A BÍBLIA E A ESCRAVIDÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar a escravidão na Bíblia de forma histórica e acadêmica, abordando três dimensões complementares. A primeira parte examina a escravidão em Êxodo 21, destacando o contexto do Código da Aliança, suas normas sobre escravos hebreus por dívida e as limitações legais quanto à proteção desses indivíduos. A segunda parte investiga as leis reformistas sobre escravidão, presentes em Deuteronômio 15 e Levítico 25, evidenciando como a legislação posterior ampliou direitos, introduziu medidas de dignidade e reintegração social e estabeleceu ideais utópicos que refletiam preocupações religiosas e sociais. Por fim, a terceira parte aborda a escravidão no Novo Testamento, enfocando a continuidade da instituição no contexto greco-romano e a maneira como os textos neotestamentários orientam a conduta dos escravos, revelando a persistência da prática sem as proteções legais observadas na legislação hebraica.
I. O CÓDIGO DE ESCRAVIDÃO DE ÊXODO 21
O capítulo 20 a 23 do livro do Êxodo compõe o chamado Código da Aliança ou Primeiro Código (Fonte E - Eloísta - Século VIIIa.C.), distinguindo-se do Segundo Código, encontrado no livro de Deuteronômio (Fonte D - Deuteronomista). O Código da Aliança (Êxodo 20:22–23:33) representa uma variante regional do direito consuetudinário do antigo Oriente Próximo, possuindo muitas estipulações com paralelos em textos cuneiformes e hieroglíficos. O propósito desse código é duplo e interligado: por um lado, inclui as leis de caso (mishpatim), localizadas principalmente em Êxodo 21:1–22:16, que tratam de questões legais e criminais por meio de construções do tipo “se… então”; por outro, abrange leis cultuais e sociais, presentes no início e no final do código, que orientam a adoração, promovem a coesão social e abordam temas como xenofobia, intolerância religiosa e a proibição de alianças com nações estrangeiras.
O capítulo 21 do livro do Êxodo apresenta a regulamentação da escravidão no contexto hebraico antigo, aplicando-se especificamente aos escravos hebreus vendidos devido a dívidas. Diferentemente, a escravidão de estrangeiros era considerada perpétua, refletindo distinções legais e sociais entre membros da comunidade e estrangeiros. A lei de Êxodo 21, nesse sentido, mostra-se, em alguns aspectos, menos humanizada que outros códigos contemporâneos do Antigo Oriente Próximo, como o Código de Hamurabi. Este, por exemplo, estabelecia que a escravidão por dívida duraria três anos, com libertação no quarto, enquanto Êxodo prevê a libertação apenas no sétimo ano, e apenas para homens (Êxodo 21:2,7). A lei 117 do Código de Hamurabi diz: “Se alguém não conseguir pagar uma dívida e vender a si mesmo, sua esposa, seu filho ou sua filha por dinheiro, ou entregá-los para trabalho forçado, eles deverão trabalhar por três anos na casa do homem que os comprou, ou do proprietário, e no quarto ano serão libertos.”
