TEOLOGIA E LIBERDADE: AS DIFERENTES POSIÇÕES CRISTÃS SOBRE O LIVRE-ARBÍTRIO

 

Resumo 

A questão do dilema entre o livre-arbítrio e o determinismo tem preocupado não só os filósofos, mas também teólogos das mais diversas abordagens. O objetivo deste artigo é apresentar de forma descritiva as diferentes posições cristãs em relação ao livre-arbítrio. Para isso, recorreu-se à uma revisão bibliográfica narrativa do material pertinente ao assunto. Percebeu-se que a teologia patrística defendeu o livre-arbítrio humano a fim de salvaguardar a responsabilidade moral do ser humano. Com Agostinho, no entanto, colocou-se o problema da predestinação e da inaptidão humana em praticar o bem espiritual. Influenciados pela visão agostiniana, os reformadores Martinho Lutero e João Calvino rejeitaram o livre-arbítrio do homem no estado atual. Tal posição, no entanto, não encontrou aceitação total entre os protestantes, sendo rejeitada por arminianos, teístas abertos e filósofos de influência molinista. A Igreja Católica Romana, no entanto, manteve a compreensão patrística de livre-arbítrio, reafirmando sua importância a fim de responsabilizar o humano por seus atos. Conclui-se, pois, que não há consenso absoluto entre os teólogos cristãos sobre a natureza do livre-arbítrio humano, de modo que há entre os pensadores do Cristianismo, diferentes compreensões sobre a liberdade do homem. Isso revela a complexidade dessa discussão, especialmente por sua articulação com outros problemas teológicos, como o problema da presciência divina, da providência de Deus, o problema do mal e a questão da mecânica da salvação. 

Palavras chaves: Livre-arbítrio; Teologia; Cristianismo. 

 

Abstract 

The question of the controversy about free will and determinism has concerned not only philosophers, but also theologians of the most diverse approaches. The purpose of this article is to present descriptively the different Christian positions in relation to free will. For this, a narrative bibliographic review of the material relevant to the subject was used. It was realized that patristic theology defended human free will in order to safeguard the moral responsibility of the human being. With Augustine, however, the problem of predestination and human inability to practice the spiritual good works was posed. Influenced by the Augustinian view, the reformers Martin Luther and John Calvin rejected the free will of man in the current state. Such a position, however, did not find full acceptance among Protestants, being rejected by Arminians, open theists and philosophers of Molinist influence. The Roman Catholic Church, however, maintained a patristic understanding of free will, reaffirming its importance in order to hold human beings accountable for their actions. It follows, therefore, that there is no absolute consensus among Christian theologians on the nature of human free will, so that there are different understandings about the freedom of man among Christian thinkers. This reveals the complexity of this discussion, especially because of its articulation with other theological problems, such as the problem of divine foreknowledge, God's providence, the problem of evil and the question of the mechanics of salvation. 

Key wordsFree willTheologyChristianity. 

 

I. INTRODUÇÃO 


Ao longo da história do pensamento cristão, muitas foram as formas de tentar lidar com o problema da liberdade humana em relação à soberania de Deus. A questão consistiu em explicar como Deus poderia ser soberano e onisciente e ao mesmo tempo o ser humano possuir liberdade de fazer escolhas ou de ter agido diferente do que agiu. O paradoxo entre liberdade humana e soberania divina preocupou diversos teólogos e filósofos cristãos, dando origem a diferentes teorias sobre o assunto. 

Além disso, a discussão sobre o livre-arbítrio também se deu articulada com a doutrina da salvação, consistindo, assim, num debate soteriológico. O problema que se apresentava era o de como a salvação poderia ser uma ação graciosa do divino e ao mesmo tempo ser resultado de uma escolha humana. Se a salvação era determinada exclusivamente por um ato soberano de Deus ou se o homem era livre para rejeitar ou escolher pela salvação, também foi objeto de preocupação nos debates cristãos sobre a liberdade humana. 

O objetivo deste artigo é considerar as principais compreensões na teologia cristã a respeito do livre-arbítrio, a partir de uma apresentação descritiva dessas compreensões. Considerando a complexidade desse assunto, este artigo não pretende ser exaustivo. No entanto, pretendo apresentar de maneira geral o debate cristão sobre a liberdade humana, descrevendo as diferentes teorias que foram desenvolvidas para lidar com esse problema. Buscarei apresentar essas teorias partindo das concepções presentes na patrística e depois abordando algumas das propostas principais da teologia cristã a respeito do livre-arbítrio. 

