ÉTICA CRISTÃ CONTEMPORÂNEA A PARTIR DO DECÁLOGO

  
     O objetivo deste artigo é propor uma concepção de Ética cristã que se mantenha fiel aos princípios do Decálogo, mas que ao mesmo tempo os expresse conforme as novas condições sociais e históricas da situação em que nos encontramos. Paul Tillich em sua Teologia Sistemática define a situação como a totalidade da auto-interpretação criativa do ser-aí humano em um período histórico determinado, a esta expressão cultural o Cristianismo deve responder sem deixar os seus elementos imutáveis. Para isso, é preciso que esta nova Ética se mantenha ao mesmo tempo cristã em seus princípios, enquanto responde e se expressa em conformidade com a situação, isto é, em conformidade com o novo contexto em que nos encontramos. 
        Uma ética que se mantenha presa às expressões antigas e que absolutiza códigos morais, não consegue corresponder ao seu tempo, nem acompanha a evolução progressiva da manifestação do Espírito Absoluto (Deus). Segundo Georg Hegel, o Espírito é a vida ética de um povo e este Espírito, na religião, se manifesta como Trindade, como Pai que é a substância pura, o Filho que se encarna como indivíduo humano e o Espírito que se manifesta na comunidade da Igreja (Fenomenologia do Espírito). Considerando que a História nada mais é do que a marcha do Espírito Absoluto no tempo segundo etapas sucessivas, é preciso considerar a relatividade e o condicionamento histórico dos códigos morais, ao mesmo tempo em que se entende que eles são revelações ou expressões do Espírito Absoluto (Deus). 
       É por compreendermos Deus como Trindade que esta ética pode se propor legitimamente cristã. Mas a revelação do Deus Trino na História faz com que entendamos que a História se mostra como revelação progressiva de Deus. É assim que Deus se revela no Antigo Testamento de forma gradual e progressiva e é nesta mesma medida que a Lei de Deus em sua expressão se condiciona a aspectos culturais determinados e ganha novas formas a partir do movimento progressivo do Espírito. Quando se alcança a revelação do Novo Testamento, os princípios morais vigentes já possuem formas bem diferentes daquelas do pentateuco, fala-se mais das virtudes espirituais do que de regras rituais e exteriores, se antes se impunham rígidos preceitos sob severas punições, agora se prega o cultivo de princípios espirituais e a graça, perdão e misericórdia quando alguém erra.  
       Se não compreendemos a revelação progressiva do Espírito Absoluto, acabaremos por nos tornar teonomistas, como alguns o fazem defendendo a pena de morte a homossexuais, adúlteros e filhos desobedientes, para sermos coerentes teríamos que legitimar a escravidão e a inquisição contra os hereges. Mas se entendemos a evolução do Espírito Absoluto, poderemos compreender porque Jesus diz, contrariando os teonomistas, que seu reino não pertence a este mundo, veremos os movimentos neotestamentáros contra a escravidão e entenderemos a importância de se defender a liberdade religiosa. Jean-Jacques Rousseau, ao defender a liberdade religiosa, observa que o Cristianismo dos Evangelhos ensina que o Reino de Deus não é deste mundo, de modo que a ideia de um Estado teocrático é contrária à mensagem dos Evangelhos (O Contrato Social). 
       Os biblicitas têm a ideia errada de que a Bíblia lida de maneira literalista fornece um sistema moral fechado, completo e absoluto que foi legado aos tempos futuros, que estabelecido este sistema ter-se-ia resolvido de uma vez por todas o essencial para as gerações vindouras. Só se consegue superar esta abordagem quando não se fica repetindo simplesmente o que foi dito. Se compreendemos o progresso histórico, poderemos compreender porque a própria moral cristã evolui neste processo. Se entendemos isso, podemos ver que há ainda hoje uma "revelação progressiva" pois a própria História é a voz deste Espírito que não se permite mais ficar preso à uma antiga manifestação própria de um momento histórico específico. 
       Mas se não podemos absolutizar o código moral bíblico, isso não significa se opor a ele, se o fizermos estaremos sendo antibíblicos e, por sua vez, anticristãos. O que se pretende dizer é que a Bíblia expressa de maneira historicamente condicionada valores que são, em sua essência, eternos. Não podemos nos prender à expressão historicamente condicionada da moral bíblica, mas também não podemos abandonar os valores morais eternos por traz desta expressividade. Segundo o próprio Friedrich Nietzche, uma das vantagens da moral cristã, é que ela se expressa num conjunto de valores e princípios universais. 
