NORMATIVIDADE - DEREK PARFIT
O que se segue é um resumo da Parte 6 do livro On What Matters de Derek Parfit, intitulada Normatividade (Normativity). Essa parte é composta por 13 capítulos, sendo eles: 1. Naturalismo analítico e subjetivismo; 2. Naturalismo não-analítico; 3. A objeção da trivialidade; 4. Naturalismo e niilismo; 5. Não-cognitivismo e quase-realismo; 6. Normatividade e verdade; 7. Verdades normativas; 8. Metafísica; 9. Epistemologia; 10. Racionalismo; 11. Acordo; 12. Nietzche; 13. O que mais importa? É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.
I. NATURALISMO ANALÍTICO E SUBJETIVISMO
Em Metaética, devemos aceitar
uma forma de cognitivismo não-naturalista. Existem diferentes posições
sobre a normatividade. Por normatividade, entende-se aquilo que está
relacionado a conceitos como “errado”, “certo”, “dever”, “virtude”, “bem”, “mal”,
“excelente”, “medíocre”, “incorreto” etc. Pode- distinguir entre normatividade
me sentido amplo, que se refere a todo conceito envolvendo regras sobre o
que é permitido ou proibido, correto ou incorreto. Assim, leis criminais,
regras gramaticais, normas de etiqueta etc. são normativas em sentido amplo. Já
normatividade em sentido estrito se refere às razões éticas para agir. Ao
discutir posições metaéticas, é esse sentido de normatividade mais estrito que
está em questão.
De acordo com o naturalismo,
declarações que envolvem conceitos normativos se referem a fatos naturais.
Dizemos que um fato é natural quando eles são do tipo que é estudado pelas
ciências naturais e sociais. Algumas palavras são parcialmente normativas e
parcialmente naturalísticas, como é o caso da palavra “assassinado”. Não-cognitivistas
acreditam que declarações normativas não devem ser entendidas como tendo a
intenção de serem verdadeiras, a não ser em um sentido mínimo. Já semi-cognitivistas
defendem que, embora declarações normativas tenham a intenção de serem
verdadeiras, elas não o são. Alguns semi-cognitivistas são niilistas ou
adotam o que pode ser chamado de Teoria do Erro, posição de que todas as
declarações normativas positivas são falsas.
Há três tipos de cognitivismo.
Segundo o naturalismo analítico, palavras normativas possuem
significados que podem ser analisados ou definidos pelo uso de palavras naturalísticas.
Quando um conceito normativo não pode ser definido ou reelaborado em termos
não-normativos, dizemos que esse conceito é irredutivelmente normativo. De
acordo com o cognitivismo não-naturalista, quando declarações normativas
são verdadeiras elas se referem a fatos irredutivelmente normativos. Segundo
naturalistas não-analíticos, embora declarações normativas sejam
irredutivelmente normativas, elas se referem a fatos naturais.
Muitos naturalistas normativos
também adotam o naturalismo metafísico, segundo o qual todas as
propriedades e fatos da realidade são naturais. No entanto, alguns naturalistas
metafísicos rejeitam o naturalismo normativo, sendo niilistas ou
não-cognitivistas. Devemos, no entanto, rejeitar o naturalismo metafísico.
Tanto o naturalismo quanto o não-cognitivismo são próximos do niilismo. Isso
ocorre porque ou a normatividade envolve fatos normativos irredutíveis ou ela é
uma ilusão.
Alguns entendem que a normatividade
ética tem a ver com motivações para agir, tal posição pode ser chamada de
concepção motivacional. Outros defendem a chamada concepção atitudinal,
segundo a qual conceitos normativos têm a ver com emoções ou atitudes de
aprovação ou desaprovação. Entre os que adotam a concepção atitudinal, alguns
são naturalistas, para os quais conceitos normativos expressam crenças sobre
essas atitudes, já outros são não-cognitivistas, que acreditam que
declarações normativas expressam atitudes. Há ainda quem defenda uma concepção
imperativa de normatividade, segundo a qual a normatividade envolve
prescrições. Todas essas concepções estão equivocadas. Na verdade, devemos
entender que a normatividade está relacionada com as nossas razões para
agir.
Assim, a normatividade é mais bem
entendida como envolvendo razões ou razões aparentes. As coisas importam na
medida em que temos razões de nos importar com elas. Assim, qualquer teoria que
falha em abordar nossas razões para agir, também falha quando aplicada à
moralidade. Algumas pessoas tentam dar uma abordagem naturalista de nossas
razões para agir. Naturalistas subjetivistas, como Bernard Williams,
defendem que razões para agir devem ser entendidas como as motivações de uma
pessoa para satisfazer seus desejos presentes bem-informados. Esse sentido de
razões pode ser chamado de razões internas. De acordo com o internalismo
analítico, quando dizemos que uma pessoa tem razões decisivas de agir de
determinado modo isso significa que esse modo de agir é o que irá melhor
satisfazer os desejos presentes bem-informados dessa pessoa. O oposto do
internalismo é o externalismo, segundo o qual nossas razões para agir são
razões irredutivelmente normativas.