 

II. MÉTODO 


A fim de realizar este artigo, procedi conforme a metodologia de pesquisa conhecida como revisão bibliográfica narrativa. De acordo com esse método, é necessário delimitar um tema de investigação e, por sua vez, buscar por material bibliográfico pertinente ao assunto. Nesse sentido, foi realizada uma pesquisa em bancos de dados digitais e em livros a fim de encontrar dados relevantes para a temática a ser desenvolvida. Esse tipo de revisão permite que a pesquisa compreenda o que já foi produzido até então em relação ao objeto de pesquisa adotado (ROTHER, 2007). 

Diferente de uma revisão sistemática da bibliografia, a revisão narrativa permite uma maior liberdade, não necessitando ser exaustiva, rigorosa e fechada. Assim, a revisão bibliográfica narrativa possibilita a realização de uma pesquisa mais ampla, sem necessidade de se delimitar princípios rígidos ou critérios fechados de pesquisa. Além disso, esse tipo de revisão permite que se realize uma análise crítica do material encontrado, de modo que se pode ir além de uma mera apresentação dos dados. As partes que constituem esse tipo de pesquisa são a Introdução, o Desenvolvimento (que é subdividido de acordo com a temática abordada), Considerações Finais e Referências Bibliográficas (ROTHER, 2007). 

 

III. O PROBLEMA DO LIVRE-ARBÍTRIO NA PATRÍSTICA  


A Patrística envolve o período que vai do segundo século ao século oitavo da era comum, sendo o início da produção do que podemos considerar como uma literatura teológica cristã. Esse período se inicia com a morte dos apóstolos, significando um momento de elaboração daquilo que se encontra nas chamadas escrituras gregas cristãs ou Novo Testamento. O material produzido nesse período é a expressão de fé dos primeiros santos Pais da Igreja, que lançaram as bases para a construção do pensamento cristão (SILVA, 1988). 

Comecemos pelo pensamento de São Justino Mártir (100 – 165d.C.) sobre a liberdade humana.  Em sua Primeira Apologia, no parágrafo 43, ele escreve:  


"Do que dissemos anteriormente, ninguém deve tirar a conclusão de que afirmamos que tudo o que acontece, acontece por necessidade do destino, pelo fato de que dizemos que os acontecimentos foram conhecidos de antemão. Por isso, resolveremos também essa dificuldade. Nós aprendemos dos profetas e afirmamos que esta é a verdade: os castigos e tormentos, assim como as boas recompensas, são dadas a cada um conforme as suas obras. Se não fosse assim, mas tudo acontecesse por destino, não haveria absolutamente livre-arbítrio. Com efeito, se já está determinado que um seja bom e outro mau, nem aquele merece elogio, nem este, vitupério. Se o gênero humano não tem poder de fugir, por livre determinação, do que é vergonhoso e escolher o belo, ele não é irresponsável de nenhuma ação que faça. Mas que o homem é virtuoso e peca por livre escolha, podemos demonstrar pelo seguinte argumento: vemos que o mesmo sujeito passa de um contrário a outro. Ora, se estivesse determinado ser mau ou bom, não seria capaz de coisas contrárias, nem mudaria com tanta frequência." (JUSTINO DE ROMA, 2014, p.39) 


O que Justino pontua é que embora Deus possa prever o futuro, como no caso das profecias a respeito da vinda do Messias, disso não se deve concluir que exista uma espécie de destino. Assim, a liberdade humana não é anulada pela presciência de Deus.  Além do mais, argumenta Justino, se não houvesse livre escolha não seria possível atribuir valor moral às ações humanas. Dado, no entanto, que existe o pecado, conclui-se daí que o homem é livre.  O único “destino” do qual se pode falar é o de que aqueles que escolherem o bem estão destinados a serem bem recompensados enquanto aqueles que escolherem o mal receberão o devido castigo de seus atos. Desse modo, diferente dos seres inanimados e dos animais, o homem foi criado com a capacidade de livre determinação. 