        Baruch Spinoza sabiamente observou que é importante considerar na Bíblia a distinção entre aquelas coisas que foram entregues para servir a uma condição histórica particular daquelas que são eternas. Qual, seria, pois o critério para tal? Se queremos pensar em termos morais devemos procurar por aquilo que, em sua essência, é universalmente compartilhado por todas as culturas. A moral ganha formas próprias em cada cultura, mas se um valor é universal, não haverá cultura em que este valor esteja ausente. Por isso, não é um código escrito e condicionado à manifestação própria de uma cultura que deve ser nosso referencial absoluto, mas sim aqueles princípios e valores que se encontrem compartilhados universalmente e dos quais todos os códigos morais são expressões. Estas expressões são culturalmente condicionadas, mas o valor e princípio que subjaz a todos os códigos é universal. Daí que se queremos fazer avaliações morais precisamos nos preocupar mais com o espírito da lei do que com a lei mesma, mais com o princípio universal do que com sua expressão legal particular.  
        Além disso, todo valor moral precisa obedecer ao princípio de maior felicidade, algo não pode ser simplesmente considerado moral ou imoral sem uma razão objetiva que independa da evocação de uma figura divina ou autoridade moral, essa razão objetiva é o princípio de maior felicidade: as ações são corretas na medida em que elas promovem a felicidade (prazer e ausência de dor ) e erradas quando elas tendem a produzir a infelicidade (dor e ausência de prazer). John Stuart Mill observou que o princípio de dever agir visando a felicidade em maior grau está assentado na natureza humana. É um sentimento de dever natural presente em nossa própria consciência. Assim, o fato do princípio de maior felicidade estar assentado na própria natureza humana nos permite justificá-lo enquanto critério moral. Cada pessoa, na medida em que acredita ser capaz de ser feliz, deseja sua própria felicidade, nada é desejado pelo humano a não ser a felicidade, o que quer que seja desejado é desejado ou como a felicidade em si ou como um meio para a felicidade. Sendo assim, a felicidade é o único fim da ação humana, o critério de moralidade pelo qual deve se julgar toda conduta humana (Utilitarismo). No entanto, a ética utilitarista, embora forneça um fundamento objetivo para a ação moral, é incompleta sem um fundamento deontológico que torna a ação moral racional, um fundamento teológico que lhe dá uma justificativa existencial e um fundamento revolucionário que compreenda a necessidade de ações para a construção coletiva de um mundo mais justo.
       O princípio da maior felicidade significa, primeiro, que Deus deseja a felicidade de suas criaturas e, segundo, que Deus não institui leis arbitrárias, a moral não poderia ser objetiva se não se fundamentasse em razão alguma, mesmo que fosse determinada por uma divindade. Sem o princípio de maior felicidade, a moral tornar-se-ia um conjunto de valores arbitrários, quer definidos pelo homem, quer por Deus. 
       Cremos, como cristãos, que Deus gravou sua Lei em nosso coração (Romanos 2.15-16), graças a isso, podemos identificar os valores morais universais observando sua presença compartilhada em todas as culturas. Assim, para se avaliar se uma ação é moral ou imoral, basta responder a duas questões: (i) Esta ação está em conformidade com os valores ou princípios reconhecidos universalmente por todas as culturas humanas? (iiEsta ação está em acordo com a promoção da felicidade humana na maior escala possível? 
        O Cristianismo historicamente tem compreendido o Decálogo como expressão sucinta dos valores morais universais, assim, como cristãos, tomamos os Dez Mandamentos como guia fiel para compreendermos quais são os princípios éticos da Lei eterna e imutável de Deus. Mas, aqui, novamente deve-se recordar da distinção entre valores e princípios eternos e a expressão condicionada desses princípios. Desse modo, ao olharmos para a Lei Moral expressa nos Dez mandamentos, precisamos visar antes o valor ou princípio básico por traz dessa lei, ao invés da expressão escrita do mandamento. É isto que faremos a partir de agora: 