Muitos externalistas são
objetivistas, que defendem que temos razões para agir que são objetivas e
baseadas em valores. Há, no entanto, externalistas que são subjetivistas
não-analíticos, para os quais nossas razões para agir são normativamente
irredutíveis, mas são baseadas em nossos desejos. É importante considerar que
externalistas não negam que tenhamos razões internas. A diferença é que
internalistas defendem que só temos razões internas, enquanto externalistas
defendem que temos tanto razões internas quanto razões externas. Assim, o que
realmente importa é se existem ou não razões externas.
Algumas declarações normativas são conceituais
ou linguísticas, que é o caso de quando fazemos declarações sobre o
significado de um conceito normativo. Um exemplo é dizer que “moralmente
permissível” significa “não-errado”. Já algumas declarações normativas são substantivas,
que são aquelas que, de modo informativo, nos dizem que algo tem uma
determinada propriedade, como quando dizemos que atos ilegais são errados.
Outras declarações normativas são tautologias, que ocorre quando uma
sentença apenas nos diz que algo é o que é ou que se algo tem uma propriedade
então esse algo tem essa propriedade. Algumas tautologias são explícitas usando
a mesma palavra duas vezes. Outras tautologias são tautologias implícitas,
usando palavras diferentes com o mesmo significado. Tautologias implícitas
podem ser enganosas, pois elas podem parecer ser substantivas quando não o são.
Quando subjetivistas internalistas
dizem que devemos fazer o que melhor satisfaz nossos desejos bem-informados e
definem dever em termos daquilo que temos mais razão interna para fazer, isso é
um exemplo de tautologia implícita. Assim, se usarmos conceitos normativos
apenas no sentido dado pelos internalistas analíticos, o subjetivismo sobre
razões não seria uma visão normativa substantiva. Para que algo seja
normativamente substantivo, uma declaração precisa dizer que além de um fato
ter propriedades naturais, ele também precisa ter uma propriedade de segunda
ordem que é irredutivelmente normativa. A normatividade precisa ir além de
meras declarações causais ou psicológicas. Perguntar o que uma pessoa
escolheria fazer após um procedimento de deliberação bem-informada é uma
questão psicológica, diferente da questão normativa sobre o que devemos fazer.
Alguns subjetivistas, no entanto,
não são internalistas. De acordo com a Teoria Subjetivista Externalista,
algumas ações possíveis são o que temos razões externas decisivas de fazer, no
sentido daquilo que devemos fazer no sentido externo (irredutivelmente
normativo), somente quando essas ações satisfazem nossos desejos
bem-informados, isto é, são aquilo que escolheríamos fazer após um procedimento
de deliberação racional. O subjetivismo externalista é uma visão normativa
substantiva, pois conceitos normativos como “razão” e “dever” são usados em
seus sentidos normativos indefiníveis e irredutíveis. Assim, de acordo com naturalistas
não-analíticos, conceitos normativos não podem ser definidos em termos de
conceitos naturais, embora ambos se refiram a fatos naturais.
II. NATURALISMO NÃO-ANALÍTICO
Um argumento utilizado a favor do
naturalismo não-analítico é o argumento da coextensividade. De acordo
com esse argumento, uma ação só pode ser moralmente errada, por exemplo, na
medida em que ela também tem uma propriedade natural que é a razão de ela ser
errada. Assim, o conceito de errado seria coextensivo ao conceito relacionado a
essa propriedade natural. No entanto, quando um par de conceitos tem a mesma
coextensão, então eles se referem às mesmas propriedades naturais. Isso,
contudo, é falso. Dois conceitos podem ser coextensivos e se referirem a
propriedades diferentes. Por exemplo, os conceitos “o único número primo par” e
“a raiz quadrada positiva de 4” tem a mesma coextensão, embora refiram-se a
propriedades distintas. Assim, é mais correto pensar que quando uma propriedade
natural é aquela que faz com que uma ação seja errada, a propriedade de ser
errada é distinta dessa propriedade natural.
Alguns utilitaristas, como Henry Sidgwick,
defendem que embora a propriedade natural de maximizar a felicidade seja
coextensiva à propriedade normativa de ser o certo a se fazer, elas são
propriedades distintas. Sidgwick adota, dessa forma, um Utilitarismo
não-naturalista. Nesse caso, a propriedade de maximizar a felicidade é a
propriedade que faz algo ter uma outra propriedade de ser o certo a se fazer.
Isso não significa que há uma relação causal entre essas duas propriedades. Se
uma pessoa tem um filho isso faz com que essa pessoa tenha a propriedade de ser
pai, sem que haja uma relação causal nisso. Desse modo, podemos distinguir a propriedade
que faz algo ser certo da propriedade de ser certo.
Alguns naturalistas, para defenderem
sua posição, partem de uma analogia com o progresso da ciência. Por
exemplo, com o avanço das ciências descobrimos que aquilo que chamamos de água
pode também ser identificado em termos químicos como H2O. Do mesmo modo,
podemos ter descoberto que aquilo chamamos de “certo” na verdade se identifica
com uma propriedade natural ou com um conjunto de propriedades naturais. Esse
argumento ignora que conceitos sobre propriedades naturais e conceitos
normativos pertencem a categorias irredutivelmente diferentes. Isso ocorre
porque conceitos normativos fundamentais são indefiníveis e irredutivelmente
normativos. Desse modo, conceitos normativos não são como o conceito
pré-científico de água que tinha a possibilidade de ter sua definição
completada por descobertas científicas.
