LEIA TAMBÉM (CLIQUE NA IMAGEM)

DIFERENÇA ONTOLÓGICA E TEOLOGIA PÓS-TEÍSTA - TEXTO DE JOHN D. CAPUTO (TRADUÇÃO)


 

Diferença ontológica. Esta expressão se refere à distinção entre ser (Sein) e entes (Seienden) na obra de Martin Heidegger. Rastrear a origem desta expressão fornece uma visão valiosa sobre o desenvolvimento da obra de Heidegger e, para além de Heidegger, na filosofia continental atual, incluindo a gênese de uma teologia pós-teísta posterior à morte de Deus. Embora a distinção seja central em "Ser e Tempo", a expressão em si não aparece ali, sendo evidentemente reservada para “Tempo e Ser”, a famosa parte que faltava, e que acaba por conduzir a uma formulação mais radical na década de 1940.

Ser e entes são distintos: o ser não é um ente, no entanto, embora distintos, eles não se encontram separados: o ser é sempre ser do ente, e os entes só são entes em seu ser. Ser e ente pertencem um ao outro em uma relação circular. O ser não deve ser pensado como se fosse o Ente Primeiro, como Deus. A Deus, como a todo ente, pertence um modo próprio de ser, em virtude do qual ele se manifesta. O ser não difere dos entes onticamente, como um ente difere de outro ente, mas ontologicamente, como a condição sob a qual os entes se manifestam. Sem o ser, nenhum ente se manifesta; quando os entes se manifestam, não encontramos o ser entre eles.

O ser não é a soma de todos os entes, mas o horizonte ou pano de fundo dentro da qual os entes se encontram, trata-se da “clareira” (Lichtung) na qual a luz irrompe, isto é, a “abertura” na qual os entes são "desvelados" ou "libertos" a fim de que possam se manifestar. Dizemos do ser não que ele “é”, mas sim que o ser "se dá". Pontuar a diferença entre ser e ente acentua a linguagem, que se orienta para os entes e suas relações ônticas. Tudo o que dizemos sobre o ser está sujeito à distorção, da mesma forma que qualquer coisa que os teólogos dizem sobre Deus está sujeito à idolatria. Esta é uma característica estrutural: o ser por si mesmo se retira e temos a tendência de nos preocupar com os entes. Este "ocultamento" ou "esquecimento" (Vergessenheit) da diferença entre o ser e os entes é um ponto ontológico, não psicológico. Embora o ser permaneça fora do conhecimento explícito, ele se encontra implicitamente pressuposto. Pensar a respeito do ser faz com que aquilo que se encontrava implícito seja explicitado, reconhecido e recolocado.

A diferença ontológica é fenomenológica, ou seja, ela tem a ver com a forma como os entes se manifestam e com o sentido ontológico de "verdade" (desvelamento). Para a fenomenologia, "verdade" significa “fazer-ver” (legein) as coisas que se manifestam à luz (phainomena) do horizonte de manifestação aparecerem. A diferença ontológica também é hermenêutica, uma vez que qualquer dada compreensão do ser determina se os entes se manifestam como isto ou aquilo. A diferença ontológica também é transcendental, tanto no sentido aristotélico de que o ser perpassa todas as regiões dos entes, quanto no sentido kantiano, em que a compreensão de ser do Dasein se mostra como a condição de possibilidade de todo fenômeno, isto é, de todo ente possível. Em “Que é Metafísica?” (1929), Heidegger explora os paradoxos aos quais nos convida a sua linha de pensamento. Uma vez que o ser não é um ente, ele não é uma coisa, portanto, pode se dizer que ele é o "nada" (no sentido de que ele não é um ente), e a transcendência do Dasein significa que ele é como que estendido sobre o nada. Este ensaio despertou a ira do filósofo positivista Rudolph Carnap, cujos ataques juntamente com a questão do nazismo, acabaram com a reputação de Heidegger nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha.

Ontologias regionais. A crítica de Carnap à diferença ontológica, no entanto, é equivocada. O positivismo mostrou-se epistemologicamente falido, enquanto a diferença ontológica mostrou-se imensamente fértil. As várias disciplinas, como a física e a história, estão organizadas sob "conceitos básicos", compreensões do ser próprias de cada campo, que são objeto das "ontologias regionais". Os avanços que ocorrem dentro do campo regional sem perturbar a estrutura prevalecente (mudanças ônticas) diferem de mudanças mais radicais nos próprios conceitos básicos (mudanças ontológicas). Essa distinção perpassa todas as disciplinas - está presente na teologia de Lutero, na física de Einstein etc. - e coloca por terra a antiga divisão entre ciências humanas (Geisteswissenschaften) e ciências da natureza (Naturwissenschaften). A teoria de Thomas Kuhn sobre transformações revolucionárias (ontológicas) ocasionadas por “mudanças de paradigma” consistiu em uma confirmação efetiva da análise de Heidegger, trata-se de um dos insights mais importantes proporcionados pela noção de diferença ontológica.

