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INTRODUÇÃO GERAL À BÍBLIA HEBRAICA

 

O objetivo deste texto é apresentar uma breve introdução geral à Bíblia Hebraica a partir de uma perspectiva histórico-crítica. Trata-se de uma busca de abordar os textos tomando como fio condutor seu significado em seu contexto histórico e cultural de produção sem partir de pressupostos religiosos, como a ideia de inspiração. Nesse sentido adota-se o naturalismo metodológico, compreendendo a Bíblia como um livro produzido por homens reais em seus contextos concretos de existência. Este artigo não visa fornecer uma exegese dos textos, mas contextualizar o leitor historicamente a fim de fornecer uma introdução geral para a leitura da Bíblia Hebraica.

 É importante dizer, no entanto, que essa forma de abordar a Bíblia não contradiz outras maneiras de lê-la, este texto não se trata de uma oposição, por exemplo, às leituras cristãs tradicionais da Bíblia hebraica que a tomam como uma escritura sagrada. O objetivo da hermenêutica acadêmica não é refutar ou invalidar outras hermenêuticas. A hermenêutica acadêmica busca determinar o significado histórico-cultural do texto. As outras formas de interpretar o texto (religiosa, devocional, simbólica, espiritual, teológica, mística, etc) são interpretações igualmente válidas. 

Existem diferentes versões de quais livros compõem a Bíblia Hebraica. Não usaremos aqui o termo “Antigo Testamento”, pois essa noção já carrega o enviesamento de ver a Bíblia Hebraica como uma preparação para as Escrituras Gregas Cristãs, denominados como Novo Testamento. No entanto, a fim de tentar encontrar um denominador comum de livros minimamente presentes nos diversos cânones, decidi me orientar pela versão de 39 livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, I Samuel, II Samuel, I Reis, II Reis, I Crônicas, II Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cânticos dos Cânticos, Isaías, Jeremias, Lamentações, Ezequiel, Daniel, Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. 

Este texto é composto por seis partes: (i) mitos importantes a serem superados na leitura da Bíblia Hebraica; (ii) a origem do povo hebreu; (iii) a origem do deus Javé; (iv) o período da monarquia e o exílio; (v) o pentateuco e os textos deuteronomistas; (vi) outros livros da Bíblia Hebraica. 

 

I. MITOS IMPORTANTES A SEREM SUPERADOS NA LEITURA DA BÍBLIA HEBRAICA 

 

Quando lemos a Bíblia Hebraica, precisamos logo de início nos desenvencilhar de alguns mitos, são eles1: 

1. O de que a Bíblia Hebraica é um único livro: na verdade a Bíblia Hebraica é uma coleção de textos e livros de diferentes origens, gêneros, propósitos e visões de mundo, escritos por diferentes autores com diferentes ideias, vivendo em diferentes lugares e épocas. Desse modo a Bíblia Hebraica não tem uma visão única sobre algo, nem é fruto de um mesmo autor. 

2. O de que a Bíblia Hebraica é uma narrativa a respeito de homens piedosos: a Bíblia Hebraica na verdade é um livro cheio de histórias escandalosas, de homens que fizeram coisas terríveis e que cometeram erros graves. Muitas das histórias de personagens bíblicos não são exemplos de vida moral nem estão de acordo com os melhores padrões da ética. 

3. O de que a Bíblia Hebraica é um livro de teologia: a Bíblia Hebraica não é um livro de catequese ou um manual sistemático de religião. A Bíblia Hebraica não define um conjunto de doutrinas a serem confessadas ou subscritas. 

4. O de que a Bíblia Hebraica é um escrito inalterado: textos bíblicos não foram escritos por um autor e depois apenas copiados mantendo o texto intacto. Textos bíblicos são expressão de uma tradição oral que após registrada por escrito, foi reescrita, modificada e reeditada ao longo do tempo por diferentes autores, editores e compiladores. 

    Para estudar a Bíblia Hebraica a partir de uma perspectiva histórica será sempre necessário fazer uma contextualização do ponto de vista da História, iniciarei com a origem do povo hebreu. 

