PRINCÍPIOS ÉTICOS - DEREK PARFIT (RESUMO)

 

O que se segue é um resumo da Parte 2 do livro On What Matters de Derek Parfit, intitulada Princípios (Principles). Essa parte é composta por 4 capítulos, sendo eles: 1. Princípio do Consentimento; 2. Princípio da Não-Instrumentalização; 3. Respeito e Valor; 4. Liberdade e Merecimento. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.

 

I. PRINCÍPIO DO CONSENTIMENTO

 

De acordo com o princípio preferido de Kant, chamado a Fórmula da Humanidade: nós devemos tratar todos os seres racionais ou pessoas, nunca meramente como meios, mas sempre como fins. Tratar as pessoas com fins significa, para Kant, que nunca devemos tratá-las de modo que elas não poderiam consentir. Portanto, de acordo com esse princípio, é errado tratar pessoas de qualquer modo que elas não possam possivelmente consentir. Esse princípio pode, assim, ser interpretado de modo a dizer que a coerção e o engano são sempre errados.

Uma pessoa pode dar seu consentimento ou negá-lo em sentido declarativo, isso ocorre quando a pessoa nos conta se ela consente ou não com algo. De acordo com o Princípio da Escolha, é errado não dar a outra pessoa o poder de escolher como iremos tratá-la. Esse princípio, no entanto, é claramente falso, ele implicaria, por exemplo, que um professor não pode dar a um aluno uma nota baixa sem o consentimento dele. Korsgaard e O’Neill interpretam que Kant quer dizer que é errado tratar pessoas de um modo que elas não possam consentir no sentido dos atos que a afetam porque nós damos a essa pessoa o poder de escolher como ser tratada.

No entanto, o que Kant provavelmente quer dizer é que é errado tratar pessoas em uma forma que elas não poderiam consentir no sentido dos atos que a afeta, se nós déssemos a elas o poder de escolher como nós as tratamos. Nesse sentido, o que Kant provavelmente quer dizer é que é errado tratar qualquer pessoa de uma forma que essa pessoa não poderia racionalmente consentir, a isso damos o nome de Princípio do Consentimento.

Assim, a interpretação do Princípio do Consentimento envolve saber que atos uma pessoa pode racionalmente consentir. De acordo com a interpretação de John Rawls, pessoas podem racionalmente consentir com algum ato se e somente se ou apenas quando elas poderiam querer que fosse verdade que a máxima desse agente seja uma lei universal. De acordo com a Fórmula da Lei Universal proposta por Kant, é errado agir de acordo com qualquer máxima que nós não poderíamos querer que fosse uma lei universal. Por máxima, Kant se refere, grosso modo, nossas diretrizes e objetivos subjacentes.

É possível reformular o Princípio do Consentimento de modo que ele inclua a ideia de consentimento bem-informado. De acordo com essa primeira reformulação, é errado tratar pessoas de qualquer modo que elas não poderiam racionalmente consentir no sentido das ações que a afetam, se essas pessoas conhecessem os fatos relevantes e déssemos a elas o poder de escolher como as trataríamos. Quando as pessoas conhecem os fatos relevantes, elas poderiam consentir racionalmente com um ato somente quando esses fatos lhes dariam razões suficientes. Pessoas possuem razões suficientes para consentir com algum ato quando essas razões não são mais fracas do que qualquer outra razão que elas pudessem recusar consentimento. Nesse sentido, pode-se resumir o Princípio do Consentimento nesta segunda reformulação: é errado tratar pessoas de qualquer forma que elas não teriam razões suficientes para consentir em relação às ações que as afetam.

Alguns autores acham o Princípio do Consentimento supérfluo, de acordo com esses autores, mesmo que o Princípio do Consentimento fosse verdadeiro, não haveria necessidade desse critério e ele não teria poder explanatório. Por exemplo, as pessoas que defendem o Utilitarismo de ato, entendem que nós devemos sempre fazer o que quer que, no todo, beneficiaria mais as pessoas por dar a essas pessoas a maior soma tonal de benefícios menos prejuízos. Assim, todas as pessoas poderiam racionalmente consentir somente com todos os atos que, no todo, beneficiariam mais pessoas. Se esse é o caso, o Utilitarismo de Ato já dá conta de tudo que o Princípio do Consentimento pretende cobrir. O problema é que o Utilitarismo de Ato enfrenta problemas. Há muitos atos utilitaristas que algumas pessoas não poderiam racionalmente consentir e há muitos atos não-utilitaristas que todo mundo poderia racionalmente consentir.