Além das “ontologias regionais”, há a questão do sentido do ser enquanto tal, que é o objeto da “ontologia fundamental”. Essa questão introduz uma terceira questão: aquela que diz respeito aos entes, seu ser e seu "sentido", o qual é entendido como "aquilo-em-relação-a-quê de um projeto", uma função-de-tempo que fixa os parâmetros da projeção do ser dos entes. Por exemplo, a distinção entre tempo e eternidade é em si uma função-de-tempo, cuja condução é tomada, isto é, "projetada" sobre o "agora". A eternidade é conceituada como um agora imutável, e o tempo é concebido como um agora que flui, uma imagem em movimento do agora imutável. "Eternidade" não significa ausência de tempo, ela é, na verdade, o efeito de uma temporalização que ocorre em termos de um agora. Portanto, o "sentido do ser" é o tempo. Trata-se de uma determinação ontológica, não ôntica; é uma resposta transcendental, não transcendente. É uma resposta que explica como a compreensão de ser é formalmente constituída, no entanto, ela não fornece um conteúdo material do sentido do ser, não diz, por exemplo, se o ser é Deus ou o Único.

Duas diferenças ontológicas. Max Müller apresentou um primeiro rascunho de “Tempo e Ser” que distingue duas formas da diferença ontológica: (i) “a diferença 'transcendental' ou ontológica no sentido estrito: a diferença do entes em relação à sua enticidade [Seiendheit] ”; (ii) a  "transcendenticidade" (transcendenzhafte) ou diferença ontológica no sentido mais amplo: a diferença dos entes e de sua enticidade em relação ao ser em si mesmo.” A via seguida pelo pensamento de Heidegger consiste em uma busca por esta terceira questão, a raiz da diferença ontológica, variadamente chamada de "o ser em si mesmo", ou Seyn (com um y), ou "desolcutação do ser". Müller apresentou ainda uma terceira diferença: (iii) "o 'transcendente' ou diferença teológica no sentido estrito: a diferença de Deus em relação aos entes, à enticidade e ao ser." O discurso sobre Deus ocorre inteiramente fora da jurisdição da diferença ontológica em qualquer sentido. Heidegger pode ter dito o mesmo que Husserl quis dizer, que Deus é simplesmente transcendente à experiência fenomenológica, ou o que Lutero (cuja obra Heidegger conhecia bem) quis dizer, que Deus escolheu "as coisas que não são, para aniquilar as que são" (1 Coríntios 1:28). Nunca use a palavra “ser” e “Deus” na mesma frase.

A obra "Ser e Tempo" se limita largamente a trabalhar a questão da diferença entre o ser do Dasein, cujo modo de ser (Wesen) é a “existência” (Existenz), e suas características ônticas (existentiell). Isso causou uma grande confusão. Os franceses presumiram que essa era a distinção ontológica e, após a guerra, Heidegger se tornou o guru do “existencialismo” francês, impressionantemente apesar de sua associação com o nacional-socialismo.

Ontoteologia: Em 1940, a diferença ontológica passou a constituir a própria metafísica que cabe ao pensamento superar. A metafísica reduz o ser a algum tipo de enticidade - eidos, ousia, actus - mas a diferença como tal, “infinitamente diferente do ser”, permanece irrefletida. A “Diferença” é então desassociada da expressão capaz de tomar como objeto de reflexão a própria Di-ferença (Unter-Schied ou Austrag). O termo alemão Austrag, geralmente se refere a uma questão relativa a uma decisão, traduzindo literalmente o grego dia + phorein e o latim dif + ferre, temos os sentidos de “levar a cabo”, “pôr em prática”, o que descreve um círculo ontológico. O ser é levado à cabo ou transportado para os entes (Überkommnis), desocultando (ent-bergend) os entes em seu ser, mesmo quando os entes se apresentam ou "vem ao" ser (Ankunft) à medida em que ocultam o próprio ser. O ser e o ente são distanciados um do outro e um em direção ao outro (auseinander-zueinander-tragen). A metafísica é a questão de decisão do Austrag, ainda que de maneira irrefletida. O pensamento realiza uma subsunção (retorno), e  não uma suprassunção (Aufhebung) como pensava Hegel - trata-se de um retorno em direção a essa Diferença impensada, que "remete" (Geschick, schicken) o ser aos entes, refere-se, destarte, ao "Acontecimento Apropriativo" ou "Evento" (Ereignis) que "dá" o ser (es gibt) aos entes.