Tertuliano (110 – 165 d.C.), por sua vez, escreveu no capítulo 2 de sua Exortação à castidade:  


"It is not the part of good and solid faith to refer all things to the will of God in such a manner as thatand that each individual should so flatter himself by saying that nothing is done without His permission, as to make us fail to understand that there is a something in our own powerElse every sin will be excused if we persist in contending that nothing is done by us without the will of Godand that definition will go to the destruction of (ourwhole discipline,(nay), even of God Himselfif either He produce by His own will things which He wills notor else (ifthere is nothing which God wills not." (TERTULIANO,2020) 


Desse modo, de acordo com Tertuliano não se pode usar a vontade de Deus como desculpa para o pecado. Isso significa que o homem é livre para escolher pecar ou não pecar, se não o fosse, não se poderia falar em culpa. No entanto, na medida em que somos culpados pelos nossos atos, não podemos lançar a culpa de nossos erros em Deus. Sendo assim, nem tudo pode ser submetido à vontade de Deus, já que algumas coisas são efetivadas pelo poder que há na vontade humana. Escolher o que é mau é ir contra a vontade de Deus e isso o homem só pode fazer porque age voluntariamente. 

Irineu de Lyon (130 – 202d.C.), por sua vez, no quarto livro de sua importante obra “Contra as Heresias” escreveu: 


"Se, por natureza, alguns fossem bons e outros maus, nem aqueles seriam louváveis por serem bons, porque nasceram assim, nem estes seriam condenáveis porque foram feitos assim. Mas como todos são da mesma natureza, capazes de possuir e operar o bem e capazes de perdê-lo e de não fazê-lo, os que escolheram e perseveraram no bem recebem digno testemunho por isso, e são justamente louvados pelas pessoas sensatas — e muito mais por Deus — os outros são repreendidos e recebem a merecida infâmia por terem recusado o bem e o justo." (37.2) 

"Não somente nas ações, mas também na fé, o Senhor deixou livre e independente o arbítrio do homem. Ele disse: “Seja-te feito segundo a tua fé”, mostrando que a fé é própria do homem, pois tem o poder de decidir." (37.5) (IRINEU DE LIÃO, 2014, pp.270 - 271) 


Como se vê, novamente a liberdade é pensada como necessária para que se possa considerar morais as ações humanas. O livre-arbítrio humano é afirmado contra os gnósticos que consideravam a matéria má. Irineu argumenta que se a matéria fosse má ou se o humano fosse naturalmente mau, ele não poderia ser responsabilizado pelos seus atos. O homem pode livremente escolher desobedecer a Deus e não seguir o Evangelho, de modo que ninguém é obrigado por Deus a seguir o bem. Ainda, é interessante que Irineu considere não só o ato mau como um ato livre, mas também o ato da fé. Ter fé em Deus é uma escolha livre realizada pelo homem. De modo que é pela liberdade de arbítrio e de poder que o cristão escolhe acreditar no Evangelho. 

Orígenes (1885 – 225 d.C.) discute a questão a respeito de se os pecados humanos devem ser incluídos na providência divina. No livro sétimo de Contra Celso, parágrafo 68, ele diz: 


"Com efeito, é preciso examinar em que sentido tudo é regido conforme a vontade de Deus, e se esta direção se estende ou não até os pecados. Pois se esta direção se estende de fato aos pecados cometidos não somente entre os homens, mas também pelos demônios e por todos os outros seres incorpóreos que são capazes de pecar, é preciso enxergar o absurdo que implica esta afirmação: tudo é regido conforme a vontade de Deus. A consequência seria que até os pecados e tudo o que provém do vício são regidos conforme a vontade de Deus; o que não é a mesma coisa que dizer: isto acontece porque Deus não se opõe. Mas se tomarmos as palavras “ser regido” em sentido próprio, queremos dizer que as consequências do vício são controladas, pois é claro que tudo é regido conforme a vontade de Deus; e assim, quem peca não comete falta contra a direção de Deus. A mesma distinção se impõe relativamente à providência. É preciso dizer que a expressão “toda providência depende dele” significa algo de verdadeiro, se a providência se refere a um bem. Mas se dizemos em geral que tudo o que acontece é de acordo com a providência, ainda que seja um mal, será errado dizer que toda providência depende dele; a não ser talvez que se queira dizer: o que resulta das obras da Providência de Deus é causado pela providência de Deus." (ORÍGENES, 2004, pp. 326 – 327) 


Assim, segundo Orígenes, somente se deve atribuir à providência divina aquilo que é justo e bom. Desse modo, só se pode dizer que Deus controla tudo, se por tudo entendemos tudo aquilo que é certo. Por consequência, deve-se afirmar que toda alma foi criada livre na medida em que é racional. Ser o homem livre significa, pois, que lhe é possível tanto o elogio quanto a culpa, isto é, que suas ações têm caráter moral, pois não são resultados de alguma necessidade, mas são operadas pelo arbítrio humano. 