De acordo com o que podemos chamar de naturalismo amplo, fatos
normativos seriam naturais ainda que esses fatos fossem irredutivelmente
normativos, porque esses fatos não poderiam ser reelaborados em termos
não-normativos. Nesse caso, o naturalismo amplo precisa explicar como esses
fatos irredutivelmente normativos seriam ao mesmo tempo fatos naturais. Segundo
o critério causal, fatos normativos podem ser considerados naturais se
eles desempenham um papel no mundo natural. No entanto, parece haver fatos
naturais que não desempenham um papel causal e parece incorreto assumir que se
algo desempenha um papel causal no mundo natural, então esse algo é natural. Se
o Universo tiver sido criado por Deus, por exemplo, Deus desempenharia um papel
no mundo natural sem ser parte do mundo natural.
Cognitivistas não-naturalistas, por
outro lado, consideram que os fatos normativos mais fundamentais não são
contingentes, nem fatos sobre o mundo que podem ser descobertos empiricamente.
Fatos normativos fundamentais são verdades necessárias, que seriam
verdadeiras em todos os mundos possíveis. Não poderia ter sido o caso, por
exemplo, que o sofrimento imerecido não fosse mau. Nada na ciência, entretanto,
conflita com a visão de que existem fatos normativos irredutíveis e temos
razões práticas e epistêmicas para acreditar neles. Inclusive, os cientistas
fazem progresso respondendo a fatos normativos. Há uma profunda distinção entre
fatos naturais e fatos normativos, estes envolvendo razões para agir.
Alguns argumentam que se aceitarmos certos
fatos naturais não podemos consistentemente negar certas conclusões normativas.
John Searle, por exemplo, diz que quando alguém faz uma promessa (um
fato natural), ela se põe sobre a obrigação de cumprir essa promessa, de onde
se segue que, sendo tudo igual, ela deve cumprir essa promessa (fato
normativo). Isso seria uma forma de derivar um fato normativo sobre o dever de
um fato natural sobre como algo é. Hume considerava esse tipo de
argumento que passa do ser para o dever algo impossível. No entanto, podemos
negar que ao fazer uma promessa nos colocamos por si só sob obrigação de
guardá-la em um sentido normativo forte. Há vários fatos que podem tornar uma
promessa inválida de modo que o argumento precisa apelar para certas premissas
morais normativas que sirvam de critério para quais promessas são válidas e
quais não são.
Há, também, quem recorra ao argumento dos
conceitos normativos densos. Conceitos normativos densos são aqueles que
descrevem um fato natural de modo já carregado por uma avaliação moral. Esse é
o caso de termos como “cruel”, “gentil”, “rude”, “casto”, “corajoso”,
“desonesto”, “antipatriótico” etc. Esses conceitos não são puramente
normativos, já que envolvem referência a fatos naturais. Chamar alguém de cruel
envolve, por exemplo, dizer que essa pessoa inflige dor intencionalmente nos
outros. Em razão disso, alguns argumentam que, fazendo uso desses conceitos,
podemos raciocinar de modo a derivar dever de ser. Desse ponto de vista, se
aceitarmos certos fatos naturais teríamos que consistentemente aceitar certas
conclusões normativas.
Conceitos densos parecem apresentar um desafio
ao cognitivismo não-naturalista que faz uma distinção profunda entre conceitos
normativos e conceitos naturalísticos. Contudo, se perguntarmos coisas como “é a
castidade mesmo uma virtude?” ou “ser antipatriótico é mesmo algo ruim?”
podemos ver como podemos empregar esses conceitos densos de modo puramente
naturalístico. Um desafio é apresentado, contudo, pelo conceito de justiça, já
que parece impossível perguntar se a justiça é mesmo uma virtude. De acordo com
o argumento da injustiça, podemos deduzir de fatos naturais que uma
pessoa não merece ser injustamente punida. Contudo, é importante lembrar que o conceito
retributivo de justiça, segundo o qual um criminoso, por exemplo, merece
objetivamente ser punido, pode ser questionado. Além disso, um niilista poderia
questionar a dimensão valorativa de conceitos densos e não se refuta o niilismo
meramente apelando-se a conceitos densos. Assim como não se pode provar que
Deus existe apenas apelando ao conceito de Deus, não se pode estabelecer a
verdade de um juízo moral apenas apelando para conceitos densos.
Conceitos densos só mostram que um mesmo
conceito pode ter uma parte normativa e outra naturalística, não que não há uma
distinção entre normativo e natural. Fatos normativos estão em uma categoria
distinta e separada. Esses fatos normativos são similares a certas verdades
necessárias de outros tipos, como as verdades lógicas e matemáticas. A distinção
entre fatos normativos e naturais é muito profunda de modo que nenhuma forma de
naturalismo pode ter sucesso. Ao argumentar contra o naturalismo, não é
preciso, no entanto, defender que há fatos normativas irredutíveis, basta
mostrar que fatos naturais não podem ser normativos.
