PRINCÍPIOS ÉTICOS - DEREK PARFIT (RESUMO)
O que se segue é um resumo da Parte 2 do livro On What Matters de Derek Parfit, intitulada Princípios (Principles). Essa parte é composta por 4 capítulos, sendo eles: 1. Princípio do Consentimento; 2. Princípio da Não-Instrumentalização; 3. Respeito e Valor; 4. Liberdade e Merecimento. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação das teses do texto original de forma compactada, não uma resenha crítica. A ideia é de que o texto permaneça do autor original no sentido de apresentar de modo resumido suas principais teses no livro. Entretanto, este resumo não substitui a leitura do livro original, nem é uma reprodução dele, trata-se apenas de um roteiro para estudo com propósito educacional sem fins lucrativos. A obra usada como referência para este resumo foi: PARFIT, Derek. On What Matters. Oxford: Oxford University Press, 2011.
I. PRINCÍPIO DO CONSENTIMENTO
De acordo com o princípio preferido
de Kant, chamado a Fórmula da Humanidade: nós devemos tratar
todos os seres racionais ou pessoas, nunca meramente como meios, mas sempre
como fins. Tratar as pessoas com fins significa, para Kant, que nunca
devemos tratá-las de modo que elas não poderiam consentir. Portanto, de acordo
com esse princípio, é errado tratar pessoas de qualquer modo que elas não
possam possivelmente consentir. Esse princípio pode, assim, ser interpretado de
modo a dizer que a coerção e o engano são sempre errados.
Uma pessoa pode dar seu
consentimento ou negá-lo em sentido declarativo, isso ocorre quando a
pessoa nos conta se ela consente ou não com algo. De acordo com o Princípio
da Escolha, é errado não dar a outra pessoa o poder de escolher como
iremos tratá-la. Esse princípio, no entanto, é claramente falso, ele
implicaria, por exemplo, que um professor não pode dar a um aluno uma nota
baixa sem o consentimento dele. Korsgaard e O’Neill interpretam que Kant
quer dizer que é errado tratar pessoas de um modo que elas não possam
consentir no sentido dos atos que a afetam porque nós damos a essa pessoa o
poder de escolher como ser tratada.
No entanto, o que Kant provavelmente
quer dizer é que é errado tratar pessoas em uma forma que elas não poderiam
consentir no sentido dos atos que a afeta, se nós déssemos a elas o poder de
escolher como nós as tratamos. Nesse sentido, o que Kant provavelmente quer
dizer é que é errado tratar qualquer pessoa de uma forma que essa pessoa não
poderia racionalmente consentir, a isso damos o nome de Princípio
do Consentimento.
Assim, a interpretação do Princípio
do Consentimento envolve saber que atos uma pessoa pode racionalmente
consentir. De acordo com a interpretação de John Rawls, pessoas podem
racionalmente consentir com algum ato se e somente se ou apenas quando elas
poderiam querer que fosse verdade que a máxima desse agente seja uma lei
universal. De acordo com a Fórmula da Lei Universal proposta por Kant, é
errado agir de acordo com qualquer máxima que nós não poderíamos querer que
fosse uma lei universal. Por máxima, Kant se refere, grosso modo,
nossas diretrizes e objetivos subjacentes.
É possível reformular o Princípio do
Consentimento de modo que ele inclua a ideia de consentimento bem-informado.
De acordo com essa primeira reformulação, é errado tratar pessoas de
qualquer modo que elas não poderiam racionalmente consentir no sentido das
ações que a afetam, se essas pessoas conhecessem os fatos relevantes e déssemos
a elas o poder de escolher como as trataríamos. Quando as pessoas conhecem
os fatos relevantes, elas poderiam consentir racionalmente com um ato somente
quando esses fatos lhes dariam razões suficientes. Pessoas possuem razões
suficientes para consentir com algum ato quando essas razões não são mais
fracas do que qualquer outra razão que elas pudessem recusar consentimento.
Nesse sentido, pode-se resumir o Princípio do Consentimento nesta segunda
reformulação: é errado tratar pessoas de qualquer forma que elas não
teriam razões suficientes para consentir em relação às ações que as afetam.