Até aqui, parece que os primeiros pais, pelo menos os que foram citados, concordam que o ser humano tem livre-arbítrio e que a presciência ou providência divina não anulam o arbítrio humano. O argumento comum é o de que só se pode atribuir moralidade a ações livres, de modo que se o homem não fosse livre, então ele não poderia ser julgado por Deus. Por conseguinte, os primeiros pensadores cristãos entendem que a liberdade humana deve ser afirmada para assegurar o justo julgamento de Deus, que não poderia punir nem recompensar obras que fossem resultado de mera necessidade. 

Constatado isso, merece um olhar mais cuidadoso, o modo como Santo Agostinho (354 – 430 d.C.) lidou com o problema do livre-arbítrio. Agostinho foi o primeiro grande pensador cristão a articular de forma mais ampla uma doutrina sobre a salvação pela graça, opondo-se ao pelagianismo. O pelagianismo foi uma doutrina considera herética que tinha a tendência de valorizar os méritos humanos na salvação, enquanto Agostinho pretendeu mostrar como deveria se atribuir a salvação à graça divina.  

De acordo com o teólogo de Hipona, o pecado tem sua origem no livre-arbítrio. Sendo assim, Deus não é o autor do pecado. Deus não pode ser o autor do mal porque ele é a fonte de todo bem. O pecado surge sempre que o homem submete a razão às suas paixões. No entanto, isso ocorre não por uma necessidade, nada obriga o ser humano a seguir suas paixões ao invés da razão, de modo que o pecado é um abuso da vontade livre. Dado isso, Deus não é culpado pelos nossos pecados, o único a quem se deve imputar a responsabilidade do mal que praticamos é nosso livre-arbítrio (AGOSTINHO, 1995).  

Defender o livre-arbítrio é, pois, uma forma de lidar com o problema do mal. Deus não é responsável pelo mal, ele não é seu autor. A origem do mal é o livre-arbítrio. Deus é o Sumo Bem e dele flui somente bondade e perfeição. Mas se Deus criou tudo bom, o mal é uma corrupção da ordem boa criada por Deus. Contra o maniqueísmo, que afirmava uma dualidade entre dois existentes: o bem e o mal, Agostinho defende a irrealidade ontológica do mal. Isto é, o que existe é o Bem, o mal não tem existência real, ele é uma mera privação do bem. É por usar seu livre-arbítrio de forma errada, ou seja, de modo a preferir os bens menores aos maiores, que o homem procede mal (COUTINHO, 2010). 

Por outro lado, em se tratando da salvação, Agostinho também afirma a doutrina da predestinação. Embora o ser humano tenha livre-arbítrio, no que diz respeito à fé, sua vontade é preparada por Deus. Desse modo, aquele que é salvo, recebe de Deus o dom da fé. Esse dom, no entanto, não é concedido a todos, ele é dado a uns e não a outros. Isso, no entanto, não torna Deus injusto, pois mesmo que ninguém fosse salvo, dado que incorremos na condenação de Adão, Deus seria justo ainda que não salvasse ninguém. Deus elege alguns, não com base em ter previsto que eles iriam crer, ao contrário, alguns creem porque Deus os escolheu para salvação (AGOSTINHO, 2013). 

Assim, o homem peca por seu livre-arbítrio, não por coação divina. No entanto, após entrar em estado de pecado, o homem não pode, por si mesmo, se libertar dessa condição. Desse modo, a salvação do homem só pode ter uma origem divina. Isso significa, que antes do pecado, está no poder do homem escolher o bem e o mal, mas depois que peca, o homem perde a capacidade de fazer o bem. Sendo assim, de acordo com Agostinho, o ser humano era plenamente livre antes de ter caído em pecado, mas após essa queda, ele perdeu a capacidade de escolher o bem. Só Deus pode, então, mover a vontade do homem caído para o bem, de onde se segue que a fé, pela qual o homem é salvo, se origina somente em Deus. Assim, se alguns creem e outros não, é porque Deus preparou alguns para crer enquanto não fez o mesmo a outros (OLIVEIRA, 2016). 