(i) “Não terás outros deuses diante de mim”princípio de devoção exclusiva a Deus: Este mandamento incluiu, em sua forma histórica antiga, a completa proibição a qualquer culto, por parte de Israel, aos deuses dos gentios. Se entendemos que o Israel antigo não estava preparado para compreender a distinção entre Deus em si mesmo e as diversas manifestações do divino, é compreensivo entender o porquê desta interdição ter sido tão rígida e ter tido esta forma.  No entanto, a essência deste princípio está em nada colocar no lugar de Deus, como o dinheiro, a fama, nosso ego. Assim, este mandamento tem mais a ver com o modo como tratamos as coisas do que com algo nas coisas externas a nós. Hoje, podemos entender, quando olhamos para os múltiplos deuses de outras religiões, que eles são, na verdade, diferentes manifestações do mesmo divino atuando no mundo. Tomemos como exemplo a mitologia africana: podemos venerar os orixás como manifestações do divino na natureza, Xangô manifesta a atuação da justiça divina na natureza, Oxóssi personifica a providência divina e assim por diante. Por outro lado, é preciso insistir sempre que, embora Deus se manifeste em muitas formas e que a humanidade tenha dado diversos nomes para as plurais manifestações do divino, há um só Deus e Deus é um só. O princípio da devoção exclusiva significa que nada podemos colocar no lugar de Deus, que não podemos tomar como absoluto e eterno aquilo que é relativo e temporal.   

(ii“Não farás para ti imagem de escultura”princípio contra a idolatriaEm sua expressão formal antiga tal preceito significou não construir esculturas de divindades pagãs, de forma exagerada, os puritanos tomaram este preceito como uma proibição radical de usar qualquer símbolo ou imagem representando qualquer pessoa da Trindade (Catecismo Maior de Westminster, pergunta 109), além disso, os puritanos entenderam que a essência deste mandamento é o chamado "princípio regulador do culto", mas esse princípio nada mais é do que uma invenção da teologia puritana marcada por diversos radicalismos e fanatismos. Na verdade, este princípio, em sua essência, nada mais significa que não podemos confundir nossos símbolos sobre Deus com Deus mesmo, pois isso seria idolatria. Nossos símbolos, como a Trindade cristã, o símbolo chinês do Tien, o Brâman e a Trimurti no hinduísmo, o Zoka Sanshin japonês ou o Sunyata no budismo, são expressões que nos ajudam a compreender o divino, mas o divino em si mesmo não se confunde com nossos símbolos “sobre ele”. Deus é experienciado na relação direta “Eu-Tu” livre da mediação de símbolos, conceitos, juízos e interpretações. Portanto, este mandamento não é iconoclasta, ele apenas nos lembra que não podemos confundir nossos símbolos sobre Deus, com Deus mesmo. No entanto, como cristãos, devemos afirmar o caráter especial do símbolo da Trindade como compreensão do divino. A Trindade é o único símbolo religioso capaz de conter em si todos os princípios fundamentais que formam a base de tudo. Primeiro, porque ela concilia em si a unidade e a diversidade, o uno e o múltiplo. Segundo, porque ela funda todo o ser-um-com-outro. Terceiro, porque em seu interior se dá a base originária de toda processão. Quarto, por causa da figura do número três como unidade mínima de diferenciação. 