 

II. A ORIGEM DO POVO HEBREU  

 

Para entender a Bíblia hebraica é preciso ter uma noção da história do povo hebreu. Os hebreus possuem um mito fundador que é o do Êxodo, segundo o qual os hebreus foram escravos no Egito, sendo libertados de lá por Moisés e se estabelecendo na terra de Canaã. No entanto, essa história não é sustentada do ponto de vista arqueológico, nem pelas evidências históricas, sendo, portanto, um relato simbólico. Algumas evidências de que o Êxodo não aconteceu como fato histórico, é algo que se sabe pelas seguintes razões: 

1. O período em que o Êxodo teria acontecido de acordo com a Bíblia (cerca de 1440 a. C.), é uma época em que a terra de Canaã estava sob o domínio do Egito. Nessa época, todas as rotas do Egito para Canaã eram estritamente vigiadas, a fronteira sul de Canaã era guardada por guardas egípcios, sendo muito improvável que escravos conseguissem sair do Egito e entrar em Canaã2. 

2. De acordo com a Bíblia, saíram do Egito um exército de 600 mil pessoas, isto é, contando apenas homens (sexo masculino), adultos e acima de 20 anos, excluindo mulheres e crianças. Assim, o número total de pessoas poderia girar em torno de 2 ou 3 milhões de hebreus. Os hebreus quando chegaram no Egito na época de José, conforme a Bíblia, eram apenas uma família. Seria impossível que em apenas 4 séculos eles chegassem a um número de pessoas na casa dos milhões3. 

3. Um fato tão grandioso de milhões de pessoas saindo do Egito após pragas gigantescas seria uma história que teria se espalhado no mundo inteiro. Aliás, conforme a própria Bíblia esse fato foi conhecido por todas as nações que passaram a temer os hebreus. Apesar disso, toda essa história grandiosa não deixou nenhuma evidência arqueológica ou documental fora da Bíblia4. 

4. De acordo com a Bíblia, o exército hebreu entrou em Canaã e destruiu diversas cidades, exterminado povos em um verdadeiro genocídio. No entanto, os arqueólogos têm registros de quando as cidades de Canaã passaram por destruição. Graças às camadas que as destruições seguidas da reconstrução das cidades deixam, isso pode ser verificado arqueologicamente. No entanto, a pesquisa arqueológica mostrou que essa destruição de várias cidades no período em que teria ocorrido o Êxodo não aconteceu5. 

5. Por fim, a própria data do Êxodo é simbólica. O texto bíblico que fala da data do Êxodo o situa exatamente 480 anos antes da construção do Templo de Salomão em 960 a.C.. 480 é um número simbólico resultado da multiplicação de 12x40 = 480. 12 representa as 12 tribos de Israel, enquanto 40 é um número simbólico na Bíblia (1 Reis 6:1).  

Se o povo hebreu não se originou do Êxodo, qual sua origem? Existem três teorias para isso que são o modelo de imigração; o modelo de revolta e o modelo de emergência gradual. Segue-se o que cada um propõe5: 

1. Modelo de Imigração: segundo este modelo, os israelitas são um grupo de imigrantes vindos do nordeste do Mediterrâneo, o que ocorreu por volta de 1200 a.C., e que ocuparam primeiro as cidades na região central de Canaã, descendo gradualmente até as terras ao Sul que eram mais fortificadas, conquistando e ocupando áreas em que o domínio do Egito sobre o local, na época, era mais fraco. Essa perspectiva, no entanto, conta com pouco suporte arqueológico. 

2. Modelo de Revolta: propõe que Israel se formou devido a uma revolução social na terra de Canaã, na qual grupos se revoltaram contra o domínio egípcio na região por volta do século XIV a.C. Um desses grupos marginais revoltosos estabeleceu-se na região, passando a ver Javé como aquele que os libertou do domínio do Faraó do Egito, o que deu origem ao mito do Êxodo. 

3. Modelo de Emergência Gradual: defende que os israelitas eram cananeus que paulatinamente desenvolveram uma identidade cultural própria, separando-se dos demais cananeus. Esse grupo pode ter incorporado outros grupos, como beduínos que trouxeram o culto a Javé para a terra de Canaã. A adoração a Javé se tornou uma marca especial desse grupo em sua diferenciação dos demais cananeus. 