Alguns autores acham o Princípio do
Consentimento supérfluo, de acordo com esses autores, mesmo que o Princípio do
Consentimento fosse verdadeiro, não haveria necessidade desse critério e ele
não teria poder explanatório. Por exemplo, as pessoas que defendem o Utilitarismo
de ato, entendem que nós devemos sempre fazer o que quer que, no todo,
beneficiaria mais as pessoas por dar a essas pessoas a maior soma tonal de
benefícios menos prejuízos. Assim, todas as pessoas poderiam racionalmente
consentir somente com todos os atos que, no todo, beneficiariam mais pessoas.
Se esse é o caso, o Utilitarismo de Ato já dá conta de tudo que o Princípio do
Consentimento pretende cobrir. O problema é que o Utilitarismo de Ato enfrenta
problemas. Há muitos atos utilitaristas que algumas pessoas não poderiam
racionalmente consentir e há muitos atos não-utilitaristas que todo mundo
poderia racionalmente consentir.
Embora formulado para considerar o
que as pessoas poderiam idealmente consentir, frequentemente é moralmente
importante considerar o que as pessoas realmente consentem. Alguns
argumentam que, visto que o Princípio do Consentimento não envolve o consentimento
real, ele erroneamente ignora a importância desse tipo de consentimento.
Isso, no entanto, não é verdade, porque há casos em que nós não podemos
racionalmente consentir em ser tratados de uma forma sem nosso consentimento
real. Assim, o Princípio do Consentimento não ignora a importância do
consentimento real.
Na verdade, pode até ser o caso de
que o Princípio do Consentimento acaba por dar implicitamente muita importância
ao consentimento real. De acordo com o Princípio do Veto, é errado
tratar pessoas de qualquer forma em que elas recusam de fato ou recusariam
consentimento. Esse princípio, no entanto, é claramente falso. Há incontáveis
atos moralmente permissíveis e até alguns moralmente requeridos em relação aos
quais algumas pessoas recusariam consentimento. Uma pessoa pode não consentir
em que sua perna tenha de ser quebrada como a única ação necessária para salvar
a vida de outra pessoa. Embora devamos rejeitar o Princípio do Veto, podemos de
maneira plausível aceitar uma versão mais fraca desse princípio. De acordo com
o que podemos chamar de Princípio dos Direitos, todos possuem
direitos de não serem tratados de determinados modos sem seu consentimento real.
O Princípio do Consentimento pode
ser reformulado para incluir também a ideia de consentimento irreversível,
que ocorre quando nós sabemos que, se futuramente retirarmos nosso
consentimento, isso não faria qualquer diferença sobre a maneira como seríamos
mais tarde tratados. Assim, de acordo com uma terceira reformulação do
Princípio do Consentimento: é errado tratar pessoas de qualquer modo em que,
se elas tivessem conhecimento dos fatos relevantes, essas pessoas poderiam ter
racionalmente dado, previamente, consentimento irreversível.
O Princípio do Consentimento
pretende descrever apenas uma das formas em que atos podem ser errados. Há atos
que podem ser errados mesmo que todos pudessem racionalmente consentir com
eles. Há, ainda, atos que podem ser errados mesmo que todos os envolvidos
realmente e racionalmente dessem consentimento válido a eles. Esse poderia ser,
para alguns, o caso da eutanásia voluntária: matar alguém, para seu
próprio bem, mesmo que essa pessoa pedisse. Alguns atos podem, ainda, ser
errados por outras razões que não tenham a ver com o modo como tratamos
pessoas, como é o caso da crueldade contra animais.
Visto que atos podem ser errado por
outros motivos que não têm a ver com o Princípio do Consentimento, o que o
Princípio do Consentimento implica depende em parte sobre quais atos podem ser
errados por outras razões. Assim, ao aplicar tal princípio, por vezes é preciso
considerar nossas crenças deônticas, que são nossas crenças sobre quais
atos são errados. As razões que podem ser fornecidas pelo fato de um ato ser
errado são chamadas de razões deônticas.
Alguns entendem que se um ato é
errado por alguma outra razão, o fato desse ato ser errado daria razões
suficientes a todos para consentir em não agir assim. Por isso, o Princípio do
Consentimento jamais poderia requerer atos que são errados por outras razões.
No entanto, há casos em que o Princípio do Consentimento pode requerer que
alguém faça algo errado, para lidar com esses casos é possível reformular o princípio.
Uma quarta reformulação do Princípio do Consentimento é: é errado
tratar pessoas de qualquer modo que elas não poderiam ter razões suficientes
para consentir, a não ser quando essas pessoas teriam tais razões porque o caso
envolve obrigações morais relativas à pessoa que são conflitantes. Isso
ocorre, por exemplo, quando duas crianças estão em perigo e o pai de cada uma
delas precisa salvá-las, mas só um dos pais tem como salvar apenas uma das
crianças.
