o imaginário
decolonial é aquele lapso de tempo entre o colonial e o pós-colonial, o espaço
intersticial no qual as políticas diferenciais e os dilemas sociais são
transacionados.”
Esta leitura fornece uma transcrição disruptiva, ou
transposição, da própria ruptura psicanalítica lacaniana/fanoniana de Homi
Bhabha da díade moderno/pós-moderno, colonial/pós-colonial, para a fronteira
espaço-temporal dos Estados Unidos. Pérez reorienta nosso locus de
atenção e nosso locus de enunciação da Europa e suas colônias aos
Estados Unidos e suas próprias sombras coloniais/imperialistas. Pérez, no
entanto, também concebe o decolonial como um “lapso de tempo”, como a prática
de perturbar o relógio mundial do imperialismo. Se entendermos o colonialismo
como uma prática de colonização do tempo, então, na articulação de Pérez, o
imaginário decolonial visa romper e estilhaçar temporalidades coloniais e
colonizadoras tal como se manifestam na historiografia. Outro ponto de
referência para a cunhagem de Pérez da noção de “imaginário colonial” é o pensamento do
psicanalista Jacques Lacan. Ela escreve: “No sentido lacaniano, o imaginário
está ligado ao estágio do espelho, no qual uma criança identifica o seu próprio
'eu' em um espelho, uma imagem é refletida de volta e o sujeito se torna
objeto. Para meus propósitos, o imaginário é a identidade do espelho onde a
colonialidade ofusca a imagem no espelho”. Destarte, o imaginário nessa leitura
lacaniana é um espelho que distorce a imagem, um espaço emoldurado de alienação
e desidentificação, mas ele também é, ao mesmo tempo, o espelho que projeta uma
imagem impossível e irreal de quem não somos, mas somos obrigados a ser. Na
articulação generativa de Pérez do imaginário decolonial, então, temos o
delineamento do que ela denomina em outro lugar de "projeto
decolonial" e "ferramenta decolonial".
No entanto, eu acredito que existem outro trabalho
clássico, embora negligenciado e menos conhecido, relevante para a elaboração e
execução da noção de imaginário decolonial. Trata-se do trabalho de Guillermo
Gómez-Peña, Enrique Chagoya e Felicia Rice, um trabalho cativante e bem escrito
chamado "Codex Espangliensis", um “códice” sem igual que foi
iniciado em 1992, concluído em 1998 e publicado em 2000. Gómez-Peña, Chagoya e
Rice desvelam o imaginário decolonial não apenas como um projeto, mas como a
projeção real de uma imagem ou imagens que podem começar a evocar um sujeito
decolonial. Ou seja, podemos pensar o imaginário decolonial como um esboço, um
rascunho ou uma imagem que pode interpelar não apenas o pós-colonial, mas, o
mais importante, os agentes descolonizadores. Como a maioria dos códices
astecas clássicos do século XVI, o livro foi projetado para ser desdobrado. Ele
se desdobra em duas partes: a da esquerda se abre para ser lida da esquerda
para a direita; a dobra à direita se desdobra para ser lida da direita para a
esquerda. Essa dobra direita é composta por textos, imagens, desenhos e
recortes que partem do arquivo visual do passado pré-colombiano até nosso
repertório visual mais recente. O texto é de Gómez-Peña, as imagens e colagens
são de Chagoya e a formatação do códice é de Rice. Foi deliberadamente composto
e desenhado como um ato de resistência ao fervor anti-mexicano do início dos
anos 1990, mas também como uma intervenção decolonial com a finalidade de
questionar as celebrações quincentenárias da chamada descoberta do Novo Mundo.
Quero argumentar que junto com o texto inaugural de Pérez, onde o conceito de
imaginário decolonial é explicitamente articulado, devemos considerar o Codex
Espangliensis como um exemplo de como esse imaginário pode começar a se
desvelar. Embora os termos imaginário e decolonial não sejam evocados
explicitamente no texto, é evidente pelas inúmeras elaborações e textos de
Gómez-Peña que seu trabalho é decolonial e decolonizante e dirige
explicitamente nossa atenção para a interação entre imagem, imaginação e
imaginário. Há, ainda, o texto paradigmático de Gloria Anzaldúa chamado "La
Frontera", que representa linguística e poeticamente o que o Codex
Espangliensis executa visualmente. Ela traça os contornos de um “imaginário
decolonial” por meio de suas cartografias corporais de "La Frontera".
Embora incipiente em sua poética de resistência, nela também encontramos um
imaginário radical.