(iii“Não usarás o nome de Jeová, teu Deus, em vão”princípio de respeito ao divino: O terceiro mandamento foi compreendido de formas exageradas, os judeus proibiram a pronúncia do nome Jeová, mas, em sua forma mais original, este mandamento parece ter significado nada mais do que não fazer juramentos falsos usando o nome de Deus. Sobre ele se sustenta a importância de cumprirmos nossos compromissos, votos e promessas. O Nome de Deus se refere aos vários títulos e nomes pelos quais o divino se revela, no entanto, no contexto judeu, o Nome que aqui ganha ênfase é o nome Jeová. Se fosse algo de pequena importância, Deus não teria dado a si um Nome usado 6828 vezes nos escritos sagrados dos hebreus. A todo momento que se falava do divino, sempre que o divino se revelava, um nome estava sempre presente à mente dos hebreus: "Jeová" (Ya-o-huh). O divino se nomeia porque pretende se revelar como "pessoa": pessoa viva, que sente, que ama, que se alegra, que se entristece, que age e que se relaciona. Ao longo dos séculos, o nome Jeová foi esquecido, seu uso foi proibido, sua pronúncia se tornou um mistério. Esse esquecimento cobrou o seu preço: em seu lugar foi colocado um deus anônimo e isso criou um clima para que Jeová, o Deus vivo e pessoal, fosse substituído por um deus filosófico vago e abstrato: um motor imóvel, uma causa primeira, um ser necessário. Honramos o nome de Deus ao nutrirmos respeito por sua revelação como Deus pessoal. 

(iv) “Lembra-te do dia de sábado para o santificar”: princípio do descanso e adoração: Em sua forma original este mandamento exigia a guarda do sábado, no Cristianismo se transferiu esta guarda para o Domingo, deuses de outras religiões são adorados em dias especiais. Tudo isso são formas e expressões deste mandamento que em sua essência nada mais significa que devemos de tempos em tempos separar momentos de culto à divindade e de descanso para o corpo e para a alma. Eleger ou não um dia ou momento exato para culto e descanso é questão pessoal, o importante é manter vivo o exercício da espiritualidade, quer por orações, meditações, recitações, cultos, contemplação ou leituras religiosas e buscar sempre descansar o corpo e a mente.  

(v) Honra teu pai e tua mãe”: princípio do respeito às autoridades: Este princípio em sua essência lembra a máxima cartesiana que diz que devemos “obedecer às leis e costumes do nosso país, observar a religião e contentar-se com opiniões comuns mais moderadas.” (Discurso do Método). Em resumo, este mandamento se relaciona com os nossos deveres como cidadãos e membros de uma família. Este princípio não pode incluir uma submissão absoluta a quem quer que seja, nem pode ser usado contra nossa autonomia.  Atingir a maioridade no sentido kantiano significa tomar as rédeas da própria vida, a nenhum outro podemos delegar a tarefa de determinar quem somos ou o que devemos ou não fazer. É preciso assumir com coragem a tarefa de constituir e construir a si mesmo, de fazer da nossa liberdade a única realidade fundante. 