O Princípio do Consentimento pode
também ser demasiadamente exigente, como por exemplo, requerer que alguém rico
dê uma quantia extremamente grande para ajudar os pobres. Nesse caso, o
princípio pode ser reformulado de modo a ser menos exigente. Uma quinta
reformulação do Princípio do Consentimento pode ser: é errado para nós
tratar pessoas de qualquer modo que elas não tenham razões suficientes para
consentir, a não ser quando, para evitar tal ato, nós teríamos que assumir um
fardo muito grande. O Princípio do Consentimento não pode, no entanto, ser
o que Kant queria que ele fosse: o princípio supremo da moralidade.
Alguns atos são errados mesmo que todos pudessem racionalmente consentir com
eles.
II.
PRINCÍPIO DA NÃO - INSTRUMENTALIZAÇÃO
De acordo com o Princípio da
Não-Instrumentalização é errado tratar qualquer um meramente como um
meio. É importante distinguir tratar alguém como meio de tratar
alguém meramente como meio. Nós tratamos alguém como meio quando
nós fazemos qualquer uso das habilidades, atividades ou do corpo dessa pessoa
para nos ajudar a atingir algum objetivo. No entanto, tratamos alguém meramente
como meio se nós tanto tratamos essa pessoa como um meio quanto a consideramos
um mero instrumento ou ferramenta, isto é, alguém, cujo bem-estar e
reivindicações morais ignoramos e a quem trataríamos da maneira que melhor
alcançariam nossos objetivos.
Uma forma mais forte do princípio de
Kant pode ser chamada de Segundo Princípio da Não-Instrumentalização,
segundo o qual é errado tratar qualquer um meramente como meio ou chegar
perto de fazer isso. Nós não
tratamos alguém meramente como meio nem chegamos perto de fazer isso quando: (i)
nosso tratamento dessa pessoa é governado ou guiado de modo suficientemente
importante por alguma crença ou preocupação moral relevante ou; (ii) nós
relevantemente escolhemos ou escolheríamos suportar um grande fardo pelo bem
dessa pessoa.
Kant entende que é errado tratar
qualquer ser racional meramente como meio. Isso, no entanto, pode ser ampliado
para incluir qualquer ser consciente ou senciente. O Princípio da
não-instrumentalização precisa, no entanto, ser revisado para incluir também o
fato de que nós não tratamos alguém meramente como meio se, dentro do que
sabemos, nosso ato não irá prejudicar essa pessoa. Assim, de acordo com o Terceiro
Princípio da Não-Instrumentalização: é errado tratar alguém meramente
como meio ou chegar perto de fazer isso, se nosso ato é provável de prejudicar
essa pessoa.
De acordo com a Visão Padrão do
Princípio da Não-Instrumentalização, se prejudicarmos pessoas, sem o
consentimento delas, como um meio de alcançar algum fim, nós tratamos essas
pessoas meramente como um meio de uma forma que torna nosso ato errado.
Essa visão, no entanto, envolve três erros: (i) quando nós prejudicamos
pessoas como meio, podemos não estar tratando essas pessoas como um
meio; (ii) ainda que estejamos tratando essas pessoas como um meio,
podemos não estar tratando elas meramente como meio; (iii) ainda
que estejamos tratando essas pessoas meramente como meio, podemos não estar
agindo errado. Esse é o caso, por exemplo, de quando prejudico alguém como uma
forma de autodefesa.
Assim, a visão padrão do Princípio
da não-instrumentalização precisa ser revisada. Uma sugestão é considerar que
nós tratamos alguém meramente como meio se nós prejudicamos essa pessoa, sem
seu consentimento, como um meio de atingir algum objetivo, a menos que nós
limitemos o prejuízo que causamos de um modo que seria ou poderia ser
significativamente pior para nós ou que faria nosso ato ser significativamente
menos efetivo para atingir nossos objetivos. Essa visão, no entanto, também é
problemática. Pois há casos em que uma pessoa pode assumir um alto risco por
outra e ainda assim estar tratando ela como mero meio. Há outras interpretações
do princípio da não-instrumentalização. O’Neill e Korsgaard entendem que
a coerção e o engano são duas formas de tratar pessoas meramente
como meio. No entanto, em um caso em que eu preciso coagir ou enganar alguém
por autodefesa, eu posso não estar tratando essa pessoa meramente como meio.