 

IV. A DOUTRINA REFORMADA E A REJEIÇÃO DO LIVRE ARBÍTRIO 


A apresentação da concepção agostiniana nos prepara para a compreensão da teologia reformada sobre a liberdade humana. Por teologia reformada, entendo a abordagem dogmática herdeira do pensamento do reformador francês João Calvino (1509 – 1564). Tal abordagem é influenciada pela doutrina agostiniana da predestinação. Antes mesmo de Calvino, vemos as sementes da abordagem reformada sobre o livre-arbítrio, na obra “Nascido Escravo” do reformador alemão Martinho Lutero (1483 – 1546). 

Em “Nascido Escravo”, Lutero discute a questão sobre se o homem possui ou não livre-arbítrio. Nesse livro, o reformador alemão se opõe à posição de Erasmo de Roterdã (1466 – 1536), segundo a qual o homem é livre em sua vontade. Segundo Lutero, o ser humano se encontra afundado no pecado e essa condição é universal. Nesse sentido, o domínio do pecado atinge a todos de modo que todos somos culpados diante de Deus. O resultado dessa corrupção universal é que o homem é incapaz de fazer o bem espiritual. Dado isso, só há salvação para o homem na graça, isto é, pela ação de Deus. Sendo assim, é completamente inútil falar de livre-arbítrio, já que a salvação vem somente por meio de Deus. A conclusão a que o reformador alemão chega é o de que, sendo o homem incapaz de se salvar e impossibilitado de praticar o bem espiritual, o livre-arbítrio é falso (LUTERO, 2007). 

De acordo com João Calvino, o homem foi criado livre e sem pecado. Adão teria sido criado com uma mente capaz de distinguir e escolher entre o bem e o mal. Nesse estado original de inocência, admite o reformador francês, o homem possuía livre-arbítrio. Mas quando escolheu pecar, o homem perdeu o livre arbítrio, tornando-se escravo do pecado.  Nesse ponto, Calvino concorda com Lutero em dizer que o ser humano não possui livre-arbítrio. Não que o homem não tivesse sua vontade livre quando foi criado bom e perfeito, mas é que agora, no estado de Queda, o ser humano é incapaz de fazer o bem, não sendo mais livre. Essa concepção de que o pecado tornou o ser humano impossibilitado de fazer qualquer bem espiritual foi denominada “doutrina da depravação total” (CALVINO, 1985). 

 

V. O ARMINIAMISMO E O RESGATE DO LIVRE-ARBÍTRIO 


No meio protestante, no entanto, a visão reformada não se estabeleceu sem oposição. O teólogo neerlandês Jacó Armínio (1560 – 1609), rejeitou a concepção calvinista e defendeu a tese de que o homem caído, pela graça de Deus, tem restaurada sua possibilidade em escolher o bem. A concepção defendida pelo teólogo ficou conhecida como arminianismo, em distinção àquilo que ficou conhecido como calvinismo ou teologia reformada. 

O arminianismo, no lugar da doutrina da depravação total, propôs a Teoria da Depravação Apropriada Voluntariamente (TDAV). Embora, a TDAV não seja adotada por todos os arminianos, é a concepção mais popular entre eles. De acordo com essa teoria, embora o pecado tenha corrompido a natureza humana, o próprio eu ou a vontade humana não se encontra sobre o poder do pecado. Os arminianos que continuaram mantendo a doutrina da depravação total, acharam uma forma de resgatar o livre-arbítrio dizendo que há uma “graça preveniente” que restaura o livre-arbítrio de todos os seres humanos (DANIEL, 2017). 

De acordo com o arminianismo, a presciência de Deus não anula o livre-arbítrio humano. Isso se dá porque o fato de Deus saber todas as coisas não significa que ele determinou todas as coisas. A predestinação, nessa concepção, é pensada em articulação com o livre-arbítrio, ela não determina quem vai crer, mas sim aquilo que quem crer irá se tornar. Nesse sentido, a predestinação significa que Deus determinou que aqueles que cressem nele seriam considerados filhos de Deus. Assim, a eleição divina é condicional e se dá com base na presciência divina, ou seja, Deus sabe aqueles que irão crer, embora sem determinar quem são essas pessoas que crerão (SILAS, 2017). 

