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MÊNON - PLATÃO (RESENHA)

 

No Mênon, é discutida a questão sobre se a virtude é algo que se ensina. Para tanto, Mênon levanta três possíveis hipóteses. A primeira é a de que a virtude é uma coisa que se ensina, a segunda de que a virtude se adquire por meio do exercício e a terceira de que a virtude é natural do ser humano. No entanto, para investigar essa questão, é preciso primeiro responder o que vem a ser a virtude. A primeira tese proposta por Mênon é a de que parece óbvio que podemos definir virtude do homem como “ser capaz de gerir as coisas da cidade, e, no exercício dessa gestão, fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, e guardar ele próprio de sofrer coisa parecida” (Mênon, 71e). É interessante que essa resposta seja dada com segurança como se fosse algo óbvio e isso nos ajuda a pensar nas próprias etapas do processo pelo qual a alma rememora aquilo que ela já sabe.

Ao ser primeiramente interrogada, a alma afirma com muita certeza saber aquilo sobre o qual se pergunta. É o momento em que a alma está segura de estar de posse do conhecimento, ela acha que sabe, é sujeito de um suposto saber. Todavia, à medida em que é colocada sobre novas interrogações, a alma percebe que aquilo que pensava saber realmente não é verdadeiro. Nesse momento, ela se depara com uma aporia, percebe que o caminho que inicialmente decidiu seguir com tanta segurança não a leva a lugar algum. Mas nesse momento houve um progresso, a alma agora sabe que não sabe e, por isso, está melhor do que quando supunha saber o que não sabia. Podemos lembrar aqui da Apologia de Sócrates, em que o sábio se revela justamente aquele que é capaz de dar-se conta de sua própria ignorância. Só assim a alma pode, então, estar em condições de resgatar o conhecimento que ela já possui dentro de si. A humildade abre o caminho para o conhecimento.

No entanto, voltemos à tese inicialmente proposta por Mênon. É preciso observar que ele fala da “virtude do homem”. A virtude do homem aqui não se refere à virtude do “humano”, mas do homem como do sexo masculino. Está naturalizado aqui a noção de que homens e mulheres possuem, por natureza, diferentes funções e que a realização da função própria de cada gênero é a virtude. O homem nasceu para governar, para gerir. Se esse é o caso do homem, diferente é o da mulher. O homem pertence ao espaço do público, a mulher ao da casa. O homem administra a cidade, a mulher cuida do lar. Para tanto, a mulher deve ser, para Mênon no início do diálogo, submissa ao seu marido. Há, todavia, não só uma distinção de funções por sexo, mas também por idade e de posições sociais. A função da criança difere da do adulto, a do senhor difere da do servo. A virtude, por sua vez, consiste em cada um cumprir, segundo seu sexo, idade e posição social, a função que lhe cabe.

É interessante lembrar aqui que na República, Sócrates aparecerá como um defensor de que, embora de fato a natureza da mulher seja diferente da do homem e ela seja mais fraca do que ele, ao menos no que diz respeito às funções dentro de uma cidade, não há nenhuma atividade que concerne à administração da cidade que seja própria somente da mulher ou do homem; ao contrário, as aptidões naturais estão igualmente distribuídas entre ambos sexos e seria próprio da natureza que a mulher, do mesmo modo que o homem, seja participante em todas as atividades. A resposta de Mênon ao distinguir virtude do homem em oposição à virtude da mulher pode soar, portanto, estranha não só aos olhos do homem moderno de mentalidade mais progressista, mas também da própria mente perspicaz do brilhante Sócrates.

Sócrates vai se opor a uma compreensão da virtude assim repartida, como se houvesse vários tipos de virtudes diferentes uma para cada sexo, faixa etária e posição social. Sócrates está em busca da virtude em si pensada em seu caráter de unidade, mas Mênon responde com uma noção mutilada de virtude. Embora haja de fato muitas virtudes, a interrogação filosófica deve buscar o que é a virtude em si, o caráter único da virtude que subsiste ainda que ela assuma variadas formas. Portanto, é preciso pensar na virtude por meio da qual todos os seres humanos são virtuosos, não importa se estamos falando de um homem ou mulher, criança ou adulto, senhor ou escravo. Cada qual pode até mesmo realizar a virtude à sua própria maneira, mas o foco não deve estar nessas diferentes formas pelas quais a virtude pode ser realiza, mas na virtude por ela mesma, a virtude que a todos pertencem sem distinção.