III. A OBJEÇÃO DA TRIVIALIDADE
Alguns argumentam, como Allan
Gibbard, que, visto que alguns conceitos normativos se referem a
propriedades naturais, então quando sentenças envolvendo esses conceitos são
verdadeiras, elas se referem a fatos que são tanto normativos quanto naturais.
É importante, no entanto, considerar em que sentido um conceito pode se referir
a uma certa propriedade. Nem sempre quando uma palavra se refere a uma
propriedade isso significa que a coisa em questão tem essa propriedade.
Niilistas, por exemplo, concordam que embora o conceito de errado se refira à
propriedade de ser errado, nenhum ato é de fato errado. Além disso, alguns
conceitos podem se referir a uma propriedade de modo explícito, como a
expressão “vermelhidão”, ou de modo implícito, como quando dizemos que algo é
vermelho.
É possível que uma palavra se refira
indiretamente a uma propriedade normativa fazendo referência a propriedade
natural que torna algo errado. Do mesmo modo, um conceito pode se referir a uma
propriedade natural indiretamente fazendo referência à propriedade normativa
relacionada a essa propriedade natural. Contudo, nenhum conceito normativo pode
se referir somente a uma ou mais propriedades naturais. Por isso, embora seja
verdade que alguns conceitos irredutivelmente normativos possam se referir
indiretamente a propriedades naturais, disso não se segue que o naturalismo
esteja correto. Gibbard erroneamente pensa que são só os conceitos, não as
propriedades, que são irredutivelmente normativas. Todavia, o argumento de
Gibbard não serve para mostrar que não haja propriedades normativas
irredutíveis.
Naturalistas também recorrem a argumentos
baseados em analogias com as descobertas científicas, considerando que
podemos ter descoberto que o certo pode ser definido em termos de propriedades
naturais assim como sabemos hoje que a água pode ser definida como H2O. Isso
levanta, no entanto, a questão sobre a definição de conceitos normativos.
Conceitos normativos podem ser (i) definíveis de uma forma que mostre como este
conceito pode se referir a alguma propriedade natural: é o caso do conceito
de uma propriedade natural que torna um ato correto de tal modo que tal
conceito se refere a uma propriedade natural somente por se referir também a
alguma propriedade normativa; (ii) definíveis de um modo que nos dê razão
para acreditar que este conceito não pode se referir a uma propriedade natural:
é o caso do conceito de ser responsável, de ser injustificável ou de ser
proibido por um princípio que ninguém poderia racionalmente rejeitar; (iii)
indefiníveis: é o caso de conceitos como “razão normativa”, “dever moral”,
“errado”. Nenhum desses casos fornece suporte ao naturalismo.
Quando cientistas definem água como H2O, isso
revela que aquilo que antes era compreendido, por exemplo, como a substância
que mata a sede é a mesma coisa que é composta por dois átomos de hidrogênio e
um de oxigênio. Esse tipo de definição é informativo revelando a relação entre
diferentes propriedades. Nesse caso, a ideia de que errado significa, por
exemplo, a mesma coisa que maximizar a felicidade não é análogo ao caso da
descoberta científica. Uma verdadeira analogia envolveria dizer de modo
informativo que duas propriedades distintas guardam uma relação entre si.
Assim, é uma posição como o não-naturalismo de Sidgiwick que fornece uma
analogia verdadeira com a das descobertas científicas ao dizer, de modo
informativo, que tudo aquilo que tem a propriedade de maximizar a felicidade
tem também uma segunda propriedade de ser o que é certo.
Dizer que certo significa a mesma
coisa que uma propriedade natural ou um conjunto de propriedades naturais não poderia
ser algo informativo como dizer que aquilo que tem a propriedade de ser a
substância que bebemos tem também a propriedade de ser composto por H2O. Se
duas sentenças se referissem ao mesmo fato, elas nos dariam a mesma informação
de modo que essa declaração não-normativa não poderia se referir a um fato
normativo. Uma declaração normativa que se referisse à mesma coisa que uma
declaração naturalística não poderia se referir de verdade a um fato normativo.
Uma declaração normativa precisa nos dar, além de informações naturais, a
informação distintamente normativa de que isso que tem essa propriedade natural
é aquilo que temos razões decisivas de fazer.
Por exemplo, se dizer que algo é o
certo a se fazer fosse o mesmo que dizer que essa ação maximiza a felicidade,
então dizer que maximizar a felicidade é o certo a se fazer seria o mesmo que
dizer que maximizar a felicidade é maximizar a felicidade. Dizer que maximizar
a felicidade é o certo a se fazer só pode ser informativo se certo a se fazer
tiver um sentido irredutivelmente normativo de ser aquilo que temos maior razão
para fazer. Declarações normativas precisam ser, nesse sentido, substantivas de
modo a serem informativas e permitir desacordo. Uma pessoa só pode questionar
se maximizar a felicidade é mesmo o certo a se fazer se a noção de certo for
irredutivelmente normativa. Se o naturalismo estivesse correto, declarações
normativas serão triviais, como dizer coisas como “maximizar a felicidade é
maximizar a felicidade”. Isso é o que chamamos de objeção da trivialidade.