Embora formulado para considerar o que as pessoas poderiam idealmente consentir, frequentemente é moralmente importante considerar o que as pessoas realmente consentem. Alguns argumentam que, visto que o Princípio do Consentimento não envolve o consentimento real, ele erroneamente ignora a importância desse tipo de consentimento. Isso, no entanto, não é verdade, porque há casos em que nós não podemos racionalmente consentir em ser tratados de uma forma sem nosso consentimento real. Assim, o Princípio do Consentimento não ignora a importância do consentimento real.

Na verdade, pode até ser o caso de que o Princípio do Consentimento acaba por dar implicitamente muita importância ao consentimento real. De acordo com o Princípio do Veto, é errado tratar pessoas de qualquer forma em que elas recusam de fato ou recusariam consentimento. Esse princípio, no entanto, é claramente falso. Há incontáveis atos moralmente permissíveis e até alguns moralmente requeridos em relação aos quais algumas pessoas recusariam consentimento. Uma pessoa pode não consentir em que sua perna tenha de ser quebrada como a única ação necessária para salvar a vida de outra pessoa. Embora devamos rejeitar o Princípio do Veto, podemos de maneira plausível aceitar uma versão mais fraca desse princípio. De acordo com o que podemos chamar de Princípio dos Direitos, todos possuem direitos de não serem tratados de determinados modos sem seu consentimento real.

O Princípio do Consentimento pode ser reformulado para incluir também a ideia de consentimento irreversível, que ocorre quando nós sabemos que, se futuramente retirarmos nosso consentimento, isso não faria qualquer diferença sobre a maneira como seríamos mais tarde tratados. Assim, de acordo com uma terceira reformulação do Princípio do Consentimento: é errado tratar pessoas de qualquer modo em que, se elas tivessem conhecimento dos fatos relevantes, essas pessoas poderiam ter racionalmente dado, previamente, consentimento irreversível.

O Princípio do Consentimento pretende descrever apenas uma das formas em que atos podem ser errados. Há atos que podem ser errados mesmo que todos pudessem racionalmente consentir com eles. Há, ainda, atos que podem ser errados mesmo que todos os envolvidos realmente e racionalmente dessem consentimento válido a eles. Esse poderia ser, para alguns, o caso da eutanásia voluntária: matar alguém, para seu próprio bem, mesmo que essa pessoa pedisse. Alguns atos podem, ainda, ser errados por outras razões que não tenham a ver com o modo como tratamos pessoas, como é o caso da crueldade contra animais.

Visto que atos podem ser errado por outros motivos que não têm a ver com o Princípio do Consentimento, o que o Princípio do Consentimento implica depende em parte sobre quais atos podem ser errados por outras razões. Assim, ao aplicar tal princípio, por vezes é preciso considerar nossas crenças deônticas, que são nossas crenças sobre quais atos são errados. As razões que podem ser fornecidas pelo fato de um ato ser errado são chamadas de razões deônticas.

Alguns entendem que se um ato é errado por alguma outra razão, o fato desse ato ser errado daria razões suficientes a todos para consentir em não agir assim. Por isso, o Princípio do Consentimento jamais poderia requerer atos que são errados por outras razões. No entanto, há casos em que o Princípio do Consentimento pode requerer que alguém faça algo errado, para lidar com esses casos é possível reformular o princípio. Uma quarta reformulação do Princípio do Consentimento é: é errado tratar pessoas de qualquer modo que elas não poderiam ter razões suficientes para consentir, a não ser quando essas pessoas teriam tais razões porque o caso envolve obrigações morais relativas à pessoa que são conflitantes. Isso ocorre, por exemplo, quando duas crianças estão em perigo e o pai de cada uma delas precisa salvá-las, mas só um dos pais tem como salvar apenas uma das crianças.