Me parece que a melhor tese a assumir é a de que os hebreus surgiram de entre o povo cananeu. Esse povo, em sua história passada, pode ter tido patriarcas e juízes, cujas histórias foram aumentadas ganhando elementos míticos. Esses patriarcas e juízes provavelmente eram adoradores de deuses cananeus, como El e Baal. A história dos patriarcas e juízes foram contadas, recontadas e mitologizadas, formando relatos que encontramos em Gênesis 12 a 45 e no livro de Juízes. Se considerarmos, por exemplo, as histórias dos patriarcas veremos que elas soam como mitos. Há muitas coincidências e repetições, como o fato de que tanto Abraão como Isaque se casam com uma mulher estéril que precisam de um milagre para engravidar. Ambos viajam para o Egito e mentem que a esposa é irmã. No entanto, tais histórias podem ter algum vestígio de algum personagem histórico. Quanto aos juízes, do mesmo modo pode ser um conjunto de histórias da tradição oral com elementos míticos, mas que remontam a personagens reais.  

Pode ser que no período em que o Egito dominava a terra de Canaã, esse grupo herdeiro dos patriarcas e juízes se revoltou contra esse domínio, foi bem-sucedido e formou um pequeno “reino” sob a liderança do rei Saul. Essa revolta e libertação pode estar por trás da formação do mito do Êxodo. Esse povo pode ter raciocinado que a terra em que habitavam era santa e que, se eles foram dominados pelo Egito no passado, isso deve ter ocorrido em outra terra, na própria terra dos egípcios. Esse novo reino também tomou o culto ao deus Javé como marca distintiva que os diferenciou dos demais cananeus. No entanto, fica uma questão: se os patriarcas e juízes eram adoradores de deuses como El e Baal, de onde surgiu o deus Javé? É o que considerarei a seguir. 

 

III. A ORIGEM DO DEUS JAVÉ 

 

É possível que os patriarcas e juízes tenham de fato adorado El, Baal e incluído também Javé. O deus Javé (Yhwh), que conhecemos mais popularmente por “Jeová” ou “O SENHOR”, pode ter sua origem e desenvolvimento explicados por diferentes modelos. É bem provável que Javé seja um deus adorado na região de Edom por um grupo de beduínos, que o trouxeram para a terra de Canaã. A pesquisa sobre a origem de Javé, o deus dos hebreus, tem gerado três diferentes posições sobre como Javé se tornou o Deus único de Israel. Essas posições são - o modelo evolucionário, o modelo revolucionário e o modelo de convergência/diferenciação6: 

(1) Modelo Evolucionário: 

Segundo este modelo, os hebreus evoluíram do politeísmo, para o henoteísmo e, por fim, chegaram ao monoteísmo. Isso significa que por um tempo Javé, trazido de Edom, foi incorporado ao panteão cananeu e adorado como uma divindade que fazia parte do Concílio dos deuses, que incluía deuses como El e Baal. O deus cananeu El presidia esse conselho. Isso explicaria porque a era dos patriarcas é retratada como aquela que predomina o nome "El": El-Shaddai, Elohim, El-Elyon", bem como os nomes de pessoas e lugares eram constituídos por essa raiz: Ismael, Israel, Betel, Peniel, etc. No período da monarquia, Javé tomou o lugar de El e Baal, sendo considerado o Deus mais poderoso do panteão, presidindo o conselho dos deuses. A existência de um conselho de deuses dirigido por Javé se reflete no plural, como em Gênesis, quando ao criar Javé diz "Façamos o homem à nossa imagem" (1:27). Com o tempo Javé não só se tornou o Deus principal, mas incorporou as características e os títulos dos deuses cananeus El e Baal, como ilustrado em Isaias 54:5: "“Porque o teu Criador é o teu Baal, Javé dos Exércitos é o seu nome, e o Santo de Israel é o teu redentor, que é chamado El-o-him de toda terra.” Os hebreus então evoluíram para uma monolatria, considerando Javé como o único Deus que merecia ser cultuado e adorado, sem negar, no entanto, a existência de outros deuses. Com o tempo, no entanto, os hebreus passaram a considerar não só que Javé era o deus mais poderoso e único digno de adoração, mas o único Deus existente. 