(vi) Não assassinarás”: princípio de respeito à vida: Aqui está incluindo um princípio universal: respeitar a vida. O princípio de proteger a vida é um valor universal que ganhou diferentes manifestações em cada cultura de acordo com aquilo que era considerado ou não oposto à vida, bem como em relação às exceções em que se poderia matar sem incorrer em erro, mas não haverá cultura em que o valor de respeitar a vida esteja ausente. Temas como aborto, suicídio e eutanásia precisam ser tratados com uma certa relatividade na medida em que se entende que as exceções a este princípio são socialmente condicionadas. Judith Tompson apresentou uma analogia para defender o aborto: "Você acorda de manhã e se vê unida, costa com costa, a um famoso violinista inconsciente. Ele tem uma grave doença nos rins, e a Sociedade dos Amantes da Música descobriu que só você tinha o tipo sanguíneo que podia salvá-lo. Eles sequestram você e o sistema circulatório do violinista foi ligado ao seu. O diretor do hospital lhe diz: 'Jamais teríamos permitido que a Sociedade fizesse isso, mas, agora que está feito, não podemos desligar o violinista de você porque isso significaria matá-lo. Mas não se preocupe, o processo vai durar apenas nove meses, depois você estará livre para ir embora.' " As implicações da analogia são óbvias. No entanto, essa analogia não parece convincente na defesa do aborto em qualquer caso já que há diferença entre engravidar por ter consentido voluntariamente ou se relacionar sexualmente sabendo dos riscos de uma gravidez e ter um violinista ligado a você contra sua vontade. No entanto, no caso da gravidez como fruto do estupro, a analogia do violinista parece se aplicar. Também, como o feto não é um organismo individual até os 14 primeiros dias de gestação, não parece ser imoral o aborto precoce nesse tempo. Embora se opor ao aborto possa ser uma expressão do princípio de respeito à vida, há de se aceitar uma crítica feita por Simone de Beauvoir de que enquanto se defende o direito do embrião, as crianças depois de nascer são esquecidas e não recebem a devida assistência (Segundo Sexo II). Quanto ao suicídio, alguns proporam a absurda ideia de que ele seria uma espécie de pecado imperdoável como se o arrependimento fosse uma condição absolutamente necessária para a salvação, se isso fosse verdade ninguém seria salvo porque ninguém morre em estado de perfeição. Chegou a ser tomado como um grave sacrilégio e tentativas de suicídio fracassadas já foram até consideradas crimes passíveis de pena de morte (cf. História da Loucura - Foucault). A Bíblia, no entanto, não condena o suicídio como pecado em parte alguma. O suicídio simplesmente é, como observa Heidegger, uma forma extrema na qual a tarefa essencial da existência do ser-aí humano de ser de si mesmo pode chegar a termo (Introdução à Filosofia). O princípio de proteção à vida lembra o princípio da ahinsa do jainismo. A ahinsa (princípio da não-violência) é um valor moral fundamental em nossa relação com o Outro e com a Natureza. Visto que todo o mundo é criação divina, ele possui, por isso, dignidade. Essa dignidade implica uma responsabilidade no trato do humano com o próximo, com os demais seres vivos e com o mundo. Ahinsa significa não ferir o outro, não matar, não causar dano às plantas, aos animais e ao meio ambiente. Inclui não magoar ao outro com palavras, respeitar os direitos animais, preservar a natureza, evitar a guerra e buscar sempre o diálogo pacífico. É uma ética de cuidado, de pre-ocupação com a totalidade cósmica que a todos os seres inclui. A ahinsa deve ser compreendida como uma expressão relativa do princípio de proteção à vida e não como uma forma absoluta deste princípio. A forma eterna deste princípio está no exercício do amor e da misericórdia, do cuidado com o próximo. Heidegger considera o cuidado (sorge) um modo fundamental do ser-aí humano (Ser e Tempo). É na realização do cuidado no nosso ser-um-com-o-outro que nos conformamos ao princípio de proteção à vida.  