Assim, a ideia de que essa legislação representava uma “humanização” das normas da época é contestável. Além disso, a lei de Êxodo 21 não oferecia a mesma proteção às mulheres escravizadas, evidenciando um caráter seletivo e patriarcal das disposições legais. A suposta “voluntariedade” da escravidão, que o texto pode parecer sugerir, deve ser considerada com cautela. A escolha de se submeter à escravidão, quando ocorria, resultava da ausência de alternativas para saldar dívidas, não de uma decisão livre. Passagens como 1 Reis 17:8-16 e 2 Reis 4:1-7 ilustram situações concretas em que viúvas temiam que seus filhos fossem vendidos ou que elas próprias fossem forçadas à escravidão para saldar débitos:
"Certa mulher, que era viúva de um dos membros de um grupo de profetas, foi falar com Eliseu e disse: — O meu marido morreu. Como o senhor sabe, ele era um homem que temia a Deus, o Senhor. Mas agora um homem a quem ele devia dinheiro veio para levar os meus dois filhos a fim de serem escravos, como pagamento da dívida." (2 Reis 4:1)
Essa dinâmica evidencia que a “escolha” era, na prática, condicionada pela necessidade extrema, e não por livre vontade. Outro ponto relevante envolve os versículos 20-21 de Êxodo 21, que tratam do castigo físico do escravo. O texto determina que o mestre seria punido apenas se o escravo morresse no mesmo dia em decorrência da punição. Essa regra não implica a absolvição de toda forma de correção; ao contrário, reflete um padrão de regulamentação do potencial de abuso. O uso da vara como instrumento de disciplina aparece como legítimo também em outras passagens bíblicas, como Isaías 9:3 e Provérbios 10:13; 13:23; 19:25; 22:15; 23:13-14; 26:3; 29:19. Considere em especial: “Não adianta nada corrigir um escravo somente com palavras porque, mesmo que ele entenda, não obedecerá.” (Provérbios 29:19)
A legislação do Antigo Oriente Próximo, de forma geral, considerava que prejudicar o escravo de outro constituía crime contra o proprietário e não contra o próprio escravo (Hamurabi §§199, 213, 217, 223, 231; Leis hititas §§8, 12, 14, 16, 18). No entanto, registros de Nuzi indicam que, em certas circunstâncias, escravos podiam processar mestres abusivos. De maneira semelhante, o Código de Hamurabi (§§115-116) protege explicitamente o escravo por dívida (nipaitum) da violência, diferindo do escravo totalmente não livre (wardum). Isso sugere que a lei de Êxodo poderia refletir proteção relativa ao escravo, porque embora sem liberdade plena, ele mantinha status jurídico diferenciado por ser um hebreu que foi um homem livre que não conseguiu saldar suas dívidas e estava nessa condição de modo temporário.
Um aspecto frequentemente debatido refere-se ao trecho em que o texto indica que o escravo “sobrevive um ou dois dias” (v.21) após castigos severos. A leitura de que isso significaria apenas recuperação temporária é improvável. O hebraico distingue claramente entre “morrer debaixo da mão” e “permanecer, subsistir” (verbo md em contraste com mwt), e o termo yôm raramente significa “dentro de um dia”. Assim, o texto provavelmente indica que, caso a morte não seja imediata, o mestre não seria responsabilizado, enquanto, se fosse um homem livre, a recuperação precisaria ser verificada publicamente. Dessa forma, a proteção do escravo era inferior à do homem livre, oferecendo ao mestre um benefício da dúvida.
Quanto à punição do mestre em caso de morte do escravo (v.20), estudiosos divergem: alguns interpretam que a lei distingue homicídio culposo (escravo) de assassinato (homem livre); outros consideram a possibilidade de execução ou punição capital aplicada pelo tribunal ou comunidade, dado que o escravo não possuía parentes para vingar sua morte. A expressão “pois é dinheiro seu” (v.21) reforça a noção de que o escravo era propriedade; sua morte, dias após o castigo, constituía perda financeira, não apenas moral. Portanto, o abuso resultaria na perda do valor monetário do escravo – a propriedade do escravo é o pagamento da indenização. Aqui fica claro que o escravo era visto realmente como uma propriedade.
Importante destacar que tais proteções de Êxodo 21 se aplicavam exclusivamente aos escravos hebreus por dívida. Estrangeiros, criados, cativos de guerra e ladrões transformados em escravos não gozavam desses direitos. Outro caso de escravidão presente na fonte E, por exemplo, é o de escravas sexuais cativas de guerras, como em Números 31:17-18: “Agora, portanto, matai todas as crianças do sexo masculino. Matai igualmente todas as mulheres que tiveram relações sexuais. Não conserveis com vida senão as meninas e as moças virgens; elas vos pertencem”.