(2) Modelo Revolucionário:  

Segundo este modelo, defendido por Yehezkel Kaufmann, não existiu uma evolução rumo ao monoteísmo, mas uma revolução. Os hebreus tornaram-se monoteístas por uma atitude revolucionária de se opor ao politeísmo dos demais povos. Assim, enquanto os babilônios, por exemplo, tinham um mito de criação a partir da guerra entre deuses como Marduque e Tiamate, os hebreus construíram uma narrativa de criação sem qualquer guerra entre deuses (Gênesis 1). Enquanto os politeístas divinizavam as estrelas, os hebreus escreveram delas como entidades criadas. Enquanto nos mitos babilônios os deuses estavam submetidos a uma realidade maior que eles e ao Destino, os hebreus consideravam Javé como aquele que controla tudo e rege a história. Não há, pois, uma linha de continuidade que leva do politeísmo ao monoteísmo, mas uma grande ruptura. A visão monoteísta dos hebreus está, assim, em oposição e descontinuidade com o politeísmo.  

(3) Modelo de convergência/diferenciação:

Este modelo, defendido por Mark John Smith e Steven Geller, busca fugir da dicotomia politeísmo e monoteísmo, entendo que a adoração dos deuses cananeus e o culto de Javé mantiveram relações de convergência e diferenciação. Isso significa que houve momentos em que o culto a Javé se aproximou dos cultos cananeus, incorporando elementos e noções ligadas aos deuses El e Baal. Por outro lado, houve momentos mesmo de guerra entre os adoradores dos deuses cananeus e os adoradores de Javé, como ilustrado na luta de Elias contra os profetas de Baal, criando diferenciações. Há, pois, uma relação de convergência e diferenciação na qual ora os hebreus incorporavam elementos dos deuses cananeus, ora se afastavam dessas raízes de seus ancestrais. 

 

IV. O PERÍODO DA MONARQUIA E O EXÍLIO

 

Constituído o pequeno reino de Saul (1030 -1010 a.. C.) a partir da revolta dos hebreus contra o domínio Egípcio em Canaã, seguiu-se tempos conturbados. Saul foi um rei profundamente popular, mas tinha oponentes. Um deles era um líder de milícias denominado Davi, que comandava um grupo de homens armados. Esses homens armados conquistavam o apoio de líderes de clãs, que tinham ainda muito poder na região. Provavelmente a milícia de Davi fornecia proteção a esses líderes em troca de apoio e prometendo não invadir suas terras. Davi ganhou o apoio dos filisteus, inimigos do reino de Saul, e com a ajuda deles deu um golpe, matando Saul e sua família e tornando-se o novo rei.  

Os redatores bíblicos eram fiéis à casa de Davi e recontaram essa história de modo a favorecer e legitimar o novo reinado. Há muitos textos bíblicos insistindo várias vezes que Davi nunca mataria Saul. Davi encontra duas vezes com Saul, tem oportunidade de o matar, mas não o mata. Davi foi quase um músico terapeuta de Saul que quase o matou, mas Davi nunca reagiu. Quando ocorreu a guerra dos filisteus contra Saul, Davi era do exército filisteu e o texto insiste em dizer que Davi foi dispensando de ir a essa guerra. Curiosamente foi nessa guerra que Saul “se suicidou”. Outros textos falam que foi um homem que matou Saul e foi feliz contar para Davi que fez isso, quando Davi ouve isso, ele manda matar esse homem dizendo que ele nunca deveria ter matado Saul, porque Saul era ungido de Deus. 

Essa insistência dos redatores bíblicos em dizer que Davi jamais seria capaz de matar Saul parece revelar que no mínimo o povo acreditava que Davi foi responsável pela morte de Saul e era preciso insistir que Davi nunca seria capaz disso. Se o povo estava certo, é bem possível que Davi foi responsável pela morte de Saul, agindo com o apoio dos filisteus. Visto que na guerra que Saul morreu, Davi era aliado dos filisteus, não seria estranho pensar que Davi se tornou rei de Judá dando um golpe em Saul como aliado dos filisteus. 