De acordo com o Princípio da
não-instrumentalização sobre prejuízo, é errado impor prejuízo sobre
alguém como um meio para atingir algum fim, a menos que não haja nenhum jeito
melhor de alcançar esse fim e dado a bondade desse fim, o prejuízo que impomos
não é desproporcional ou muito grande. Esse princípio não nos diz, entretanto,
qual prejuízo seria muito grande. Pode haver casos complexos em que essa
questão não tem uma resposta clara ou determinada.
Geralmente se acredita que podemos
explicar porque é errado prejudicar alguém usando o princípio da
não-instrumentalização. Isso, no entanto, não é verdade. Se for errado impor a
alguém certos prejuízos como um meio de atingir certos objetivos bons, esse ato
seria errado mesmo se não estivéssemos tratando essa pessoa meramente como
meio. A alegação de Kant contém uma verdade importante: é errado considerar
alguém apenas como um meio. Mas o erro de nossos atos nunca ou quase nunca
depende de se estamos tratando pessoas meramente como meios.
III. RESPEITO E VALOR
De acordo com Kant, todo ser
racional deve sempre ser tratado como um fim e um objeto de respeito.
Assim, deveríamos sempre tratar pessoas de modo que expresse respeito por elas
e seria errado tratar pessoas de formas incompatíveis com esse respeito. Kant
defende que nós devemos sempre respeitar a humanidade ou a natureza
racional que faz de nós pessoas. Para Kant, seres racionais possuem dignidade.
Kant distingue dois tipos de valores. Há, de um lado, valores que devem ser
promovidos, como o caso de eventos, como atos e estados de coisas. Por
outro lado, há valores que devem ser respeitados, é o caso de coisas
persistentes, como pessoas e obras de arte.
Kant distingue ainda três tipos de
fins: (i) fins a serem promovidos: é o caso de objetivos ou resultados que
podemos tentar alcançar; (ii) fins existentes: é o caso de fins que já
existem; (iii) fins em si mesmos: se refere a coisas que possuem valor
absoluto, incondicional e incomparável. Para Kant, há quatro coisas que possuem
esse tipo de valor supremo: (i) Boa Vontade: cumprir nossos deveres
éticos por causa do próprio dever e não por causa de algum outro objetivo, como
receber recompensas ou evitar punições; (ii) Reino dos fins: estado de
coisas possível que seria produzido se todo mundo conjuntamente tivesse a boa
vontade e agisse sempre corretamente; (iii) Bem de Máxima Grandeza: a
maior felicidade que todos teriam merecidamente por agirem de maneira virtuosa;
(iv) Seres racionais: a existência de agentes racionais que fazem com que o
Universo não seja algo vazio de um propósito final.
De acordo com a Fórmula do melhor
bem, todos devem sempre se esforçar em promover um mundo de virtude
universal e felicidade merecida. Esse mundo ideal, no entanto, é difícil de
ser alcançado. Portanto, ao aplicar essa fórmula, é preciso comparar a
realidade com estados mais alcançáveis do mundo e pensar como é possível
aproximar desse ideal. Kant propõe a chamada condição de proporcionalidade, segundo
a qual a felicidade de todo mundo precisa ser proporcional à sua virtude se
ninguém fosse virtuoso ou feliz, ou se todo mundo fosse tanto vicioso quanto
feliz. Na visão de Kant, é sempre melhor que haja mais virtude e mais
felicidade merecida, mesmo se a condição de proporcionalidade for menos
alcançada.
Visto que a fórmula kantiana envolve
a ideia de felicidade, é importante relacioná-la com outras teorias morais para
as quais a felicidade é importante. De acordo com o Consequencialismo de Ato,
todos devem sempre fazer ou tentar fazer o que quer melhor alcançaria um ou
mais objetivos comuns. De acordo com um tipo de Consequencialismo de Ato,
chamado de Utilitarismo Hedonista de Ato, todos devem sempre produzir
ou tentar produzir a maior soma de felicidade menos sofrimento. Essas
teorias são pessoalmente neutras, no sentido de que elas dão o mesmo
peso para os objetivos comuns de cada um. No entanto, para algumas teorias
morais, todos também devem tentar atingir objetivos que são pessoalmente
relativos, no sentido de que os próprios objetivos ou os objetivos
relacionados a pessoas com quem temos laços têm um peso especial. Há, ainda, um
terceiro grupo de teorias, para as quais não há qualquer valor moral comuns.