O Princípio do Consentimento pode também ser demasiadamente exigente, como por exemplo, requerer que alguém rico dê uma quantia extremamente grande para ajudar os pobres. Nesse caso, o princípio pode ser reformulado de modo a ser menos exigente. Uma quinta reformulação do Princípio do Consentimento pode ser: é errado para nós tratar pessoas de qualquer modo que elas não tenham razões suficientes para consentir, a não ser quando, para evitar tal ato, nós teríamos que assumir um fardo muito grande. O Princípio do Consentimento não pode, no entanto, ser o que Kant queria que ele fosse: o princípio supremo da moralidade. Alguns atos são errados mesmo que todos pudessem racionalmente consentir com eles.

 

II. PRINCÍPIO DA NÃO - INSTRUMENTALIZAÇÃO

 

De acordo com o Princípio da Não-Instrumentalização é errado tratar qualquer um meramente como um meio. É importante distinguir tratar alguém como meio de tratar alguém meramente como meio. Nós tratamos alguém como meio quando nós fazemos qualquer uso das habilidades, atividades ou do corpo dessa pessoa para nos ajudar a atingir algum objetivo. No entanto, tratamos alguém meramente como meio se nós tanto tratamos essa pessoa como um meio quanto a consideramos um mero instrumento ou ferramenta, isto é, alguém, cujo bem-estar e reivindicações morais ignoramos e a quem trataríamos da maneira que melhor alcançariam nossos objetivos.

Uma forma mais forte do princípio de Kant pode ser chamada de Segundo Princípio da Não-Instrumentalização, segundo o qual é errado tratar qualquer um meramente como meio ou chegar perto de fazer isso.  Nós não tratamos alguém meramente como meio nem chegamos perto de fazer isso quando: (i) nosso tratamento dessa pessoa é governado ou guiado de modo suficientemente importante por alguma crença ou preocupação moral relevante ou; (ii) nós relevantemente escolhemos ou escolheríamos suportar um grande fardo pelo bem dessa pessoa.

Kant entende que é errado tratar qualquer ser racional meramente como meio. Isso, no entanto, pode ser ampliado para incluir qualquer ser consciente ou senciente. O Princípio da não-instrumentalização precisa, no entanto, ser revisado para incluir também o fato de que nós não tratamos alguém meramente como meio se, dentro do que sabemos, nosso ato não irá prejudicar essa pessoa. Assim, de acordo com o Terceiro Princípio da Não-Instrumentalização: é errado tratar alguém meramente como meio ou chegar perto de fazer isso, se nosso ato é provável de prejudicar essa pessoa.

De acordo com a Visão Padrão do Princípio da Não-Instrumentalização, se prejudicarmos pessoas, sem o consentimento delas, como um meio de alcançar algum fim, nós tratamos essas pessoas meramente como um meio de uma forma que torna nosso ato errado. Essa visão, no entanto, envolve três erros: (i) quando nós prejudicamos pessoas como meio, podemos não estar tratando essas pessoas como um meio; (ii) ainda que estejamos tratando essas pessoas como um meio, podemos não estar tratando elas meramente como meio; (iii) ainda que estejamos tratando essas pessoas meramente como meio, podemos não estar agindo errado. Esse é o caso, por exemplo, de quando prejudico alguém como uma forma de autodefesa.

Assim, a visão padrão do Princípio da não-instrumentalização precisa ser revisada. Uma sugestão é considerar que nós tratamos alguém meramente como meio se nós prejudicamos essa pessoa, sem seu consentimento, como um meio de atingir algum objetivo, a menos que nós limitemos o prejuízo que causamos de um modo que seria ou poderia ser significativamente pior para nós ou que faria nosso ato ser significativamente menos efetivo para atingir nossos objetivos. Essa visão, no entanto, também é problemática. Pois há casos em que uma pessoa pode assumir um alto risco por outra e ainda assim estar tratando ela como mero meio. Há outras interpretações do princípio da não-instrumentalização. O’Neill e Korsgaard entendem que a coerção e o engano são duas formas de tratar pessoas meramente como meio. No entanto, em um caso em que eu preciso coagir ou enganar alguém por autodefesa, eu posso não estar tratando essa pessoa meramente como meio.