Se eu tivesse espaço, encerraria esta sinopse
voltando-me para o ensaio placentário de María Lugones, "Rumo a um
feminismo decolonial", que retoma o trabalho de muitas outras
feministas latinas e chicanas a fim de elaborar o que ela chama de
"feminismo decolonial". Aqui, Lugones confronta crítica e
generativamente a obra de Aníbal Quijano, que cunhou o que se tornou um ponto
arquimediano para o filosofar decolonial e sobre a colonialidade do poder. Ela
também confronta criticamente o trabalho de Walter Mignolo, que cunhou o termo “diferença
colonial”. Apresento esse ensaio como um convite para uma leitura promissora.
Também seria importante catalogar aqueles imaginários contra os quais, através
dos quais e com os quais o imaginário decolonial se depara, confronta, luta,
labuta, imita e até mesmo escarnece. E assim temos diversos imaginários: o
pré-colombiano, o colonial, o pós-colonial, o imperial, o pós-imperial, o moderno,
o pós-moderno, o pré-moderno, o medieval, o antigo, o orientalista, o
ocidentalista, o civilizacional, o religioso, o protestante, o barroco, o
racial, o de gênero, o sexual, o espaço-temporal, o geográfico , o
cronotopológico, o futurológico, o revolucionário e assim por diante. Desse
modo, o “imaginário decolonial” é um imaginário radical, para usar aquela feliz
expressão de Cornelius Castoriadis. Ele visa trabalhar o passado para nos
despertar de nossa amnésia colonial e nos engajar em uma ortopedia de nossa
afasia imperial a fim de abrir caminhos para um futuro comum. Um “imaginário
decolonial” intervém em como pensamos, damos ou tiramos o tempo, posto que o
tempo pode ser tomado como o horizonte da redenção, da memória, da
transformação e, em última instância, da libertação.
De acordo com as dimensões e aspectos contestatórios,
disruptivos, subversivos, desidentificadores do "imaginário
decolonial", gostaria de oferecer uma tipologia de formas de
mapear/localizar/rastrear o imaginário e como essas dimensões e aspectos são
contestados, confrontados, deslocados e refratados por pensadores que Nelson
Maldonado Torres chamou de autores da “virada decolonial”. A seguir,
mencionarei pensadores que não são propriamente pessoas que discutiram o
imaginário decolonial em si, mas que contribuíram de algum modo para pensar a
respeito dele. A forma mais elementar e imediata de oferecer uma cartografia do
imaginário decolonial é através da análise do que Michèle LeDoeuff chama de “l’imagineire
philosophique” (o imaginário filosófico). Com isso, LeDoeuff quer dizer que
mesmo a filosofia mais árida e racionalista é povoada por um "mundo
pictórico inteiro" que inclui "pedras, relógios, cavalos, burros e
até um leão". A filosofia não é apenas a encenação do logos, mas
também uma panóplia de seres imaginários, entre eles a figura da mulher e do
bárbaro. Do lado de um “imaginário filosófico decolonial”, nós encontramos
Enrique Dussel, María Lugones e Walter Mignolo. Dussel, em particular, oferece
cartografias dos imaginários ocidental e eurocêntrico que legitimam o
colonialismo. Entre seus insights mais importantes está sua crítica do cogito
cartesiano (eu penso) como requerendo o ego conquiro (eu conquisto) de
Hernán Cortés como sua condição material de possibilidade. “Eu conquisto” é,
portanto, o fundamento prático do “Eu penso”. O projeto filosófico do
“Iluminismo” requer que algumas culturas e povos sejam relegados a um passado
marcado pela culpa e pela imaturidade (verschuldeten Unmündigkeit).
O que Dussel realizou pela filosofia moderna e contemporânea, Mignolo o fez pela Renascença
em sua obra, "The Darke Side of the Renaissance: Literacy,
Territoriality and Colonization" ("O Lado Oculto da Renascença: Alfabetização,
Territorialidade e Colonização"), na qual ele diagnostica como as formas
ameríndias de escrita, registro da memória histórica e configuração do espaço
social foram colonizadas pelas formas renascentistas de alfabetizar, fazer
história e configurar o espaço. No livro
"The Idea of Latin America" (A Ideia da América Latina),
Mignolo mapeia as maneiras pelas quais a América “Latina” foi inventada a fim
de fornecer álibis geopolíticos para projetos coloniais e imperiais
eurocêntricos e anglocêntricos. Um argumento-chave desse livro é que a
colonialidade é constitutiva da modernidade. Em outras palavras, o imaginário
anglo-eurocêntrico é baseado em um projeto colonial/modernizador/capitalista.