De todo modo, o que chegou para nós foi a versão da história conforme contada pelos apoiadores de Davi. A versão dessa narrativa é que Saul era um rebelde rejeitado por Deus, um louco e paranóico, que perseguia Davi sem motivo, achando que Davi queria tomar o trono, o que não era verdade. A Bíblia insiste que Davi nunca quis matar Saul e nunca faria isso mesmo se tivesse oportunidade. Davi era um homem humilde, nunca foi ambicioso e que acabou virando rei porque, só porque, foi a vontade de Deus. Mas nunca precisou fazer nada para conseguir o trono, foi levado a ele por Deus e pelo povo.7 

O reinado de Davi (1010-970 a.C.) foi, então, seguido pelo de seu filho Salomão (970-931 a.C.). Após Salomão, há uma divisão mais clara entre dois reinos, o do Sul (Judá) e o do Norte (Israel), embora possa ser que nunca tenha de fato havido um grande Reino verdadeiramente unificado. Duas reformas religiosas, uma no Norte e outra no Sul, foram importantes para estabelecer o culto a Javé como a religião oficial e perseguir qualquer um que adorasse outros deuses, trata-se de um movimento chamado de javismo, que gerou as reformas javistas. No Reino do Norte, a reforma javista teve como representantes os profetas Elias (870 -850 a.C.) e Eliseu (850-800 a.C.) e o rei Jeú (850-820 a.C.). No Reino do Sul, foi o rei Josias (640 -610 a.C.) o responsável por uma grande reforma que estabeleceu o culto a Javé fortemente centralizado no Templo de Jerusalém como a única forma de religião aceita8. As monarquias tiveram seu fim sendo o Reino do Norte levado cativo para a Assíria em 722a.C. e o Reino do Sul sendo levado para o cativeiro babilônico em 586 a.C.  

O exílio babilônico levantou sérias questões para os judeus: como a nação de Javé poderia ter sido derrotada pela Babilônia se os deuses babilônicos eram menos poderosos que Javé? Como Jerusalém e o Templo, a morada de Javé, pode ter sido destruída por um povo inimigo? Grande parte da Bíblia hebraica está justamente tentando responder a essas questões a partir de diferentes pontos de vistas. A Fonte Deuteronomista, que veremos melhor adiante, entendia que a desobediência, especialmente a idolatria contínua e acumulada durante a monarquia, levou a esse castigo. Profetas como Deutero-Isaías incluíram o desprezo aos pobres e outros pecados morais como causa da punição. Ezequiel se opôs à noção de que o exílio se deu por um pecado acumulado de gerações, defendendo que cada um estava sendo punido pelo seu próprio pecado. Jó e Eclesiastes, por sua vez, rejeitam a ideia de punição, propondo que o justo também sofre, e assim por diante. 

 Em 538 a.C., os hebreus foram autorizados por Ciro, rei da Pérsia que se apoderou da Babilônia, a retornarem para sua terra. Nesse tempo, o Templo foi reconstruído, a religião se reorganizou, alguns textos foram escritos refletindo esse novo contexto. É o caso de Esdras e Neemias que defendem a formação de uma nova sociedade judaica que exclua pessoas estrangeiras, o que inclui a proibição de casamentos interétnicos. Outros textos, no entanto, vão na direção oposta, sendo favoráveis ou sendo usados para defender a inclusão dos estrangeiros, como é o caso de Ester, Rute e do Trito-Isaías.

O período pós-exílico também foi importante para a formação de um novo gênero de literatura, chamada de "apocalíptica". O retorno à terra de Judá não correspondia à visão paradisíaca descrita nos profetas, de onde se desenvolveu a ideia de uma vida futura em um novo céu e uma nova terra, para além desse mundo e (Isaías 65:17) de um Juízo Final, o Dia de Javé (Sofonias 1:14). Essa literatura é nova, reflete uma noção de vida para além deste mundo que não existe em toda Bíblia hebraica. Na Bíblia Hebraica não há dualismos, não existe diabo e nem a ideia de que este mundo presente é mau e será superado por um novo mundo bom. A visão apocalíptica é uma visão bem tardia influenciada pelo pensamento persa, tanto que o livro apocalíptico por excelência da Bíblia Hebraica, por exemplo, foi o último a ser escrito, datando de 167 a.C., que é o livro de Daniel. Daniel é o único livro da Bíblia Hebraica que fala explicitamente de uma vida individual depois da morte por meio de uma ressurreição (Daniel 21:2).