Alguns naturalistas radicais
respondem a essa objeção simplesmente afirmando que declarações normativas são
mesmo triviais. No entanto, naturalistas moderados acreditam que declarações
normativas precisam ser substantivas. Nesse caso, uma naturalista pode tentar
argumentar que a propriedade de ser certo é, por exemplo, uma propriedade
natural distinta de maximizar a felicidade. No entanto, essa tentativa de
responder a objeção criaria um regresso infinito em que, para ser informativo,
uma declaração normativa teria sempre que relacionar uma propriedade natural a
outra propriedade natural infinitamente. Por exemplo, alguém pode dizer que
falar que maximizar a felicidade é o certo é dizer que maximizar a felicidade é
maximamente felicífico, mas ainda se poderia perguntar por que devemos fazer o
que é maximamente felicífico e ser felicífico é só uma maneira linguisticamente
diferente de dizer a mesma coisa que maximizar a felicidade.
Alguns erroneamente supõem que se
dizer que algo ser certo é o mesmo que dizer que esse algo maximiza a
felicidade isso explicaria a tese utilitarista do porquê o que é certo é o que
maximiza a felicidade. No entanto, isso é falso, porque tal declaração trivial
não informaria nem explicaria nada. Além disso, uma declaração utilitarista só
poderia ser informativa se fosse possível discordar dela, se fosse possível
perguntar: “maximizar a felicidade é o certo a se fazer?”. Para ser verdadeiro
que maximizar a felicidade é o que devemos fazer isso deve significar que
maximizar a felicidade tem a propriedade diferente de ser o que devemos fazer. A
declaração naturalista de que maximizar a felicidade é o que devemos fazer
porque o que devemos fazer significa maximiza a felicidade pode parecer
informativa, mas essa aparência é o que podemos chamar de ilusão da
propriedade única.
De acordo com o que podemos chamar
de sentido padrão de dever quando um ato tem uma determinada propriedade
natural, este ato é o que devemos fazer. Segundo não-naturalistas, isso
significa que quando um ato tem uma determinada propriedade natural esse ato
também tem uma segunda propriedade de ser o que devemos fazer. Naturalistas,
por sua vez, interpretam esse sentido como significando que quando algum ato tem
essa propriedade natural isso significa a mesma coisa que esse ato ser o que
devemos fazer. Como considerado, essa interpretação naturalista cai na objeção
da trivialidade e faz com que a normatividade não seja uma visão substantivamente
informativa. Se naturalistas, contudo, pensarem que tal declaração é
informativa, considerando que há uma relação entre duas propriedades, isso
levaria a um regresso infinito de modo que o naturalismo não pode ser
verdadeiro.
IV. NATURALISMO E NIILISMO
O argumento da trivialidade
pode ser aplicado às discussões sobre razões. De acordo com o Subjetivismo,
como o defendido por Mark Schroeder, quando algum fato explica por que
algum ato realizaria um de nossos desejos presentes, esse fato é uma razão para
agirmos dessa maneira. No entanto, é importante distinguir entre algo ser uma
razão para agir e o fato de que a realização de um desejo nos dá uma razão para
agir. Caso não houvesse essa distinção, dizer que a realização de nossos
desejos presentes nos dá uma razão para agir seria dizer algo trivial. Se razão
para agir significa a realização de nossos desejos presentes, então estaríamos
simplesmente dizendo que a realização de nossos desejos realiza nossos desejos.
Assim, se razão para agir não for uma propriedade normativa diferente, a visão
de Schroeder não seria uma visão substantiva e positiva.
No entanto, precisamos nos questionar
qual seria essa outra propriedade normativa. Uma primeira resposta parece ser
que ela é a própria propriedade de ser uma razão. O subjetivismo de Schroeder
não pode, contudo, recorrer a essa resposta, pois ele nega que algo ser uma
razão seja uma propriedade distinta. Assim, Schroeder enfrenta o problema da
propriedade perdida. Ele poderia superar essa dificuldade se defendesse que
certos fatos têm a propriedade de contar em favor de certas ações, mas, nesse caso,
ele deixaria de ser um naturalista. A mesma dificuldade aparece quando pensamos
no conceito de “dever”. Se dissermos que “dever” significa aquilo que
escolheríamos fazer após deliberação racional, então dizer que devemos fazer o
que escolheríamos após deliberação racional seria uma tautologia implícita e
ficaríamos sem uma visão normativa substantiva.
Naturalistas podem desistir do subjetivismo, e adotar o objetivismo
sobre razões. Se somos objetivistas, isto é, se acreditamos que todas as
razões são dadas pelo objeto ou baseadas em valores, seria difícil manter que
ter essas razões consistiria em um fato natural, pois o objetivista não pode
recorrer à satisfação de nossos desejos como a base de nossas razões. Naturalistas
analíticos não podem, pois, defender o objetivismo sobre razões de modo
consistente. Dado isso, o reconhecimento de que há declarações normativas
irredutíveis iria exigir que o naturalista adotasse alguma forma de naturalismo
não-analítico. Podemos distinguir entre dois tipos de naturalismo: (i)
naturalismo forte: defende que, dado que todos os fatos são naturais, não
precisamos fazer declarações normativas irredutíveis, podendo reelaborar essas
declarações usando termos não-normativos; (ii) naturalismo fraco: defende
que, embora todos os fatos sejam naturais, temos razões suficientes para fazer
declarações normativas irredutíveis.