Algumas teorias morais são
completamente ou parcialmente teorias baseadas no valor. Para essas
teorias, há certas coisas que são boas ou más em um sentido substantivo. De
acordo com o Consequencialismo de Ato baseado em Valor: todos devem
sempre fazer ou tentar fazer o que quer que fala as coisas serem melhores. Essa
é uma versão do Utilitarismo Hedonista de Ato, para a qual todos devem produzir
ou tentar produzir a maior soma de felicidade porque é assim que as coisas
serão melhores. Algumas teorias morais fazem afirmações sobre como o conceito
de bem se relaciona ao conceito de dever. Há três tipos de teoria em
relação a isso: (i) teorias para as quais “bem” é mais fundamental que
“dever”; (ii) teorias para as quais “dever” é mais fundamental que
“bem”; (iii) teorias para as quais “bem” e “dever” são conceitos
independentes.
Um exemplo de teoria para a qual
“bem” e “dever” são conceitos independentes foi proposta por G. E. Moore.
Moore propõe o conceito de dever no sentido de promoção do bem, o que
significa que quando dizemos que devemos fazer algo ou que um ato é correto
isso significa que esse ato seria o melhor. Moore defende que devemos sempre
fazer o que quer que faça as coisas irem melhores. Essa visão pode ser
entendida como uma forma de Consequencialismo de Ato baseado no valor.
Kant, por sua vez, defende a teoria
de que o conceito de dever é mais fundamental do que o de bem. Assim, seria
preciso definir bem em termos de dever. Para Kant, é por seguir a lei moral
que todos podem melhor dar a cada um a felicidade que cada um merece por sua
virtude. Desse modo, Kant parece assumir que devemos seguir estritamente
certas regras. Essas regras podem ser entendidas como as regras que
melhor promoveriam a felicidade. Chamamos de regras otimizantes, aquelas
regras que se todos tentarem seguir isso faria as coisas serem melhores.
Considerando que a visão kantiana
pode ser aproximada da ideia de regras que promovem a felicidade, pode-se
considerar teorias morais que trabalham com a noção de regras otimizantes. Esse
é o caso do Consequencialismo de Regra, para o qual todos devem
sempre tentar seguir as regras otimizantes. Para alguns, seguir regras
otimizantes e fazer o que faria as coisas irem melhores são coisas que nunca
entram em conflito. Essas pessoas propõem o que pode ser chamado de Consequencialismo
de Ato-e-Regra, segundo o qual todos devem sempre tentar seguir as
regras otimizantes, visto que esse é o modo como todos irão mais provavelmente
fazer o que torna as coisas melhores.
Para firmar isso, é preciso ter
alguma forma de ter ideia dos efeitos de nossos atos. De acordo com a Visão
Marginalista, para decidir o quanto de bem algum ato produzirá, é preciso
perguntar qual a diferença que este ato faria. O bem de algum ato
consiste no quanto, se esse ato for realizado, as coisas iriam melhor do que se
esse ato não tivesse sido realizado. Por outro lado, de acordo com a Visão
do Total Compartilhado, quando um grupo de pessoas em conjunto produz algum
efeito bom, o bem que cada pessoa produz é a parte que essa pessoa tem do bem
total. Uma terceira posição, proposta por David Hume, é a Visão do
Esquema Total, segundo a qual para decidir quanto de bem um ato produzirá,
nós devemos perguntar quanta diferença este ato, por si mesmo, faz. Cada um de
nossos atos faria o maior bem se este ato for um dentro de um conjunto de atos
que em conjunto tornaria as coisas melhores.
Tanto Kant como Hume parecem
entender que nossos atos produzirão o melhor bem se seguirmos estritamente
regras otimizantes. Para Kant, para ser virtuoso e agir corretamente, é preciso
agir de tal forma que, se todos agissem assim, isso produziria felicidade
universal. Essa tese é uma forma de teoria consequencialista que pode ser
denominada como Utilitarismo Hedonista de Regra. Combinando isso com a Visão
do Esquema Total de Hume e a tese de que é seguindo as regras otimizantes
que todos teriam maior probabilidade de fazer com que as coisas sejam as
melhores, teríamos em Kant uma versão do Utilitarismo Hedonista de Ato que
coincidiria com o Utilitarismo Hedonista de Regra. Essa posição, no
entanto, tem apenas valor histórico, pois não é verdade que seguir regras
otimizantes e agir de modo que as coisas sejam melhores sempre coincidem.