Lugones aprofunda essa contribuição aplicando-a na análise das cartografias do
imaginário filosófico ao se engajar no conceito de colonialidade do poder por meio
da produção material da ordem sexo/gênero e do ponto de vista colonizador. Se,
para argumentar junto com Dussel e Mignolo, a colonialidade é constitutiva
tanto do Iluminismo quanto da Modernidade, para Lugones a invenção/produção da
ordem sexo/ gênero é fundamental tanto para o Iluminismo quanto para a
Modernidade. A colonialidade do poder, isto é, a colonialidade da Modernidade/imperialismo,
consiste sempre de antemão na colonialidade de gênero. Poderíamos, portanto,
reformular a máxima filosófica de Dussel sobre o "ego conquiro"
por meio do insight principal de Lugones: o "ego sexum"
é co-originário do "ego conquiro" cartesiano.
No que diz respeito aos mapeamentos sociopsicológicos
do imaginário, um ponto de referência óbvio é Jacques Lacan, cujo Écrits ("Escritos")
continua sendo o ponto fundamental de referência para qualquer pensamento sobre
o imaginário. Charles Taylor, Homi Bhabha e Kalpana Seshadri-Crooks também
contribuíram para esses importantes mapeamentos. A obra "Desiring
Whiteness: A Lacanian Analysis of Race"(O Anseio pela Branquitude: uma
análise lacaniana da raça") escrita por Kalpana Seshadri-Crooks é
particularmente significativa porque oferece uma das análises lacanianas mais
profundas e abrangentes sobre raça e como ela configura nossos imaginários
sociais.
Paralelamente aos mapeamentos decoloniais e
sociopsicológicos a respeito do imaginário há o que eu denominaria como “imaginários
cronotopológicos” associados a figuras como Henri Lefebvre, David Harvey, Derek
Gregory e Stuart Elden. A análise da espacialidade de Lefebvre distingue entre
práticas espaciais, representações do espaço e espaços representacionais. Ele
vincula essa diferenciação tripartida à diferenciação fenomenológica entre o
percebido, o concebido e o vivido, de modo que “a tríade
percebido-concebido-vivido, juntamente com o que é denotado e conotado por
esses três termos, contribui para a produção do espaço por meio de interações
que metamorfoseiam os intuitus originais em um quase-sistema. ” Em
outras palavras, práticas espaciais, formas de representar o espaço e as formas
como habitamos os espaços representacionais, incluindo as geografias
imaginárias do imaginário colonial (como as, por exemplo, de Joseph Conrad e
William Faulkner e as catalogadas por Edward Said no livro Orientalismo),
transformam hábitos em matrizes conceituais. O “imaginário cronotopológico
descolonial” descreve o pensamento de autores como Aníbal Quijano, Ramón
Grosfoguel, Nelson Maldonado-Torres, Santiago Castro-Gómez, Walter Mignolo e
Fernando Coronil. O que é idiossincrático em relação às suas cartografias do
imaginário colonial/imperialista/capitalista é que tais cartografias vinculam
simultaneamente a invenção dos continentes, que são as geografias da barbárie e
do retrocesso, com o que Johannes Fabian chamou de "a negação da
coevidade", isto é, a processo de segregação temporal de povos e culturas
por meio da criação de uma matriz epistêmica ou arcabouço que condiciona a
inteligibilidade das ciências humanas em geral. Desse modo, esses autores vinculam
os imaginários colonial/imperialista/capitalista ao imaginário epistêmico do
Ocidente que desautoriza as culturas não-ocidentais de reivindicarem a
legitimidade de seus saberes.
O imaginário pode ser retratado como a “fronteira
final” de nossa crítica filosófica, embora não tenha deixado de ser mapeado e
explorado. O imaginário foi abordado por meio de mapeamentos de cartografias
filosóficas, sociopsicológicas e cronotopológicas nos vários aspectos da
divisão colonial/moderna. O “imaginário decolonial” nos prende ao eixo onde
somos mantidos unidos pelas imagens, imaginações e imaginários que nos possuem
e informam as maneiras pelas quais recusamos a identificação com os outros e,
também, possibilitam momentos de desidentificação libertadora. O “imaginário
decolonial” é um imaginário radical precisamente porque traz luz a como todos
somos possuídos por uma colonialidade/modernidade/imaginário que não poderia
ser imaginado sem aqueles que foram colonizados e precisam de modernização e
esclarecimento, e, ao mesmo tempo, como esse mesmo imaginário é o próprio local
de resistência, libertação e solidariedade.
Referência: WEISS, Gail, MURPHY, Ann V.; SALAMON, Gayle. 50 Concepts for a Critical Phenomenology. Evanston: Northwestern University Press, 2020.
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