De acordo com o Princípio da não-instrumentalização sobre prejuízo, é errado impor prejuízo sobre alguém como um meio para atingir algum fim, a menos que não haja nenhum jeito melhor de alcançar esse fim e dado a bondade desse fim, o prejuízo que impomos não é desproporcional ou muito grande. Esse princípio não nos diz, entretanto, qual prejuízo seria muito grande. Pode haver casos complexos em que essa questão não tem uma resposta clara ou determinada.

Geralmente se acredita que podemos explicar porque é errado prejudicar alguém usando o princípio da não-instrumentalização. Isso, no entanto, não é verdade. Se for errado impor a alguém certos prejuízos como um meio de atingir certos objetivos bons, esse ato seria errado mesmo se não estivéssemos tratando essa pessoa meramente como meio. A alegação de Kant contém uma verdade importante: é errado considerar alguém apenas como um meio. Mas o erro de nossos atos nunca ou quase nunca depende de se estamos tratando pessoas meramente como meios.

 

III. RESPEITO E VALOR

 

De acordo com Kant, todo ser racional deve sempre ser tratado como um fim e um objeto de respeito. Assim, deveríamos sempre tratar pessoas de modo que expresse respeito por elas e seria errado tratar pessoas de formas incompatíveis com esse respeito. Kant defende que nós devemos sempre respeitar a humanidade ou a natureza racional que faz de nós pessoas. Para Kant, seres racionais possuem dignidade. Kant distingue dois tipos de valores. Há, de um lado, valores que devem ser promovidos, como o caso de eventos, como atos e estados de coisas. Por outro lado, há valores que devem ser respeitados, é o caso de coisas persistentes, como pessoas e obras de arte.

Kant distingue ainda três tipos de fins: (i) fins a serem promovidos:  é o caso de objetivos ou resultados que podemos tentar alcançar; (ii) fins existentes: é o caso de fins que já existem; (iii) fins em si mesmos: se refere a coisas que possuem valor absoluto, incondicional e incomparável. Para Kant, há quatro coisas que possuem esse tipo de valor supremo: (i) Boa Vontade: cumprir nossos deveres éticos por causa do próprio dever e não por causa de algum outro objetivo, como receber recompensas ou evitar punições; (ii) Reino dos fins: estado de coisas possível que seria produzido se todo mundo conjuntamente tivesse a boa vontade e agisse sempre corretamente; (iii) Bem de Máxima Grandeza: a maior felicidade que todos teriam merecidamente por agirem de maneira virtuosa; (iv) Seres racionais: a existência de agentes racionais que fazem com que o Universo não seja algo vazio de um propósito final.

De acordo com a Fórmula do melhor bem, todos devem sempre se esforçar em promover um mundo de virtude universal e felicidade merecida. Esse mundo ideal, no entanto, é difícil de ser alcançado. Portanto, ao aplicar essa fórmula, é preciso comparar a realidade com estados mais alcançáveis do mundo e pensar como é possível aproximar desse ideal. Kant propõe a chamada condição de proporcionalidade, segundo a qual a felicidade de todo mundo precisa ser proporcional à sua virtude se ninguém fosse virtuoso ou feliz, ou se todo mundo fosse tanto vicioso quanto feliz. Na visão de Kant, é sempre melhor que haja mais virtude e mais felicidade merecida, mesmo se a condição de proporcionalidade for menos alcançada.

Visto que a fórmula kantiana envolve a ideia de felicidade, é importante relacioná-la com outras teorias morais para as quais a felicidade é importante. De acordo com o Consequencialismo de Ato, todos devem sempre fazer ou tentar fazer o que quer melhor alcançaria um ou mais objetivos comuns. De acordo com um tipo de Consequencialismo de Ato, chamado de Utilitarismo Hedonista de Ato, todos devem sempre produzir ou tentar produzir a maior soma de felicidade menos sofrimento. Essas teorias são pessoalmente neutras, no sentido de que elas dão o mesmo peso para os objetivos comuns de cada um. No entanto, para algumas teorias morais, todos também devem tentar atingir objetivos que são pessoalmente relativos, no sentido de que os próprios objetivos ou os objetivos relacionados a pessoas com quem temos laços têm um peso especial. Há, ainda, um terceiro grupo de teorias, para as quais não há qualquer valor moral comuns.