A metafísica é onto-teo-lógica. Na ontoteologia, o logos se degenera em razão (ratio/Grund), isto é, em uma base explicativa. O ser proporciona o fundamento comum dos entes (ontologia), enquanto o ente supremo fornece o fundamento causal dos demais entes (teologia). Deus entra no círculo onto-teo-lógico como causa primeira (causa sui). No entanto, como diz Heidegger, não se pode dirigir orações a uma causa primeira, nem se prostrar diante dela em adoração: "a humanidade não pode orar nem se sacrificar", "nem cair de joelhos em reverência, nem cantar louvores e dançar" para uma causa primeira. Sendo assim, "o pensamento ateu que se sente impelido a abandonar o Deus da filosofia, o Deus como causa suprema, está talvez mais próximo do Deus verdadeiramente divino (dem göttlichen Gott)”. O Deus verdadeiramente divino não é o Deus crucificado (Lutero), mas o Deus dos poetas, as divindades gregas de Hölderlin.

O Fundamento do Ser em Paul Tillich. A compreensão heideggeriana de que o ateísmo sem deus está mais próximo do verdadeiro Deus divino serve como um perfeito prefácio à teologia de Paul Tillich, para quem a noção de Ente Supremo é um "conceito um tanto blasfemo e mitológico" ao qual "o ateísmo é a resposta religiosa e teológica adequada". Para Tillich, Deus não é um ente (ôntico), mas o próprio Ser, o inesgotável "fundamento do Ser” (ontologia) de onde os entes emergem e por meio do qual perecem. Reduzir o Ser em si mesmo a um mero ente é no que consiste a blasfêmia; a mitologia, por sua vez, consiste em pensar que Deus é uma espécie de super-pessoa de natureza inescrutável. O ateísmo que nega a noção de causa primeira (causa sui) não é o fim da teologia, mas o seu princípio: - o princípio da concepção panenteísta pós-teísta de um Deus-presente-em-tudo e de tudo-presente-em-Deus (trata-se da circularidade entre ser e entes descrita por Heidegger). Para Tillich, a diferença ontológica é (ou absorve) a diferença teológica, porque Deus é o próprio Ser, apontando o caminho pelo qual se pode escapar da idolatria. Para o teólogo Karl Barth, que junto com Tillich são os principais nomes da teologia do século XX, a diferença ontológica é a idolatria, para a qual a teologia consiste na sustentação de um "Não" (Nein)! Deus não está contaminado pelo Ser de tal modo que a diferença ontológica é abolida pela diferença teológica.

Para Tillich, a religião é uma questão de preocupação última (incondicional). Deus é o fundamento que nos sustenta, o Ser que supera o não-ser e que nos dá a coragem de ser. Essa é a nossa fé - e nossa ontologia. A religião, neste sentido ontológico, pode ser encontrada onde quer que os seres humanos se envolvam incondicionalmente ("autenticamente") na arte ou na ciência, na política ou na vida pessoal - e difere da religião no sentido comum das denominações confessionais (ônticas e regionais), recolocando, destarte, a distinção “regional” usual entre o religioso e o secular. A religião não se trata de uma questão de encontrar um ente ôntico desconhecido e estranho, mas de superar nosso distanciamento ontológico de Deus, Aquele “em quem vivemos, e nos movemos, e existimos” (Atos 17:28).

Derrida e a Diferença (Différance). Se a neo-ortodoxia de Barth fez face ao pensamento retrógado e Tillich articulou uma religião para o mundo pós-moderno, coube a Derrida o quinhão de erradicar a metafísica idealista alemã presente de forma residual no pensamento de Tillich. Para Derrida, a diferença linguística é a diferença mais formal, constituída pelo mero “espaço diferencial” entre significantes. A diferença ontológica é uma diferença entre outras, tais como a dialética, a transcendental, a sexual etc. Trata-se de um “significado”, um efeito produzido por um uso de significantes governado por regras. A diferença significa não um efeito do sistema linguístico, mas sua condição constituinte, isto é, transcendental. Como o “objeto-pequeno-a” derridiano presente na "différance" só pode ser visto e não ouvido, explorando tanto o espaçamento espacial-visível (diferente) quanto o espaçamento temporal-audível (diferimento), a "différance" precede a ambos, trata-se de uma espécie de arqui-diferença (arqui-escrita). O que temos aqui não é misticismo, mas um anti-essencialismo. A diferença não é o Deus verdadeiramente divino. “Ser” e “Deus” são efeitos textuais constituídos, sempre essências recontextualizáveis ​​e não-estáveis, mas sempre sujeitas às pressões da sedimentação. O processo de dessedimentação é chamado de "desconstrução". Em Derrida, a "destruição" de Heidegger da "história da ontologia" com base na diferença ontológica torna-se a "desconstrução" da "metafísica da presença", com base na "différance".