Considerarei, agora, brevemente alguns outros textos que compõem a Bíblia Hebraica.  

 

V. O PENTATEUCO E OS TEXTOS DEUTERONOMISTAS  

 

Sabe-se que o Pentateuco é resultado de um conjunto de textos de diferentes fontes, o que se debate é quais são essas fontes e a datação delas. A teoria mais utilizada no estudo do Pentateuco é conhecida como Hipótese Documentária, que é a que adotarei aqui. O Pentateuco, também chamado de Torah (Livro das Instruções) é compostos por cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, originados de quatro fontes principais: Fonte Javista (J); Fonte Eloísta (E), Fonte Sacerdotal (P) e Fonte Deuteronomista (D).9  

De modo bem geral, Gênesis e Êxodo são, em sua maioria, resultados da Fonte JE, suas narrativas foram escritas pela fonte Javista e complementados pela fonte eloísta, sendo escritos majoritariamente no período da monarquia a partir do tempo de Davi. Já Deuteronômio é resultado da Fonte D, que reflete as reformas javistas de Israel e especialmente de Judá na época de Josias. Números e Levítico são, em grande parte, frutos da Fonte P (Sacerdotal). Essa fonte também fez edições e acréscimos na Fonte JE e ganhou sua forma final no período do exílio/pós-exílio babilônico.  

A diferenciação entre essas fontes se dá pela constatação de diferenças de vocabulário, gênero literário, estilo de escrita e de referências a eventos e lugares que indicam diferentes épocas de escrita. Quanto à datação, local de escrita, propósito e característica de cada fonte, temos:

 

FONTE J (Javista) 

Data: séc.X a.C.  

Local: Judeia 

Propósito: justificar a posse da terra de Canaã sob domínio do Reino davídico. 

Características: 

(1) Deus é chamado de Javé. 

(2) Considera que Deus já era conhecido pelo nome Javé desde a criação (Gênesis 2:4) 

(3) Deus é apresentando de maneira antropomórfica e como mantendo relações face a face com a humanidade (Gênesis 18) 

(4) O monte no qual Deus faz uma aliança com Moisés é chamado de "Monte Sinai". 

(5) Há um estilo que enfatiza o mundo vivo e concreto. 

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FONTE E (Elohísta) 

Data: IX a.C. 

Local: Reino do Norte  

Propósito: Complementar a fonte J. 

(1) Deus é chamado de Elohim, "deuses" no plural.  

(2) Deus é apresentando como um ser transcendente e remoto. 

(3) O Monte no qual Deus faz uma aliança com Moisés é chamado de "Monte Horebe" 

(4) Deus se comunica com os seres humanos de forma indireta por meio de sonhos e mensageiros. 

(5) Há uma ênfase em profetas e profecias. 

(7) Possui um estilo mais abstrato. 

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FONTE D (Deuteronomista) 

Data: 622 a.C. 

Local: Reino de Judá (*embora possa ser uma reedição de textos anteriores escritos no Reino do Norte) 

Propósito: regulamentar a vida agrária estabelecida e dar suporte à reforma religiosa do rei Josias. 

Características: 

(1) É um livro de discursos, não de narrativas, pretendendo apresentar três discursos de Moisés à beira do Jordão (livro de Deuteronômio). 

(2)Considera que Deus deve ser cultuado somente no Templo, de modo que outros altares devem ser destruídos (Deuteronômio 12). 

___________ 

FONTE P (Sacerdotal) 

Data: 586 a.C. 

Local: Cativeiro Babilônico  

Propósito: fornecer uma compilação final dos textos da Lei (Torah) e justificar e regulamentar práticas cerimoniais dos judeus. 