Algumas teorias morais são completamente ou parcialmente teorias baseadas no valor. Para essas teorias, há certas coisas que são boas ou más em um sentido substantivo. De acordo com o Consequencialismo de Ato baseado em Valor: todos devem sempre fazer ou tentar fazer o que quer que fala as coisas serem melhores. Essa é uma versão do Utilitarismo Hedonista de Ato, para a qual todos devem produzir ou tentar produzir a maior soma de felicidade porque é assim que as coisas serão melhores. Algumas teorias morais fazem afirmações sobre como o conceito de bem se relaciona ao conceito de dever. Há três tipos de teoria em relação a isso: (i) teorias para as quais “bem” é mais fundamental que “dever”; (ii) teorias para as quais “dever” é mais fundamental que “bem”; (iii) teorias para as quais “bem” e “dever” são conceitos independentes.

Um exemplo de teoria para a qual “bem” e “dever” são conceitos independentes foi proposta por G. E. Moore. Moore propõe o conceito de dever no sentido de promoção do bem, o que significa que quando dizemos que devemos fazer algo ou que um ato é correto isso significa que esse ato seria o melhor. Moore defende que devemos sempre fazer o que quer que faça as coisas irem melhores. Essa visão pode ser entendida como uma forma de Consequencialismo de Ato baseado no valor.

Kant, por sua vez, defende a teoria de que o conceito de dever é mais fundamental do que o de bem. Assim, seria preciso definir bem em termos de dever. Para Kant, é por seguir a lei moral que todos podem melhor dar a cada um a felicidade que cada um merece por sua virtude. Desse modo, Kant parece assumir que devemos seguir estritamente certas regras. Essas regras podem ser entendidas como as regras que melhor promoveriam a felicidade. Chamamos de regras otimizantes, aquelas regras que se todos tentarem seguir isso faria as coisas serem melhores.

Considerando que a visão kantiana pode ser aproximada da ideia de regras que promovem a felicidade, pode-se considerar teorias morais que trabalham com a noção de regras otimizantes. Esse é o caso do Consequencialismo de Regra, para o qual todos devem sempre tentar seguir as regras otimizantes. Para alguns, seguir regras otimizantes e fazer o que faria as coisas irem melhores são coisas que nunca entram em conflito. Essas pessoas propõem o que pode ser chamado de Consequencialismo de Ato-e-Regra, segundo o qual todos devem sempre tentar seguir as regras otimizantes, visto que esse é o modo como todos irão mais provavelmente fazer o que torna as coisas melhores.

Para firmar isso, é preciso ter alguma forma de ter ideia dos efeitos de nossos atos. De acordo com a Visão Marginalista, para decidir o quanto de bem algum ato produzirá, é preciso perguntar qual a diferença que este ato faria. O bem de algum ato consiste no quanto, se esse ato for realizado, as coisas iriam melhor do que se esse ato não tivesse sido realizado. Por outro lado, de acordo com a Visão do Total Compartilhado, quando um grupo de pessoas em conjunto produz algum efeito bom, o bem que cada pessoa produz é a parte que essa pessoa tem do bem total. Uma terceira posição, proposta por David Hume, é a Visão do Esquema Total, segundo a qual para decidir quanto de bem um ato produzirá, nós devemos perguntar quanta diferença este ato, por si mesmo, faz. Cada um de nossos atos faria o maior bem se este ato for um dentro de um conjunto de atos que em conjunto tornaria as coisas melhores.

Tanto Kant como Hume parecem entender que nossos atos produzirão o melhor bem se seguirmos estritamente regras otimizantes. Para Kant, para ser virtuoso e agir corretamente, é preciso agir de tal forma que, se todos agissem assim, isso produziria felicidade universal. Essa tese é uma forma de teoria consequencialista que pode ser denominada como Utilitarismo Hedonista de Regra. Combinando isso com a Visão do Esquema Total de Hume e a tese de que é seguindo as regras otimizantes que todos teriam maior probabilidade de fazer com que as coisas sejam as melhores, teríamos em Kant uma versão do Utilitarismo Hedonista de Ato que coincidiria com o Utilitarismo Hedonista de Regra. Essa posição, no entanto, tem apenas valor histórico, pois não é verdade que seguir regras otimizantes e agir de modo que as coisas sejam melhores sempre coincidem.