Desse modo, o diálogo prossegue, pois, na tentativa de fornecer uma definição da virtude em geral. Uma definição geral de virtude precisa, no entanto, ser aplicável às variadas formas de manifestação da virtude, sem, no entanto, se confundir com nenhuma dessas formas particulares. Também precisa se adequar a diferentes coisas que são reconhecidas como virtude, tais como a coragem, a prudência e a sabedoria. É necessário, assim, uma definição geral que não exclua nenhuma dessas múltiplas virtudes, mas que ao mesmo tempo perpasse todas elas. Aliás, só se pode aplicar o mesmo nome “virtude” a todas essas múltiplas virtudes porque todas elas partilham de um significado comum ou de uma mesma forma ideal ou essencial. Há, pois, unidade na multiplicidade.

Na busca, pois, de uma definição baseada na unidade da virtude, Mênon oferece como proposta seguinte tese de que a virtude consiste em desejar as coisas boas e ser capaz de alcança-las. Daí surge a questão se o homem deseja o que é mau. Ora, parece que todo homem quando escolhe algo que é mau o faz não pelo mal em si, mas porque esse mal aparece como uma bondade aparente ou como um meio para algo que é proveitoso. Daí se conclui que todo homem deseja naturalmente o que é bom e se busca o mal não o faz por ele mesmo, mas porque visa algo que considera um bem. Buscar o bem está relacionado a buscar a felicidade e se o mal torna uma pessoa miserável e infeliz e, dado que o homem busca naturalmente a felicidade, então não se pode dar que alguém realmente busque o mal por si mesmo. Nada é realmente desejado por alguém que não seja a felicidade. Seja o que for que alguém deseje, ou se apresenta como a felicidade em si ou como um meio para ela.

Portanto, não se pode definir virtude como meramente desejar o que é bom, porque de fato todo homem deseja somente aquilo que é bom. A definição de Mênon, no entanto, acrescenta que a virtude está, não apenas no desejar, mas no conseguir. O virtuoso seria aquele que está em posse do poder de fazer o que é bom. Não se trata, pois, apenas de querer as coisas boas, mas de ser capaz de alcança-las. Logo, se o desejar o que é bom é algo que todo homem, mesmo os maus, já o faz, não há porque incluir o desejo na definição da virtude. Poderíamos, então, nos restringir a definir virtude como o poder de fazer o que é bom.

No entanto, uma pessoa pode ter o poder de alcançar coisas boas, tais como a riqueza e a saúde. Todavia, o indivíduo em posse dessa capacidade pode obter tais coisas por meios ilícitos. Uma pessoa pode se tornar rica e ter acesso aos melhores médicos, por exemplo, mas usando de engano ou apenas tendo a sorte de ter herdado uma herança que não conseguiu por sabedoria e esforço próprios. Sendo assim, definir virtude como meramente o poder de conseguir coisas boas é insuficiente, porque coisas boas podem ser alcançadas de maneira injusta. Seria preciso, portanto, acrescentar à definição o fato de que tais coisas devam ser alcançadas por meios justos. O que define a virtude não é o poder de alcançar coisas boas, mas de o fazer com justiça.

No entanto, o que é a justiça? Se respondermos que a justiça é uma das virtudes ao lado de outras, então ainda não estamos definindo a virtude em geral, pois voltamos ao problema de pensar nas múltiplas formas de virtude ao invés da virtude em si. Chegamos, pois, naquela etapa do processo de rememoração da alma em que ela se depara com a aporia. Até aqui parecíamos estar seguindo um caminho seguro, começamos por uma definição de virtude que foi ampliada por sucessivos aprimoramentos. Mas, agora, justamente quando parecíamos alcançar a definição geral de virtude, retornamos ao mesmo problema do princípio: apresentar a virtude despedaçada, considerar uma de suas formas particulares ao invés dela mesma. Mas como já considerado, a aporia revela um progresso no qual a alma está em melhor condição do que no início da investigação.

A aporia não é algo ruim. À primeira vista ela pode parecer uma tentação ao ceticismo, um momento para desanimar da possibilidade de alcançar a verdade. Mas, ao contrário, a aporia é o fio condutor para alcançar a verdade que habita dentro de nós, que se encontra na essência de nosso ser, que nos faz lembrar de nossa verdadeira origem para além das limitações desta existência. A saída da aporia não é o ceticismo, mas a rememoração, é lembrar-se de verdades originárias com as quais a alma já esteve em contato antes, com as ideias que ela contemplava em uma vida anterior a esta. A aporia, longe de ser a desistência da possibilidade do conhecimento, é um passo importante no caminho da contemplação da verdade.

