FILOSOFIA DE MICHEL HENRY (RESUMO)


O que se segue é um resumo do verbete “Michel Henry” presente na Stanford Encyclopedia of Philosophy. O verbete é de autoria de Frédéric Seyler. Assim como o verbete, este resumo se divide em quatro partes: (i) vida e obra; (ii) fenomenologia da vida e o conceito de Afetividade transcendental; (iii) estética; (iv) ética e filosofia política. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.


I. VIDA E OBRA

 

Michel Henry nasceu no dia 10 de janeiro de 1922 na cidade de Haiphog na então Indochina Francesa. Perdeu o pai na infância em 1929, assim, sua família mudou-se para Paris. O jovem Henry, morando em Paris, ingressou na La Résistance, movimento de luta contra os regimes nazifascistas durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1945, finalizou seus estudos filosóficos, apresentando um estudo sobre a felicidade em Spinoza. Em 1963, publicou sua tese de doutorado sobre a “Essência da Manifestação”. Henry tornou-se professor titular da cadeira de Filosofia da Universidade Paul Valéry, Montpellier III em Montpellier, onde permaneceu professor até sua aposentadoria em 1982. Faleceu em 3 de Julho de 2002 aos 80 anos.


II. FENOMENOLOGIA DA VIDA E O CONCEITO DE AFETIVIDADE TRANSCENDENTAL


Michel Henry faz uma crítica à fenomenologia clássica por reduzir todos os fenômenos ao âmbito da intencionalidade. Ele argumenta que a maneira como os fenômenos aparecem para nós não pode se restringir à “consciência de alguma coisa”. Pelo contrário, para Henry, a consciência intencional se fundamenta em um modo mais fundamental de aparecer que é anterior à e diferente da intencionalidade. Esse modo de aparecimento pré-intencional é denominado pelo filósofo como um autoaparecimento primordial, um modo de doação que aparece a si mesmo.

A questão que se coloca é que para a fenomenologia clássica o fenômeno é marcado pela intencionalidade, isto é, ele faz ver algo que não é ele mesmo, algo que é marcado pela diferença. Se isso é assim, tal abordagem teria a limitação de não explicar como a própria intencionalidade se mostra ou como o próprio aparecimento se revela. Se o próprio aparecimento deve aparecer, então, a fim de evitar uma regressão infinita, tal aparecimento teria que ser um autoaparecimento.

O autoaparecimento deve ser, assim, não-intencional e, uma vez que a intencionalidade está ligada à visibilidade no sentido geral da percepção (ou representação), tal autoaparecimento deve ser invisível. Em outras palavras, a origem e a essência da manifestação é a "Arqui-revelação", uma revelação que se revela a si mesma. Essa autorrevelação é também uma autoafetividade que experimenta a si mesma. Ao autoaparecimento que faz ver a si mesmo, que revela a si mesmo e que se afeta a si mesmo, Henry dá o nome de Vida. Em Henry, "vida" não tem, portanto, nenhum significado biológico, mas exclusivamente fenomenológico, o que significa que se refere a este modo fundamental de aparecer que é, como autoaparecendo, radicalmente distinto da natureza da intencionalidade.

Henry entende sua fenomenologia como um afastamento radical do monismo, na medida em que defende a “duplicidade do aparecer”. Se um autoaparecimento não intencional é necessário para que a intencionalidade seja possível, então existem de fato dois modos de aparecer: (i) o aparecimento intencional: aquele que opera por meio da diferença e que constitui o objeto intencional como transcendente; (ii) o aparecimento não-intencional: aquele que é dado em pura imanência antes de qualquer divisão sujeito-objeto.

O fenomenólogo francês também usa o termo “afetividade transcendental” para caracterizar este autoaparecimento próprio de seu conceito fenomenológico de vida. Podemos dizer que a Vida é: (i) transcendental: no sentido de que é a condição de possibilidade de todo fenômeno possível; (ii) patética:  porque a experiência de si que caracteriza o vivente é uma forma de sofrimento primordialA vida, na medida em que afeta a si mesma na experiência que faz de si, é autoaderente. Alegria e sofrimento são as tonalidades fundamentais que expressam o fato de que a vida não pode escapar de si mesma, que está irremediavelmente ligada a si mesma.

A Vida é comum a todos os viventes e, portanto, transcende os viventes enquanto permanece ao mesmo tempo imanente. É esta Vida que é o fundamento dos viventes, por isso, o nosso “eu” não é seu próprio fundamento. É por essa razão, que a autoafetividade está, para Henry, essencialmente ligada a uma forma de passividade: a subjetividade é caracterizada por uma dimensão de sofrimento, ou seja, de pathos. Os poderes subjetivos do “eu posso”, portanto, sempre se referem a uma impotência profunda e original de uma vida que não pode escapar de si mesma.

Os viventes são gerados na vida, por isso, eles são nascidos da Vida. Essa relação dos viventes com a Vida é denominada, pelo filósofo, como nascimento transcendental. O nascimento transcendental, que é idêntico ao nascimento da subjetividade, não pode ser entendido com referência ao mundo. Por isso, nós, viventes, não devemos ser pensados como “ser-no-mundo" (Heidegger). Isso significa que a subjetividade transcendental ou ipseidade não pode ser engendrada por algo de natureza inteiramente diferente (a exterioridade do mundo), mas deve ser engendrada no seio da própria autoafetividade da Vida.