 

IV. LIBERDADE E MERECIMENTO

 

De acordo com deterministas, todos os eventos são causalmente inevitáveis de tal modo que se alguém age de uma determinada forma, seria causalmente impossível que ela tivesse agido diferente. Kant entendia que se o determinismo fosse verdadeiro, não haveria espaço para a moralidade, pois a moralidade requer um tipo de liberdade    , que é incompatível coma moralidade. Kant fazia uma distinção entre o mundo espaço-temporal (fenômeno) e a realidade tal qual ela é em si mesma (coisa em si). Nossos atos seriam em parte eventos que se dão no mundo espaço-temporal, mas que têm origem na realidade das coisas em si que não são temporais. Tendo sua origem numa dimensão não-temporal, nossos atos seriam, nesse sentido, livres.

Kant apresenta o seguinte argumento a favor da ideia de que temos liberdade:

1. Nossos atos não podem ser errados a menos que tivéssemos o dever de agir diferentemente;

2. Dever implica poder: nós devemos ter agido diferentemente apenas se nós podíamos ter agido diferentemente;

3. Logo, nossos atos não podem ser errados a menos que tivéssemos o poder de ter agido diferentemente;

4. Se nossos atos forem meros eventos no mundo espaço-temporal, esses atos seriam causalmente determinados de modo que nunca poderia ser verdade que poderíamos ter agido diferentemente.

5. A moralidade não é uma ilusão. Nós temos o dever de agir de determinados modos, e alguns de nossos atos são errados.

6. Logo, nossos atos não são meros eventos no mundo espaço-temporal.

 

É importante, no entanto, distinguir dois sentidos de poder. Há o sentido categorial de poder, que se refere ao fato de que um ato poderia ter sido causalmente diferente ainda que as condições fossem exatamente como elas são. Por outro lado, há o sentido hipotético de poder, que significa apenas que, se as condições fossem diferentes, um ato poderia ter sido diferente. Kant assume que dever implica poder no sentido categorial, por isso, para ele a moralidade é incompatível com o determinismo. Chamamos de incompatibilismo, a visão de que o determinismo é incompatível com o tipo de liberdade que a moralidade requer. Há, no entanto, quem defenda que para haver moralidade é suficiente que dever implique poder no sentido hipotético de poder. De acordo com o compatibilismo, o determinismo pode ser conciliado com o tipo de liberdade que a moralidade requer, no sentido de que é suficiente que pudéssemos ter agido diferentemente se as condições fossem diferentes.

O compatibilismo parece ser a posição correta. O tipo de liberdade que a moralidade requer é compatível com o determinismo. Nós poderíamos ter agido diferentemente em sentido relevante quando nada nos impediu de agir diferentemente a não ser os nossos desejos e outros motivos. Kant acreditava que, além da moralidade requerer um tipo de liberdade incompatível com o determinismo, nossa responsabilidade moral pode fazer com que mereçamos felicidade ou sofrimento. Para ele, visto que nossos atos não são meramente eventos no tempo, nós somos responsáveis por nossos atos, porque na realidade em si mesma não-temporal, nós livremente escolhemos o caráter que damos a nós mesmos e as ações que praticamos. Se esse é o caso, nós somos responsáveis por nossos atos e por nosso caráter num sentido que nos faz merecer sofrer.

Esse argumento é falso. Nossos atos são meros eventos no tempo. As ideias de Kant sobre uma liberdade não-temporal no âmbito das coisas em si são ininteligíveis. Pode fazer sentido falar de um âmbito atemporal ou de um Deus cujas ações são atemporais, mas a ideia de decisões humanas atemporais não faz sentido. Kant está certo que se nossos atos forem meros eventos no tempo, eles não merecem sofrimento. Visto que nossos atos são meros eventos no tempo, ninguém merece sofrer ou ser menos feliz. Nossos atos podem merecer aprovação ou reprovação, mas não sofrimento. Se há um Deus justo, ele não poderia fazer ninguém sofrer no inferno por seus atos. No entanto, mesmo que Kant tivesse entendido que ninguém merece sofrer ou ser menos feliz, ele poderia ainda ter tido como ideal um mundo em que todos são virtuosos e felizes.


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