II. LEIS REFORMISTAS DE ESCRAVIDÃO
No código deuteronomista e em levítico encontramos reformas nas leis de escravidão. Quanto a Deuteronômio, trata-se de uma legislação reformista do século VI a.C., que busca ampliar as proteções legais para grupos vulneráveis, como órfãos, viúvas e escravos israelitas. No capítulo 15, o código deuteronomista reformula a regulação de Êxodo 21, estendendo a lei do sétimo ano para incluir tanto homens quanto mulheres, estabelecendo a obrigação de prover recursos ao escravo libertado e fundamentando essa prática na memória do Êxodo, reforçando a dignidade, a reinserção social e a solidariedade entre irmãos israelitas (“ahîkā”). Além disso, a lei deuteronomista inclui a proteção de não devolver um escravo fugitivo ao seu senhor (Deuteronômio 23:15-16), uma inovação que não existia nas legislações anteriores. Essas leis devem ser vistas como reformas séculos depois do Código de Êxodo; antes da reforma deuteronomista, um escravo fugitivo não contava com essa proteção legal.
Em relação à lei de Levítico 25, esta é ainda mais tardia e complexa. Trata-se de uma legislação sacerdotal do período exílico, que apresenta uma visão idealizada das relações sociais e econômicas de Israel. O Ano do Jubileu e a figura do sākîr tôšāb (trabalhador residente) indicam que o legislador sacerdotal (Fonte P-H - Fonte Sacerdotal do Código de Santidade - Levítico 17-26) procurava regular a escravidão e a posse de terras de forma simbólica, assegurando que todo israelita pudesse retornar à sua propriedade ancestral. Levítico 25, portanto, funciona como uma “lei utópica”, concebida mais para expressar valores de justiça divina e social do que para ser aplicada de forma prática.
O texto prescreve, assim, o Ano do Jubileu, um ciclo de cinquenta anos em que a terra retorna aos seus proprietários originais e os israelitas que se tornaram trabalhadores por dívida recuperam sua liberdade. P-H propõe que o escravo israelita não seja mais chamado de ʿebed (escravo), mas sim de sākîr tôšāb (“trabalhador residente”), o que reflete a intenção sacerdotal de preservar a dignidade do indivíduo e garantir que todo israelita possa eventualmente retornar à sua condição social plena. Além disso, os trabalhadores residentes não pagam juros sobre dívidas.
Levítico 25 também evidencia uma preocupação teológica e social muito mais profunda do que Deuteronômio 15: enquanto este foca na liberdade pessoal do escravo e na caridade do mestre, P-H entende que a liberdade só é completa se o indivíduo possuir terra, refletindo uma visão em que a autonomia econômica está intrinsecamente ligada à liberdade. Isso evidencia a filosofia subjacente do código sacerdotal: a justiça social é inseparável da obediência a Javé e da reintegração do Israelita em sua comunidade.
Filologicamente, Levítico 25 introduz termos específicos e formulações que não aparecem em Êxodo, como immāk/mē ‘immāk (“sob tua autoridade”) e a distinção entre ahîkā (irmão israelita) e ʿibrî, reforçando a ideia de que todos os israelitas são iguais perante Deus, independentemente de sua condição econômica ou social. Diferentemente do que ocorre em Deuteronômio, onde o escravo ainda é um ʿebed a ser libertado pelo mestre, P-H transforma a condição do trabalhador em uma espécie de contrato social idealizado, que busca equilibrar liberdade, serviço e restituição patrimonial.
Historicamente, há indícios de que o conceito de jubileu já era conhecido durante o exílio, como em Ezequiel 46:16-17, onde o príncipe deve devolver terras a seus herdeiros ou trabalhadores no ano da “libertação” (šěnat haddērōr). Do ponto de vista prático, no entanto, é amplamente aceito que Levítico 25 jamais foi plenamente aplicado na história de Israel, sendo antes uma norma normativa ou utópica, destinada a expressar valores sacerdotais de justiça, equidade e integração social. Portanto, Levítico 25 deve ser entendido como uma legislação “ideal”, cujo propósito principal não era a regulação cotidiana das relações de escravidão, mas sim a promoção de princípios de justiça por meio de uma lei simbólica.