(viiNão adulterarás”: princípio de moralidade sexual: Este princípio é o mais polêmico. Precisamos condenar a partir dele questões óbvias como o abuso sexual, a pedofilia, o estupro e o adultério que produzem dor e se opõem ao princípio de maior felicidade. No caso do incesto, a psicanálise parece ter fornecido dados para nos opormos a ele ao mostrar que ele é um tabu universal e fundante para a civilização, não há dúvidas de que o incesto na forma de abuso sexual é imoral, no entanto, do ponto de vista puramente utilitário, parece ser difícil condenar o incesto consentido. É preciso entender que a Bíblia foi escrita num contexto de uma sociedade patriarcal e, portanto, o princípio de moralidade sexual se expressou, nos tempos bíblicos, em conformidade com esse contexto. O padrão patriarcal das sociedades antigas torna condicionados e relativos a expressão do princípio de moralidade sexual no contexto bíblico. Formas puritanas, moralistas e exageradas deste princípio impuseram a condenação da masturbação e do uso de contraceptivos. A condenação do sexo antes do casamento também perde o sentido quando conaideramos a conquista de liberdades sexuais, a superação do patriarcalismo e a existência de tecnologias, como o preservativo, que tornaram seguro fazer sexo sem compromisso, por exemplo.  A homossexualidade foi historicamente condenada com base neste princípio, no entanto, este princípio não parece oposto à homossexualidade visto que há culturas que aceitavam o amor entre os rapazes como mostra Foucault (História da Sexualidade II) e visto que a homossexualidade não contradiz o princípio de maior felicidade. Vivemos um tempo que experimenta diversas possibilidades de constituição sexual e de identidades de gênero. Estes fenômenos são novos e não correspondem às formas que as uniões sexuais tinham no tempo bíblico. No tempo bíblicoo sexo entre iguais estava associado à prostituição cultual e a relações de dominação social mestre-aluno e senhor-escravo. Sendo assim, é preciso atualizar a expressão deste princípio de modo a acolher as novas configurações sexuais. Por não entender isso, o Cristianismo histórico fez da sexualidade a raiz de todos os males, condenou as práticas sexuais que se opusessem à reprodução como doenças terríveis, sob um discurso hipócrita lançou sobre a mente de milhares de pessoas um sentimento pesado de culpa pelo menor pensamento que pudesse ser impuro, estabeleceu como regra uma necessidade obsessiva de regular do menor olhar a todos os movimentos da mente e do corpo de modo a manter distante qualquer desejo sexual por mínimo que fosse e de declarar abominável toda e qualquer prática sexual não submetida a um fim reprodutivo no contexto do sagrado matrimônio. Um padrão moral sexual extremamente rígido foi imposto enquanto os que mais defendiam esse padrão eram seus maiores transgressores, a "moral cristã" escravizou com a culpa ao invés de fornecer liberdade. É preciso repensar a sexualidade e para isso, a perspectiva existencial é de grande valor. Esta perspectiva nos permite questionar tanto a visão da matriz heterossexual compulsória sobre sexo/gênero, mas também da teoria de gênero clássica e do inatismo presente em alguns lgbts enquanto defesa da naturalidade de orientações sexuais não-heteronormativas. A perspectiva existencial nos permite compreender que o ser-aí-humano não tem corpo, ou melhor, que o corpo é uma situação, não um dado biológico que imponha um destino imutável. O humano é um ser que não está dado, ser-humano não é uma espécie natural, mas uma ideia histórica, de modo que ser-homem e ser-mulher também precisam ser compreendidos, não como uma realidade imóvel, mas como uma construção histórica. Mas isso também precisa ser afirmado contra o inatismo de parte dos lgbts, se nenhum destino biológico é imposto ao homem, este também não tem um gene que lhe imponha uma forma de orientação sexual, ninguém "nasce" gay, a orientação sexual é constituída em conformidade com a liberdade essencial humana de determinar-se a si mesma no interior de um contexto fático. Mas esta perspectiva existencial também se opõe à teoria de gênero clássica. A teoria de gênero clássica cria uma dicotomia sexo/gênero como se o sexo fosse natural e biologicamente determinado e o gênero fosse social e historicamente construído. Mas se o corpo é uma situação, se não há destino biológico, também o sexo é tão construído quanto o gênero e, se isso é assim, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula (cf. Judith Butler. Problemas de Gênero, Feminismo e Subversão da Identidade). Diz-se que  homossexualidade é antinatural, mas o que ocorre, na verdade, é que a homossexualidade transcende a natureza pela existência. A sexualidade, desde que exercida respeitando o princípio de maior felicidade, não contradiz a moralidade objetiva, lembrando que o princípio de maior felicidade não tem a ver com o que faria um indivíduo mais feliz, mas sim com o que promoveria a maior felicidade humana na maior escala possível. 

(viii“Não furtarás”: princípio da justiça social: Este princípio que em sua expressão escrita proíbe ao furto não deve ser usado de forma anacrônica como defesa do modo de produção capitalista. O Catecismo da Igreja Católica extrai pontos importantes deste princípio: “Em matéria econômica, o respeito pela dignidade humana exige a prática da virtude da temperança, para moderar o apego aos bens deste mundo; da virtude da justiça, para acautelar os direitos do próximo e dar-lhe o que lhe é devido; e da solidariedade” (20407); “O salário justo é o fruto legítimo do trabalho.” (2434) “A greve é moralmente legítima, quando se apresenta como recurso inevitável, senão mesmo necessário, em vista dum benefício proporcionado.” (2435) “Deus abençoa os que ajudam os pobres e reprova os que deles se afastam” (2443). Relacionado a este princípio a Igreja tem o dever de manter a voz profética, isso significa que independente de quem esteja no governo, a Igreja, à semelhança dos profetas hebreus, deve erguer sua voz contra as injustiças sociais e a favor dos oprimidos. 