 

VI. O TEÍSMO ABERTO E A NEGAÇÃO DA PRESCIÊNCIA DIVINA 


Com o resgate do livre-arbítrio pelo arminianismo, surge a questão de como conciliar a presciência divina e a liberdade humana. Alguns teólogos acharam insuficiente a explicação arminiana de que é possível crer ao mesmo tempo que Deus conhece plenamente o futuro e que o homem é livre para fazer escolhas. A questão que se coloca é que se Deus conhece todas as nossas escolhas, então isso significa que não podemos fazer escolhas diferentes daquelas às quais Deus conhece de antemão. Uma saída para esse problema consistiu na tese de que Deus não conhece absolutamente as escolhas humanas livres futuras. Tal posição é denominada como “teísmo aberto”. 

O teísmo aberto é uma doutrina que só começou a ter expressão na década de 1990. O nome de tal perspectiva significa que o próprio Deus está aberto a novas experiências. Tal abordagem defende o que o homem possui uma liberdade real e genuína, de modo que sua vontade é livre. Para que a liberdade real possa ser uma liberdade genuína, é preciso dizer, de acordo com o teísmo aberto, que a presciência divina não é absoluta, nem exaustiva. Por consequência, isso significa que o futuro não está determinado. Isso não quer dizer que Deus seja limitado por natureza, mas sim que ele se autolimita a fim de conceder liberdade ao homem. Só assim é possível, de acordo com essa abordagem, resgatar a responsabilidade humana. Não há responsabilidade moral sem liberdade real. Portanto, de acordo com essa posição, só se pode considerar o homem responsável se Deus não conhecer absolutamente o futuro (CAMPOS, 2004). 

 

VII. O MOLINISMO: UMA TENTATIVA DE CONCILIAR A SOBERANIA DIVINA COM O LIVRE-ARBÍTRIO 


Uma outra tentativa de lidar com a soberania divina em controlar tudo e o livre-arbítrio humano, mas sem negar nenhum desses dois polos, é o molinismo. Enquanto o calvinismo nega o livre-arbítrio, o arminianismo rejeita que Deus controle exaustivamente tudo e o teísmo aberto nega o conhecimento exaustivo de Deus, o molinismo tenta manter todas essas crenças. O molinismo é uma doutrina antiga, proposta por Luís de Molina (1535 – 1600), mas que ganhou força nos dias atuais graças a pensadores como o filósofos estadunidenses Willian Lane Craig (1949 -) e Alvin Plantinga (1932 -). 

De acordo com o Molinismo, a providência divina precisa ser pensada em associação com o que essa posição chama de “conhecimento médio”. O conhecimento médio seria o conhecimento que Deus tem do que uma pessoa livremente faria se ela se encontrasse em uma determinada circunstância. Portanto, para um molinista, Deus possui um tipo de conhecimento que o permite saber as diferentes possibilidades de configuração de mundos possíveis a depender do modo como as pessoas fariam uso de suas liberdades em diferentes circunstâncias (FERREIRA & MAYATT, 2008). 

O conhecimento médio insere-se, de acordo com o molinismo, entre o conhecimento natural e o conhecimento livre. O conhecimento natural é aquele por meio do qual Deus conhece todas as verdades possíveis, quer necessárias, quer contingentes. Esse é, pois, o conhecimento de tudo o que o poderia de algum modo ser. Já o conhecimento médio, como considerado, tem a ver com as diferentes possibilidades de exercício da liberdade humana. Tal conhecimento também pode ser denominado de contrafactual, pois diz respeito às escolhes contingentes dos agentes livres. Por fim, o conhecimento livre é aquele pelo qual Deus conhece todas as verdades sobre o mundo particular entre os possíveis que ele decidiu criar e, sob esse mundo particular, Deus tem conhecimento e controle exaustivo (FURTADO & BEZERRA, 2017). 

Assim, introduzindo o conceito de conhecimento médio ou contrafactual, tal abordagem pretende compatibilizar o controle soberano de Deus sobre o mundo ao mesmo tempo que busca conservar o livre-arbítrio humano. Isso se dá porque, embora o controle de Deus, nesse mundo particular, seja absoluto, esse mundo foi escolhido entre uma série de mundo possíveis conhecidos pelo conhecimento médio. E a configuração desses mundos é dada pelos diferentes modos pelos quais os agentes racionais decidiram livremente agir. 