III. ESCRAVIDÃO NO NOVO TESTAMENTO
No Novo Testamento, identificam-se duas tradições paulinas que defendem a escravidão: a Fonte Deutero-Paulina e a Fonte Trito-Paulina. A primeira corresponde aos autores das cartas de Efésios e Colossenses, possivelmente discípulos de Paulo que redigiam em seu nome. A segunda refere-se ao autor do círculo paulino responsável pelas cartas pastorais (Tito, I Timóteo II Timóteo). Tanto a Fonte Deutero-Paulina quanto a Trito-Paulina refletem um modelo de família romano, estruturado em termos de hierarquia. Nessa concepção, a sociedade deve ser organizada segundo uma lógica de submissão do dominado perante o dominador, abrangendo todas as relações hierárquicas: bispo-fiéis (Efésios 5:22-24; 1 Timóteo 3:1-13), homem-mulher (Efésios 5:22-33; Colossenses 3:18-19; 1 Timóteo 2:11-15), pai-filhos (Efésios 6:1-4; Colossenses 3:20-21), e senhor-escravo (Efésios 6:5-9; Colossenses 3:22-25; 1 Timóteo 6:1-2). Além das fontes paulinas, há ainda um texto em 1 Pedro a favor da escravidão. Assim temos:
“Escravos, obedeçam a seus senhores terrenos com respeito e temor, com sinceridade de coração, como a Cristo. Não obedeçam apenas para agradar aos homens quando eles estão observando, mas como escravos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus. Sirvam de boa vontade, como ao Senhor, e não aos homens, sabendo que cada um, seja escravo ou livre, receberá do Senhor todo o bem que fizer.” (Efésios 6:5-8)
“Escravos, obedeçam em tudo a seus senhores terrenos; não apenas para agradá-los quando eles os observam, mas com sinceridade de coração, pelo temor do Senhor. Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens, cientes de que receberão do Senhor a herança como recompensa. Cristo, o Senhor, é quem vocês estão servindo! Mas quem fizer o mal receberá de volta o mal, e não há exceção para ninguém.” (Colossenses 3:22-25)
“Escravos, sujeitem-se a seus senhores com todo o respeito, não apenas aos bons e amáveis, mas também aos severos. Pois é louvável que alguém suporte aflições, sofrendo injustamente, por motivo de consciência para com Deus.” (1 Pedro 2:18-19)
“Ensine os escravos a se submeterem em tudo a seus senhores, a procurarem agradá-los, a não serem respondões, a não roubarem, mas a mostrarem que são inteiramente dignos de confiança, para que assim tornem atraente, em tudo, o ensino de Deus, nosso Salvador.” (Tito 2:9-10)
“Todos os que estão sob o jugo da escravidão devem considerar seus senhores como dignos de todo o respeito, para que o nome de Deus e a nossa doutrina não sejam blasfemados. Os que têm senhores crentes não devem tratá-los com desrespeito pelo fato de serem irmãos; pelo contrário, devem servi-los ainda melhor, porque os que se beneficiam do seu serviço são fiéis e amados.” (1 Timóteo 6:1-2)
Por fim, a carta de Paulo a Filemon é uma das epístolas mais curtas do Novo Testamento, mas extremamente significativa para a compreensão da escravidão na comunidade cristã do século I. Ela se situa dentro do ciclo paulino autêntico, sendo escrita por Paulo por volta de 55d.C. O destinatário, Filemon, era um cristão de destaque em Colossos, possivelmente líder de uma casa-comunidade, e o escravo Onésimo havia fugido, possivelmente deixando dívidas ou tarefas pendentes. Paulo escreve pedindo a Filemon que receba Onésimo de volta. Paulo não propõe a libertação de Onésimo, mas sim que Onésimo seja recebido de volta, não mais como apenas um escravo, mas também como irmão: “Pois agora ele não é mais um escravo, porém muito mais do que isso: é um querido irmão em Cristo. De fato, para mim ele é muito querido. E para você agora ele é mais querido ainda, não só como escravo, mas também como irmão no Senhor” (Filemon 1:16). No Novo Testamento, a escravidão greco-romana permanece, pois, naturalizada e a subordinação do escravo ao senhor é prescrita.
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