(ix“Não darás falso testemunho”princípio de respeito à verdade: Este princípio nos move a um compromisso com a verdade. Embora enganar seja errado, há contextos em que pode ser correto mentir. Charles Hodge, teólogo agostiniano norte-americano, em sua Teologia Sistemática observa que mesmo na Bíblia há casos em que o engano intencional não leva culpa como quando as parteiras hebreias mentiram para faraó a fim de protegerem a vida de crianças inocentes (Êxodo 1.19-20), quando Samuel enganou Saul ao ir a Belém ungir Davi (1Samuel 16.1-2); quando Eliseu enganou os soldados enviados pelo rei da Síria para se apoderarem de Dotã (2Reis 6.14-20) ou mesmo quando Jesus fez um gesto que pode ter sido um engano intencional (Lucas 24.28). Hodge explica que nesses casos o engano não foi errado porque algum outro princípio moral superior estava em questão. Por exemplo, se um assassino me pergunta onde está determinada pessoa que ele deseja matar e eu sei onde esta pessoa está, mas minto para o assassino a fim de proteger a vida dessa pessoa, não estou cometendo uma falha moral pois, ao fazer isso, cumpro o princípio de proteção à vida. Isto vale para todos os princípios apresentados aqui, quando um valor moral superior e um valor moral inferior estão em conflito, deve-se optar pelo valor moral superior. Proteger a vida é mais importante do que não mentir. Mesmo Platão, apesar de todo seu apreço pela verdade, reconhece que a mentira pode ser usada, embora somente pelos governantes, para defender o interesse maior da cidade (A República). No geral, pode ser difícil determinar qual princípio é mais importante do que outro, este é um daqueles campos em que não temos todas as respostas, é a partir daqui que se tem uma diversidade de problemas morais complicados como o dilema do bonde. Faz parte da humildade reconhecer que não temos resposta para tudo. 

(x) “Não cobiçarás as coisas do teu próximo”princípio moral de interioridade: O último princípio condiciona todos os demais, simplesmente significa que mais importa as virtudes do espírito do que meras regras externas. Sobre este mandamento se constituiu toda uma teologia de controle dos desejos e dos corpos, mas isso não toca na essência deste princípio. O princípio aqui em questão é a condenação do orgulho, do ódio e ira injustificados da inveja, e a afirmação de que devemos cultivar as virtudes do espírito como o amor, a bondade, o perdão, entre outros. O Evangelho se interessa especialmente por este princípio. O espírito do Evangelho é muito diferente do moralismo que se construiu no Cristianismo. O Evangelho inverte o que consideramos mais grave e imoral. A mensagem evangélica confronta os pecados do espírito, como o orgulho ou a inveja, como coisas muito mais contrárias à moral do que aquilo que consideramos transgressões graves, como a prostituição, o roubo ou o homicídio. Lemos nos evangelhos que uma prostituta humilde está mais próxima de Deus do que um religioso orgulhoso. O Evangelho repudia o sentimento de orgulho como algo extremamente mais grave do que atos sexuais ditos imorais. Assim, muito distantes estão do Evangelho aqueles que se arrogam santos nas igrejas, aqueles que se julgam superiores por causa de seu conhecimento teológico ou que se acham mais puros por não viverem o que chamam de promiscuidade. Mas mais perto está Jesus daqueles que são rejeitados pelos orgulhosos, mais próxima do Evangelho está a prostituta, que apesar de sua vida, é humilde. Esta humildade da prostituta é mais preciosa aos olhos de Deus do que todos os atos de "santidade" dos religiosos. É em um coração assim que a graça de Deus encontra acesso mais fácil.  



Comentários

Aloisio disse…
Ruim, muito ruim

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