O
naturalismo fraco é, entretanto, inconsistente. Diferente de não-cognitivista,
naturalistas estão comprometidos com a tese de que declarações normativas se
referem a fatos. Se esses fatos fossem naturais, então o naturalismo forte
estaria correto em dizer que podemos reelaborar essas declarações usando termos
naturais. Assim, ou declarações normativas se referem a fatos naturais ou elas
são normativamente irredutíveis, não há uma terceira alternativa. Podemos
chamar essa objeção de dilema do naturalismo fraco. Se precisamos fazer
declarações normativas irredutíveis isso só pode ser porque existem alguns
fatos irredutivelmente normativos importantes. Um naturalista fraco poderia
tentar responder que declarações normativas ainda seriam necessárias para nos
dar informações adicionais sobre um fato. Contudo, essas informações adicionais
que só declarações normativas poderiam nos dar, só poderiam ser informativas de
fato, caso se referissem a algo irredutivelmente normativo. Podemos chamar isso
de versão informativa do dilema do naturalismo fraco. O naturalismo não
pode, pois, ser verdadeiro, nossas declarações normativas não podem se referir
simplesmente a fatos naturais. Isso torna o naturalismo próximo do niilismo.
V. NÃO-COGNITIVISMO E QUASI-REALISMO
De acordo com não-cognitivistas,
declarações normativas não têm a intenção de se referirem a fatos, sejam eles
naturais ou normativos. Tais pessoas fazem uma distinção entre fatos e
valores, observando que não pode existir fatos valorativos. Quando dizemos
que uma ação é a correta não estamos dizendo que essa ação tem alguma
propriedade especial. A normatividade seria encontrada, não em fatos ou
propriedades de uma ação, mas em nossas atitudes diante de uma ação. Alguns
não-cognitivistas tem uma visão próxima ao sentimentalismo, segundo o
qual a moralidade é uma questão de emoção, não de razão. É possível ser um sentimentalista
cognitivista, para o qual declarações morais descrevem nossas
emoções. Sentimentalistas não-cognitivistas defendem que juízos morais expressam
nossas emoções. Sentimentalistas podem ser subjetivistas, entendendo
essas emoções como relativas a cada indivíduo ou intersubjetivistas,
referindo-se às emoções que as pessoas normalmente teriam, em condições ideais,
diante de uma ação.
De acordo com o expressivismo,
quando dizemos que uma ação é errada, estamos expressando nossa atitude de
desaprovação diante de uma ação. Os primeiros expressivistas negavam que juízos
morais pudessem ser avaliados em termos de verdade ou falsidade. Há, contudo,
expressivistas que defendem que juízos morais podem ser considerados
verdadeiros em um sentido mínimo, como quando alguém diz “isso é verdade” como
uma forma de expressar uma atitude de aprovação a algo que foi dito. Alguns
não-cognitivistas partem da teoria humeana da motivação, segundo a qual,
só emoções e desejos podem nos mover a agir de um determinado modo. Argumentam,
assim, que juízos morais não podem ser crenças, pois assim não poderiam nos
mover a agir.
Alguns humeanos acreditam que uma crença só pode nos mover a agir se
gerar em nós algum desejo novo enquanto outros defendem que essa crença só
poderia nos mover se for combinada com desejos que já temos. Em oposição a
isso, Kant defende que a razão pura pode, por si mesma, nos motivar.
Devemos admitir que, se convicções morais forem crenças, podemos ter uma crença
moral sem estarmos motivados a agir segundo ela. Por isso, só dizemos que
alguém tem uma convicção moral se essa convicção for sincera. Nesse
caso, o argumento humeano pode estar apenas fazendo um jogo de linguagem. Anti-humeanos
podem concordar que convicções morais precisam envolver desejo e motivação, mas
isso é porque, por convicção moral, queremos dizer, não só que uma pessoa adota
uma crença moral, mas que ela adota sinceramente essa crença moral.
Em sua forma inicial,
não-cognitivistas tinham uma visão próxima do niilismo. Alfred Ayer, por
exemplo, desistiu do emotivismo e adotou a Teoria do Erro, segundo a
qual, todos os juízos morais são falsos. Expressivistas mais atuais como Allan
Gibbard e Simon Blackburn defendem que, embora nossos juízos morais não
tenham intenção de serem declarações sobre fatos, esses juízos podem, de algum
modo, declararem fatos. De acordo com Blackburn, juízos morais expressam
certos tipos de atitudes, desejos, valores e atitudes conativas. Os primeiros
emotivistas não conseguiam explicar adequadamente como pessoas poderiam
discordar entre si sobre temas morais. Mas, os expressivistas atuais entendem o
desacordo como algo real, que ocorre porque os desejos expressos por juízos
morais contraditórios não podem ser todos satisfeitos. Gibbard, por sua
vez, fala de desacordo em termos da impossibilidade de realização de planos de
ação diferentes. Chamar, no entanto, isso de desacordo real é enganador,
desacordo moral real é desacordo de crenças.