IV.
LIBERDADE E MERECIMENTO
De acordo com deterministas,
todos os eventos são causalmente inevitáveis de tal modo que se alguém age de
uma determinada forma, seria causalmente impossível que ela tivesse agido
diferente. Kant entendia que se o determinismo fosse verdadeiro, não haveria
espaço para a moralidade, pois a moralidade requer um tipo de liberdade , que é incompatível coma
moralidade. Kant fazia uma distinção entre o mundo espaço-temporal
(fenômeno) e a realidade tal qual ela é em si mesma (coisa em si).
Nossos atos seriam em parte eventos que se dão no mundo espaço-temporal, mas
que têm origem na realidade das coisas em si que não são temporais. Tendo sua
origem numa dimensão não-temporal, nossos atos seriam, nesse sentido, livres.
Kant apresenta o seguinte argumento
a favor da ideia de que temos liberdade:
1. Nossos atos não podem ser errados
a menos que tivéssemos o dever de agir diferentemente;
2. Dever implica poder: nós
devemos ter agido diferentemente apenas se nós podíamos ter agido
diferentemente;
3. Logo, nossos atos não podem ser
errados a menos que tivéssemos o poder de ter agido diferentemente;
4. Se nossos atos forem meros
eventos no mundo espaço-temporal, esses atos seriam causalmente determinados de
modo que nunca poderia ser verdade que poderíamos ter agido diferentemente.
5. A moralidade não é uma ilusão.
Nós temos o dever de agir de determinados modos, e alguns de nossos atos são
errados.
6. Logo, nossos atos não são meros
eventos no mundo espaço-temporal.
É importante, no entanto, distinguir
dois sentidos de poder. Há o sentido categorial de poder, que se refere
ao fato de que um ato poderia ter sido causalmente diferente ainda que as
condições fossem exatamente como elas são. Por outro lado, há o sentido
hipotético de poder, que significa apenas que, se as condições fossem
diferentes, um ato poderia ter sido diferente. Kant assume que dever implica
poder no sentido categorial, por isso, para ele a moralidade é incompatível com
o determinismo. Chamamos de incompatibilismo, a visão de que o
determinismo é incompatível com o tipo de liberdade que a moralidade requer.
Há, no entanto, quem defenda que para haver moralidade é suficiente que dever
implique poder no sentido hipotético de poder. De acordo com o compatibilismo,
o determinismo pode ser conciliado com o tipo de liberdade que a moralidade
requer, no sentido de que é suficiente que pudéssemos ter agido diferentemente se
as condições fossem diferentes.
O compatibilismo parece ser a
posição correta. O tipo de liberdade que a moralidade requer é compatível com o
determinismo. Nós poderíamos ter agido diferentemente em sentido relevante
quando nada nos impediu de agir diferentemente a não ser os nossos desejos e
outros motivos. Kant acreditava que, além da moralidade requerer um tipo de
liberdade incompatível com o determinismo, nossa responsabilidade moral pode
fazer com que mereçamos felicidade ou sofrimento. Para ele, visto que nossos
atos não são meramente eventos no tempo, nós somos responsáveis por nossos
atos, porque na realidade em si mesma não-temporal, nós livremente escolhemos o
caráter que damos a nós mesmos e as ações que praticamos. Se esse é o caso, nós
somos responsáveis por nossos atos e por nosso caráter num sentido que nos faz
merecer sofrer.
Esse argumento é falso. Nossos atos
são meros eventos no tempo. As ideias de Kant sobre uma liberdade não-temporal
no âmbito das coisas em si são ininteligíveis. Pode fazer sentido falar de um
âmbito atemporal ou de um Deus cujas ações são atemporais, mas a ideia de
decisões humanas atemporais não faz sentido. Kant está certo que se nossos atos
forem meros eventos no tempo, eles não merecem sofrimento. Visto que nossos
atos são meros eventos no tempo, ninguém merece sofrer ou ser menos feliz.
Nossos atos podem merecer aprovação ou reprovação, mas não sofrimento. Se há um
Deus justo, ele não poderia fazer ninguém sofrer no inferno por seus atos. No
entanto, mesmo que Kant tivesse entendido que ninguém merece sofrer ou ser
menos feliz, ele poderia ainda ter tido como ideal um mundo em que todos são
virtuosos e felizes.
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