A Vida como capaz de engendrar a forma de ipseidade é, para Henry, a Vida absoluta, que transcende cada ser vivente individual. Ao engendrar cada vivente individual, a Vida absoluta engendra o próprio “Si vivente”. Esse primeiro Si vivente gerado no seio da Vida é a Ipseidade original. Na linguagem do Cristianismo, a Vida absoluta é Deus e a forma original de Ipseidade (ou “Arqui-ipseidade”) é Cristo como o “Primeiro vivente”. Cristo é o Verbo, o Primeiro Si vivente, gerado eternamente no seio da Vida absoluta.


III. ESTÉTICA


Para a fenomenologia, o mundo não se limita a qualquer mundo existente, mas inclui em si a possibilidade de criar novos campos de experiência para o humano. A arte seria assim tal possibilidade, na medida em que o artista supera a “facticidade habitual” e estabelece através da obra uma dimensão do ser “absolutamente específica” e “original”, a saber, a própria condição de possibilidade do mundo. A condição de possibilidade do mundo revelada pela arte é o aparecimento puro que dá visibilidade às coisas. Assim, ao criar “um mundo”, a arte revela precisamente esta forma de criar “um mundo”, a aparecimento original. O aparecimento original a que a arte se refere é a auto-manifestação imanente da vida dada por meio da autoafetividade ou do pathos.

A arte apresenta algumas formas particulares. Um exemplo dessas formas é a música, que consiste na reprodução imediata de uma Vontade que está “fora do mundo”, que é a afetividade. Outras formas são a pintura, a dança, a arquitetura e a literatura. Todas essas formas de arte podem ser entendidas uma intensificação da vida enquanto pathos imanente. A vida, nesse sentido, entretanto, pode ser esquecida e sua força pode ser diminuída.


IV. ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA


Henry atribui explicitamente uma função ética à arte. Isso envolve dois conceitos essenciais: (i) o do “autocrescimento” da vida: a vida não é imutável, mas consiste num movimento que se move a si mesmo, de modo que a subjetividade pode experimentar uma intensificação de si mesma por meio da arte; (ii) o do vínculo entre o vivente e a Vida absoluta: a arte funciona como “lembrança” do vínculo esquecido que existe entre cada vida individual e a Vida absoluta. A Ética, portanto, consiste na própria lembrança desse vínculo entre os viventes e a Vida por meio da superação do esquecimento de nossa condição de filhos da Vida absoluta.

Por causa do esquecimento da Vida na cultura contemporânea, encontramo-nos diante de uma “barbárie”. A barbárie significa que dentro de um contexto sóciohistórico particular a necessidade de autocrescimento subjetivo não é mais adequadamente satisfeita, e a tendência para uma ocultação do vínculo entre a vida viva e a vida absoluta é reforçada. Tal barbárie ocorre na cultura contemporânea, cuja característica dominante é o triunfo da ciência galileana e seus desenvolvimentos tecnológicos. A ciência exclui de seu campo toda a afetividade e subjetividade e, assim, exclui a própria vida.

Mas o conceito de “barbárie” não se limita a uma crítica da ideologia científica e seu paradigma de objetificação. Mais importante, ele visa as implicações de tal ideologia no nível da práxis cotidiana no que Henry chama de “práticas de barbárie”A barbárie se manifesta na mídia que emburrece e na destruição da Universidade que, ao deixar de produzir cultura, passa a servir ao projeto técnico-científico. O princípio subjacente da “barbárie” é o de uma fuga da subjetividade para os processos anônimos dominados pela tecnociência, que são então usados gradualmente para substituir a práxis viva.  No entanto, a “barbárie” é um projeto impossível de realizar, porque a vida permanece ela mesma mesmo por meio de formas de fuga e negação que Henry não hesita em caracterizar como “loucura”.

O que está em jogo para a ética da afetividade é o reconhecimento do vínculo entre a vida individual e a Vida absoluta. Henry considera que a negação de Deus no mundo da tecnociência está implícita na negação do humano como Ipseidade vivente, uma vez que “práticas de barbárie” prejudicam a necessidade subjetiva de ação, na qual o ser humano é capaz de experimentar a vida como um absoluto. Tal negação só pode ser superada quando o eu deixa de se preocupar consigo mesmo como ego mundano e redescobre o que antes era esquecido, ou seja, a Vida absoluta, vivendo o amor infinito que o absoluto tem para si. Esta restauração da relação original com a Vida absoluta é o “novo nascimento”.

A crítica de Henry à cultura contemporânea também levanta a questão das condições sociais e seu impacto no exercício das potencialidades subjetivas. Tanto para a economia quanto para a política, a crítica normativa de Henry visa o esquecimento e a ocultação da vida como uma gênese transcendental na qual a organização política e a economia estão enraizadas. Política e economia são ambas superestruturas que estão necessariamente ligadas à representação e medição, mas sua legitimidade vem do que é pré-político e pré-econômico, ou seja, a vida transcendental. Na visão de Henry, a modernidade vira essa gênese real de cabeça para baixo: as superestruturas parecem ter se tornado autônomas e, ao contrário, tendem a impor suas leis à vida imanente.

No capitalismo tecnocientífico e ainda mais no totalitarismo, a tendência para uma (embora ilusória) autonomização das superestruturas torna-se extrema. Assim, no nível político, o vínculo religioso com a vida absoluta pode cair no esquecimento. Nesse caso, é a conquista dos direitos humanos que acaba por ser ameaçada pela redução do humano àquilo que a exterioridade científica é capaz de medir e enunciar. O cerne da filosofia política de Henry reside, portanto, no princípio segundo o qual o político só é legítimo como mediação para o que é pré-político - a saber, a vida, tanto individual quanto comunitária.

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Referência: Seyler, Frédéric, "Michel Henry", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2020 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2020/entries/michel-henry/>.


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