Expressivistas atuais também defendem
que podemos avaliar juízos morais como corretos ou incorretos. Poderíamos
dizer, assim, que um juízo moral é verdadeiro ou falso em um sentido mínimo.
Essa posição de que juízos morais, mesmo que não expressem crenças, possam ser
avaliados em termos de um critério mínimo de verdade é chama de quasi-realismo.
Juízos morais seriam falsos, por exemplo, caso expressem planos e desejos
inconsistentes ou se eles seriam os desejos que teríamos se estivesses
bem-informados e imparciais. Chamamos de critério do ponto de vista
melhorado a tese de que devemos julgar nossos desejos em termos daquilo que
seriam os desejos que teríamos se tivéssemos uma visão melhor e mais
bem-informada.
Contudo, parece só fazer sentido falar de
visão mais bem informada se isso significar ter crenças mais verdadeiras sobre
o objeto que nos fornece razões para agir. Assim, o quasi-realista acabaria
tendo que admitir que características dos objetos de nosso desejo podem nos dar
razões para desejá-los e as nossas crenças sobre essas características é que
explicariam por que podemos ter um critério para julgar nossos desejos. Os
juízos que expressariam essas crenças seriam, portanto, juízos cognitivos. Sem
recorrer a um critério cognitivista, o quase-realismo de Blackburn
acabaria sendo circular, porque teria que admitir que o critério para avaliar
nossos juízos morais como corretos ou incorretos estaria relacionado a uma
melhora do nosso ponto de vista que é, ela mesma, entendida como mais correta
em sentido expressivista.
Outra dificuldade enfrentada pelo
quasi-realismo ocorre quando consideramos o que podemos chamar de atitudes
estáveis, que são aquelas que não mudaríamos mesmo se tivéssemos uma visão
mais bem-informada. Andy Egan observa que o quasi-realista pode até
explicar o que seria para nós avaliar as atitudes estáveis de uma outra pessoa
como incorretas, mas não seria possível fazer o mesmo com as nossas próprias
atitudes, pois teríamos que pensar que temos a garantia de não cometermos erros
morais sobre atitudes estáveis. Parece que, não-cognitivistas não são capazes
de explicar em que sentido inteligível juízos morais em sentido expressivista
podem ser avaliados como verdadeiros ou falsos. Não-cognitivistas no máximo
podem falar de verdade em um sentido metafórico, não podendo de fato falarem de
verdade moral. O quasi-realismo é, pois, inconsistente.
VI. NORMATIVIDADE E VERDADE
Alguns não-cognitivistas argumentam
que juízos morais expressam prescrições ou imperativos. Imperativos são
comandos e sentenças imperativas não podem ser verdadeiros ou falsos. Nós
respondemos a imperativos, não por acreditar no que eles dizem, mas por fazer o
que eles comandam. Contudo, imperativos não são por si só normativos, embora
eles possam expressar normas às vezes. Para Gibbard, quando estamos
tentando decidir qual ação é racional estamos decidindo se devemos aceitar
algum imperativo. Essa teoria, no entanto, envolve uma circularidade, pois
dizer que ter maior razão para agir significa termos maior razão de adotar um
imperativo, então em “termos maior razão em adotar um imperativo” a expressão
“ter maior razão” significaria, ela mesma, “ter maior razão em adotar um
imperativo”.
Gibbard tenta evitar essa
circularidade dizendo que decidir o que devemos fazer é o mesmo que escolher o
que fazer. No entanto, nesse caso estaríamos mudando da pergunta “o que devemos
fazer?” para “o que escolhemos fazer?”. Nesse caso, não estaríamos mais falando do que
é mais racional fazer, mas apenas sobre escolher endossar algum imperativo. A
abordagem de Gibbard torna impossível fazer as questões importantes, pois, atos
poderiam apenas ter a propriedade de se conformarem aos imperativos que
aceitamos. Para Gibbard, quando enunciamos um imperativo moral acreditamos ter
uma autoridade normativa que requer que os que nos ouvem obedeçam a esses
imperativos. No entanto, se há essa autoridade normativa nesses imperativos
isso só poderia ser, não porque essa autoridade é dada pela pessoa que expressa
tais imperativos, antes, essa autoridade deriva da autoridade dos princípios e
valores aos quais essa pessoa apela. Também seria equivocado pensar que esse
tipo de autoridade tem a ver com influenciar os outros a agir. Isso seria
confundir autoridade com poder.
Se reduzimos a moralidade a uma
questão de endossar imperativos a normatividade seria minada e isso aproximaria
tal visão se aproximaria do niilismo e nada mais importaria. Assim, precisamos colocar
a questão do que queremos dizer quando perguntamos, em sentido moral, “o que
importa?”. Se a função da expressão “importar” fosse simplesmente expressar as
atitudes e os endossos com os quais uma pessoa se preocupa, a gente sempre
poderia perguntar “a opinião de quem importa?”. Podemos ainda colocar “tal
pessoa tem razão para se importar com isso?”. Assim, a expressão
“importar” precisa se referir mais do que sobre as preocupações e atitudes das
pessoas, deve também se referir ao que realmente importa, ao que as pessoas têm
razão para se importar. Se não for verdade que há coisas que realmente importam,
ficaríamos só com aquilo com que as pessoas se importam.