Características: 

(1) Constitui-se em um conjunto de regulamentações sobre o sistema de sacrifícios (livro de Levítico)  

(2) Apresenta leis cerimoniais sobre o sábado, as festas religiosas, a circuncisão, leis de alimentação, ordenanças sobre impureza cerimonial, etc 

(3) Apresenta narrativas para justificar certas práticas cerimoniais, como a narrativa da criação em uma semana para justificar a guarda do sábado (Gênesis 1) 

(4) Possui uma ênfase em censos, genealogias, etc. 

(5) Deus é apresentando como um ser transcendente e remoto. 

(6) Deus é descrito como um fogo habitando uma nuvem de glória 

(7) Considera que o nome Javé só foi revelado à partir de Moisés (Êxodo 6:3) 

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A Fonte Deuteronomista também é responsável pelos textos de Josué, Juízes, Rute, I Samuel, II Samuel, I Reis e II Reis. Esses textos possuem diferentes autores de diferentes épocas, mas que formam uma mesma “Escola” com ideias comuns. Assim, a Fonte Deuteronomista é uma tradição enorme, focada em Judá, no culto centralizado no Templo, na legitimação da monarquia, em leis de caráter ético de amor a Deus e ao próximo, em regulamentos sociais e na ideia de que a permanência na terra dependia da obediência do povo a Deus. Embora seja uma fonte ligada à Judá, ela também incorpora textos e tradições oriundas do Reino do Norte, mas reeditando-os de modo a representar Israel como um reino idólatra e Judá como mantendo a tradição davídica e, em certa medida, a fé em Javé, apesar de momentos de apostasia temporária. 

 

VI.  OUTROS LIVROS DA BÍBLIA HEBRAICA 

 

Um outro grupo de livros da Bíblia Hebraica são os livros proféticos. Eles se dividem em quatro grandes grupos, retratando acontecimentos relativos a quatro momentos históricos relevantes. O primeiro grupo de profetas lida com o problema da invasão Assíria que conquistou o Reino do Norte e ameaçava o Sul. Exemplos de profetas desse período são Amós, Oséias, Isaías e Miqueias. O segundo grupo dos profetas teve de lidar com a ameaça babilônica que se seguiu, exemplos de profetas desse grupo são Jeremias e Habacuque. O terceiro grupo é formado por profetas do período do exílio babilônico, cujo maior representante é Ezequiel. Por fim, o quarto e último grupo é formado por profetas do período da restauração de Judá após o exílio, são profetas desse grupo: Ageu, Zacarias, Joel e Malaquias. Importante considerar que os livros proféticos foram escritos pelo profeta e, depois, passaram por acréscimos feitos por discípulos dos profetas e redatores posteriores. Para ilustrar isso, o quadro abaixo apresenta a composição do livro do profeta Isaías: 


Outro grupo de livros são os poéticos que lidam, em grande parte, com o problema do sofrimento e do mal. Como exemplo, há o livro de Jó e de Eclesiastes que desafiam a ideia de pensar o sofrimento exílio como uma punição divina, o primeiro mostrando que o justo também sofre e o segundo apresentando uma visão pessimista de que tudo acaba com a morte e no final não há diferença entre o justo e o ímpio. Outro exemplo de obra poética é o livro de Salmos, que compila orações e cânticos de diferentes épocas, desde textos da monarquia e textos pós-exílios. Há, também, o livro de Provérbios, uma obra de sabedoria ética universal, não necessariamente dependente de pressupostos religiosos e o livro dos Cânticos, uma obra de canções eróticas. Por fim, há livros históricos escritos no período da restauração após o exílio, como I Crônicas, II Crônicas, Esdras, Neemias.  Por fim, como já considerado, há as sementes de uma literatura apocalíptica, como o Trito-Isaías, Daniel e as noções de do Juízo Final no Dia de Javé presente em Joel e Sofonias, por exemplo.