A possibilidade dessa rememoração também é uma demonstração da imortalidade da alma. Sua existência não se limita a este corpo, que não é senão uma das roupas das quais a alma se reveste. A morte não é o fim da vida da alma. A alma não pode ser aniquilada, ela não é composta de partes para que possa se decompor, não é suscetível de se corromper. Aqui, Sócrates recorre aos mitos e poetas, os quais nos apresentam a alma como imortal. O mito tem o importante papel de falar aos afetos, algo que o argumento racional pode não ser capaz de fazer. Mas por isso, ele pode desempenhar a função de ensejar o argumento onde a lógica encontra suas fronteiras. O encanto produzido pelo mito desperta certos afetos de modo a fortalecer o caráter persuasivo e ser elucidativo e os mitos reforçam, assim, a defesa da imortalidade da alma. A alma, pois, não está limitada a essa existência, já existia antes em companhia das ideias.

Essa tese é demonstrada por Sócrates usando um escravo como exemplo. Sem precisar explicar ou ensinar algo ao escravo, ele o ajuda a despertar um conhecimento que já guarda em seu interior. Poderíamos pensar que a um escravo falta instrução, logo ele está desprovido de conhecimento. Mas Sócrates revela de maneira extraordinária que mesmo o escravo tem uma alma e tem a verdade habitando dentro de si. Vemos, nesse processo, novamente as três etapas da rememoração. A primeira etapa é a segurança de um suposto saber, a segunda é o reconhecimento da própria ignorância diante da aporia e a terceira consiste na recordação propriamente dita de um conhecimento que a alma já carrega dentro de si. 

O escravo é questionado sobre como se duplica a área de um quadrado. Considere, por exemplo, um quadrado de lado 2, a área do quadrado é conseguida elevando ao cubo a medida de seu lado, isto é 22 , de onde se obtém uma área de 4 cm2 . O escravo responde com segurança que se pode duplicar a área de um quadrado duplicando também a medida de seus lados. Logo, cada lado do quadrado é multiplicado por 2, de onde se tem 2x2= 4. O escravo então conclui que um quadrado de lado 4 cm possui o dobro da área de um quadrado de lado 2 cm. Mas isso está equivocado. Aquilo que se supõe saber com tanta certeza, ao ser alvo de interrogações, revela-se falso. O dobro da área de um quadrado de lado 2cm é, na verdade, 8 cm2, que é a multiplicação de sua área por 2 (4x2=8). Um quadrado de lado 4, por outro lado, possui área 16 cm2 (4x4=16). No entanto, um quadrado de área 16 cm2 possui o quádruplo e não o dobro da área de um quadrado de lado 2cm. Estamos diante, pois, de uma aporia.

Duplicar a medida da área de um quadrado significa quadruplicar sua área e não a dobrar. A maneira correta de duplicar a área de um quadrado não é duplicando seus lados, mas traçando um quadrado em diagonal. O escravo consegue chegar à resposta correta sem que ninguém o ensine, mas apenas o interrogue, uma prova de que ele já trazia esse conhecimento dentro de si e só precisava gradualmente resgatá-lo. A aporia ocorre quanda pessoa se sente sem saída. Ela está tentando achar a resposta, mas ao ver que se equivocou, percebe que se equivocou. Mas é com essas aporias que se pode mover adiante. A pessoa que acha que sabe e está segura de si se mantém numa crença ilusória, mas aquele que experimenta a própria ignorância se move em direção ao conhecimento verdadeiro.

            A rememoração é uma evidência da imortalidade da alma, assim, pode ser formulado o seguinte argumento. A alma é capaz de recordar certos conhecimentos sem que ninguém a tenha ensinado nesta vida; de onde se conclui que ela só pode os ter adquirido em uma vida passada, o que nos leva a crer que ela é imortal. Diante disso, parece que podemos pensar melhor sobre a questão que abriu o diálogo “É a virtude algo que se ensina?”. Se respondermos que a virtude é algo que se ensina, era de se esperar que existissem mestres da virtude. Ademais, pais virtuosos que educam seus filhos, teriam os filhos mais virtuosos. Mas isso não é o que se verifica na realidade. Por outro lado, a virtude não pode ser algo meramente natural, senão poderia se identificar as crianças naturalmente virtuosas desde cedo e separá-las das más influências.

            Se há razões para pensar que a virtude não é nem apenas um conhecimento que se ensina nem algo natural, o que resta? A grande questão é perguntar como os homens se tornam bons. Sócrates postula a tese de que talvez o que torna os homens bons seja a opinião correta. A opinião correta pode ser pensada como uma verdade sobre algo e que leva a ações virtuosas, mas as opiniões corretas podem ser encadeadas de modo sistemático, e isso é o conhecimento ou ciência. A opinião verdadeira guia as ações corretas. A virtude é, portanto, uma feliz opinião. Essa opinião se encontra naqueles que são guiados pelo divino, de modo que é por concessão divina que os homens se tornam virtuosos.


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