 

VIII. A POSIÇÃO CATÓLICA-ROMANA SOBRE O LIVRE ARBÍTRIO 


       Finalizarei este artigo apresentando a posição defendida pelo catolicismo a respeito da liberdade humana. A doutrina romana é clara em afirmar o livre-arbítrio do ser humano e em se opor a concepções como a reformada que negam sua realidade. Os parágrafos 1731 a 1734 do Catecismo da Igreja Católica, dizem o seguinte: 


"A liberdade é o poder, radicado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, praticando assim, por si mesmo, acções deliberadas. Pelo livre arbítrio, cada qual dispõe de si. A liberdade é, no homem, uma força de crescimento e de maturação na verdade e na bondade. E atinge a sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa bem-aventurança. 

Enquanto se não fixa definitivamente no seu bem último, que é Deus, a liberdade implica a possibilidade de escolher entre o bem e o mal, e portanto, de crescer na perfeição ou de falhar e pecar. É ela que caracteriza os actos propriamente humanos. Torna-se fonte de louvor ou de censura, de mérito ou de demérito. 

Quanto mais o homem fizer o bem, mais livre se torna. Não há verdadeira liberdade senão no serviço do bem e da justiça. A opção pela desobediência e pelo mal é um abuso da liberdade e conduz à escravidão do pecado. 

A liberdade torna o homem responsável pelos seus actos, na medida em que são voluntários. O progresso na virtude, o conhecimento do bem e a ascese aumentam o domínio da vontade sobre os próprios actos." (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1933, 1731 – 1734). 

 

Assim, encontramos no Catecismo católico, uma posição similar, senão igual, àquela encontrada nos primeiros pais. A posição de que a liberdade humana deve ser afirmada a fim de salvaguardar a responsabilidade moral do homem. A doutrina católica também inclui entres os atributos divinos, a onisciência, de onde se deduz uma posição que busca conciliar a presciência divina e a liberdade humana. 

 

IX. CONSIDERAÇÕES FINAIS 


Este artigo não pretendeu ser exaustivo. É certo que existem outras propostas na teologia cristã na tentativa de compreender o livre-arbítrio que não foram consideradas aqui. No entanto, espero que as abordagens apresentadas deem uma noção geral das tentativas feitas pelos teólogos e filósofos cristãos na tarefa de articular uma compreensão da liberdade humana. Decidi por fazer uma apresentação descritiva, sem me posicionar, mesmo porque diante de tão complexo debate e dos múltiplos argumentos dos vários lados, é difícil assumir uma posição fechada. 

Como apresentado, os primeiros pais da Igreja defenderam o livre-arbítrio como uma forma de preservar a noção de que as ações humanas são revestidas de moralidade, posição ainda hoje adotada pela Igreja Católica Romana. No entanto, a partir de Agostinho, estabeleceu-se uma discussão a respeito de se o homem em estado de pecado seria capaz de realizar o bem ou não. A tese da inaptidão humana para a prática do bem espiritual resultou na doutrina reformada (calvinista) de que o homem é totalmente depravado e, portanto, incapaz de escolher o bem espiritual. Tal doutrina significou a rejeição do livre-arbítrio em relação ao estado humano atual. 

No entanto, apesar da proposta reformada ter sido seguida por boa parte dos protestantes, houve quem dela discordasse. É o caso da teologia arminiana, que pretende resgatar o livre-arbítrio do homem. Esse resgate, no entanto, trouxe o problema de como conciliar o conhecimento exaustivo de Deus sobre o futuro e a liberdade de ação do humano. Diante desse problema, o teísmo aberto rejeitou a presciência divina exaustiva enquanto outros teólogos retornaram à antiga doutrina molinista do conhecimento médio. 

Percebe-se a partir do que foi apresentado que não há consenso na teologia cristã sobre a liberdade humana, sendo esse um debate que tem gerado diferentes posicionamentos. Isso revela que além de ser um problema filosófico, o dilema entre o livre-arbítrio e o determinismo é um problema teológico. Tal problema revela novas nuances à medida em que se articula com outros problemas, como o problema da responsabilidade moral, da onisciência divina, da providência exaustiva de Deus e da mecânica da salvação. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 


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