Pode-se falar ainda de uma Fonte R, que podemos chamar de "Redator Final", que pode ter compilado os textos da Bíblia Hebraica e feito algumas revisões e interpolações. Para que esse texto não fique muito longo, de modo que sirva apenas de introdução geral para a leitura e compreensão da Bíblia hebraica, não darei aqui detalhes sobre cada um dos livros da Bíblia Hebraica, recomendo profundamente a leitura de toda a Bíblia hebraica tendo em mente todo o contexto histórico apresentado neste artigo. Sugiro, especialmente como referência a Bíblia de Jerusalém, cujas notas e comentários estão em conformidade com a abordagem acadêmica dos textos bíblicos.  

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

 

Espero que este texto forneça um contexto geral para a leitura da Bíblia Hebraica. É importante pontuar, novamente, que esta é uma das formas de ler a Bíblia e que não invalida outras leituras. O objetivo da interpretação acadêmica histórico-crítica é simplesmente determinar o sentido histórico-cultural do texto, não invalidar outros significados e outras formas de interpretação nem dizer que é superior a outras formas de abordar o texto.  

Os textos da Bíblia Hebraica ganharam sentidos diversos ao longo da história, foram usados como chaves para interpretar outras realidades históricas diversas do contexto original de produção, e recebeu, também, por diferentes tradições, significações místicas e leituras teológicas. Essas outras leituras são legítimas, a hermenêutica feita aqui não tem como objetivo refutar essas outras leituras nem se apresentar como a interpretação que contém a verdade sobre o texto. Trata-se, ao contrário, de uma forma de abordar o texto a partir de uma metodologia histórico cultural crítica, que toma como pressuposto a Bíblia Hebraica como produto de sujeitos concretos em suas condições materiais e históricas de existência. 

Mais realmente, este texto não apresenta uma interpretação exegética do texto, mas uma contextualização histórica que sirva de prolegômeno para a leitura da Bíblia Hebraica. A Bíblia Hebraica trata-se de um livro revolucionário, nascido das necessidades históricas de um povo e que deu a eles uma chave para interpretar suas vivências. Ela forneceu um quadro para entender como Javé poderia ser o Deus de um povo que foi subjugado por outras nações e deu fé e esperança para que a religião dos judeus sobrevivesse mesmo quando a nação não estava mais em sua terra e deu a essa crença recursos para não desaparecer mesmo quando os hebreus foram dominados por outros impérios. 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 


1 HAYES, Christine. Introduction to the Old Testament (Hebrew Bible): Lecture 1. The Parts of the Whole. Yale Courses. Disponível em: https://youtu.be/mo-YL-lv3RY 

2CARMO, Mateus. A verdadeira história do Êxodo. Canal Youtube: Caminhos do Imaginário. Disponível em: https://youtu.be/S7MUreft_sw 

3 MURDOCK, D. M. Did Moses Exist?: The Myth of the Israelite Lawgiver. Stellar House Publishing, 2014 

4 HAYES, Christine. Introduction to the Old Testament (Hebrew Bible): Lecture 8. Exodus: From Egypt to Sinai (Exodus 5-24, 32; Numbers). Yale Courses. Disponível em: https://youtu.be/kS17dLuTPd0 

5 HAYES, Christine. Introduction to the Old Testament (Hebrew Bible): Lecture 12. The Deuteronomistic History: Life in the Land (Joshua and Judges). Yale Courses. Disponível em: https://youtu.be/v07NFEstPjc 

6 HAYES, Christine. Introduction to the Old Testament (Hebrew Bible): Lecture 7. Israel in Egypt: Moses and the Beginning of Yahwism (Genesis 37- Exodus 4). Yale Courses. Disponível em: https://youtu.be/h_UmuEBmS5k 

7BERSOT, Cláudio. Davi, a vida real de um herói bíblico, de Joel Baden. Disponível em: https://youtube.com/playlist?list=PLkw227SGTpg6s9lowxp9BjlEO0SXIdqTi 

8 RÖMER, Thomas. A origem de Javé: o Deus de Israel e seu nome. São Paulo: Paulus, 2016. 

9 HAYES, Christine. Introduction to the Old Testament (Hebrew Bible): Lecture 5. Critical Approaches to the Bible: Introduction to Genesis 12-50. Yale Courses. Disponível em: https://youtu.be/KBSOn0MSrk8 

 

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