A implicação teológica disso não é a chamada teologia negativa (Neoplatonismo Cristão), mas sim um messianismo (quase-judeu) mas sem Messias, uma expectativa estrutural (“ontológica”), qualquer que seja o contexto histórico (“ôntico”). O efeito da "différance", na medida em que exerce pressão contra qualquer presença supostamente estável, consiste em manter o futuro em aberto, pressionando-o até os limites do possível, até a possibilidade do impossível. Nos primeiros termos heideggerianos, a desconstrução rastreia a pressão disruptiva exercida pelo ontológico sobre o ôntico. O oposto da desconstrução é deter essa inquietação (que é verdadeiramente destrutiva). O Messias significa a vinda do que não podemos ver chegando, o “evento” (événement, l’à venir) que quebranta o horizonte de expectativa. “Deus” é um dos melhores nomes para a possibilidade do próprio impossível, que exige uma fé (foi) em um evento irredutível a qualquer crença doutrinária (croyance). Isso constitui uma “religião sem religião (ôntica)” subjacente (ontológica), encontrada onde quer que a possibilidade penetrante do impossível possa surgir.

Teologia pós-teísta. Como a de Tillich, a religião de Derrida não é uma religião onticorregional, mas uma categoria ontológica subjacente, preocupada com um "incondicional" que pode ser encontrado em qualquer lugar. Qualquer ordem (ôntica) dada é interiormente e estruturalmente exposta à perturbação ontológica, tornada inquieta pela expectativa e memória de algo incondicional. O ôntico "coração inquieto" (cor inquietum) de Agostinho é constituído em sua inquietude por um desejo ontológico. Toda inquietação é um distúrbio ontico-ontológico. Mas, ao contrário de Tillich, onde o incondicional é uma base ontológica, que anima os entes em seu Ser, Derrida dá um segundo e decisivo passo. O fundamento torna-se um fundamento infundado, não mais ontológico, mas “hauntológico” (“fantasmagórico), pertencente não à ordem do ser, mas da vocação ou da promessa. A diferença ontológica se torna a diferença hauntológica. O incondicional não é um "Geist" mas um fantasma, não um Espírito mas um espectro, a questão da in/estabilidade da "différance", da memória e da promessa acomodado num legado complexo, sem suporte ontológico. Somos perturbados por uma diferença, um visitante inquietante (unheimlich), um totalmente-outro ("tout autre") inesperado. Este “incondicional sem soberania” não é um ente nem o Ser em si, não é finito nem infinito. Ele não existe; ele insiste, ele clama pela existência. A promessa é uma promessa pura, exposta em todo o seu poder impotente, sem um fundamento panenteísta, sem onipotência teísta para protegê-la.

Essa teologia, vinda após a morte de Deus, promana da diferença ontológica em duas etapas: (1) a ontologização do ôntico (Tillich): Deus como o Primeiro Ser cede ao fundamento ontológico do ente, desmitologizando o Ente Supremo; a religião como uma categoria onticorregional cede a ser apreendida por algo de profundidade incondicional; (2) a desontologização do ontológico (Derrida): trata-se da espectralização do fundamento ontológico do ser a favor da vocação incondicional sem autoridade soberana. A teologia radical é a teologia "fraca" que emerge após a morte de um super-ente teísta onipotente e de um fundamento profundo do ser, uma teologia não do Todo-Poderoso, mas do poder-ser, uma teologia do Evento, do talvez “perigoso” (Nietzsche). “Fraco” não significa anêmico, mas o enfraquecimento do ser pelo poder-ser, não se trata de uma indecisão covarde, mas de uma força messiânica fraca, como a da tribo de Benjamin, onde o Messias não pode mudar o passado, mas sim o significado do passado. A teologia pós-teísta é uma espectralização da diferença ontológica.

______________________

Referência: WEISS, Gail, MURPHY, Ann V.; SALAMON, Gayle. 50 Concepts for a Critical Phenomenology. Evanston: Northwestern University Press, 2020.


Comentários

FAÇA UMA DOAÇÃO

Se você gostou dos textos, considere fazer uma doação de qualquer valor em agradecimento pelo material do blog. Você pode fazer isso via PIX!

Chave PIX: 34988210137 (celular)

Bruno dos Santos Queiroz

VEJA TAMBÉM

TEXTOS BÍBLICOS ABSURDOS

O MITO DA LIBERDADE - SKINNER (RESUMO)

AMOR LÍQUIDO - ZYGMUNT BAUMAN (RESUMO)

CULTURA E SOCIEDADE - ANTHONY GIDDENS

O SER E O NADA (RESUMO)

AMOR ERÓTICO EM CANTARES DE SALOMÃO

SER E TEMPO (RESUMO)

SOCIOLOGIA DO CORPO - ANTHONY GIDDENS (RESUMO)

20 MITOS DA FILOSOFIA