Richard Hare, defendendo que juízos morais são prescrições ou
imperativos, critica o objetivismo dizendo que se juízos morais descrevessem
fatos eles não poderiam ter o poder de requisitar ações. Uma mera descrição de
um estado de coisas não pode cumprir a função de ordenar que pessoas ajam de um
determinado modo. Assim, Hare assume que, se juízos morais fossem capazes de
serem verdadeiros eles não poderiam guiar nossas ações. Contudo, se nós
julgamos verdadeiramente o que devemos fazer, então nossos julgamentos
podem sim guiar nossas ações.
Christine
Korsgaard argumenta, por exemplo, que seria
possível alguém ter a crença “x tem a propriedade de ser certo” sem achar que
deve fazer x. No entanto, dizer que algo tem a propriedade de ser certo é dizer
que isso tem a propriedade de ser o que devemos fazer. Portanto, acreditar
nessa verdade e ao mesmo tempo achar que não se deve fazer isso é uma
inconsistência. Não é uma objeção ao realismo moral que pessoas sejam
inconsistentes e acreditem que devem fazer aquilo que não estão convencidas a
fazer. O realismo moral não é uma abordagem sobre o que tem força de nos
motivar, mesmo que em situações ideais, mas sim sobre o que nós temos maiores
razões objetivas para fazer.
Há, no entanto, algo verdadeiro
sobre a visão de Korsgaard. Nosso raciocínio prático não deve terminar com
crenças normativas. Para que sejamos completamente racionais em termos
práticos, precisamos responder a razões práticas com nossos desejos e com
nossas ações. Mas apenas verdades normativas podem ser respostas a questões
práticas. A normatividade não é criada pela nossa vontade. Ao contrário de
Korsgaard, realistas não acreditam que algo se torna normativo simplesmente por
ser comandado ou resultado de uma vontade. O que o realista moral acredita é
que questões normativas possuem respostas verdadeiras. Se não houvesse tais verdades,
não faria sentido tentar tomar boas decisões e nada mais importaria.
VII. VERDADES NORMATIVAS
Quando as crenças de outras pessoas
entram em conflito com as nossas, como quando elas têm outras intuições morais,
isso pode desafiar as nossas crenças. Tais discordâncias podem nos dar razões
para duvidar que estejamos certos. Aqueles de quem discordamos podem estar
respondendo a alguma evidência e podem estar fazendo isso de modo adequado.
Quando alguém que a gente discorda é tão racional e bem-informado quanto somos,
as chamamos de pares epistêmicos. Quando discordamos de nossos pares
epistêmicos, devemos pergunto se temos razões suficientes para assumir que são
as nossas crenças que são provavelmente verdadeiras. Caso não tenhamos essas
razões, não podemos racionalmente manter essas crenças. No entanto, quando
alguém não é tão racional ou bem-informado quanto nós, temos razões de
discordar dela. Esse é o caso, por exemplo, de discordar de pessoas que
acreditam em astrologia ou outras superstições.
Quando pares epistêmicos discordam
há uma simetria, já quando discordamos de alguém menos informado ou
racional, há uma assimetria. Essa assimetria, contudo, pode não ser
profunda. Em alguns desses casos, devemos continuar a dar considerável peso ao
julgamento de quem discordamos. Pode ser que cheguemos à conclusão de que ambos
estávamos errados em confiar demais em nossas posições. Não podemos continuar
confiando que estamos certos a menos que alguma outra assimetria nos dê razões
para essa confiança. Há muitas pessoas inteligentes, racionais e bem-informadas
que são subjetivistas, de modo que a posição delas deve ser levado a sério.
Naturalistas, não-cognitivistas e niilistas negam que haja verdades normativas
irredutíveis e a menos que haja uma assimetria que explique por que essas
pessoas estão erradas, não podemos ser confidentes sobre o realismo moral.
Uma pessoa bem-informada,
inteligente e racional que é subjetivista é o brilhante filósofo britânico Bernard
Williams. Williams entende que se certas coisas fossem intrinsicamente
boas, não teríamos como explicar a bondade dessas coisas fazendo referência ao
que valorizamos. Teríamos que dizer que as valorizamos porque elas são boas.
Mas para isso, tais coisas teriam de ter propriedades intrínsecas que nos dão
razões para responder a essas coisas de modo positivo. No entanto, como um
subjetivista, Williams acredita que tais razões objetivas não existem e, dado
isso, todas as nossas razões nos são dadas pelos nossos desejos presentes e nossos
valores. Consequentemente, Williams acha a ideia de uma bondade intrínseca algo
inexplicável e, por isso, deveríamos abandonar a ideia de bondade intrínseca.
Por conseguinte, ao invés de falar de razões para agir em um sentido normativo
objetivo, Williams só pode falar de razões em um sentido interno, como aquilo
que estaríamos motivados a agir após deliberação racional e bem-informada.
Williams parece achar a ideia de
bondade intrínseca inexplicável porque ele pensa em razões, não como fatos que
contam a favor de termos certos desejos ou agirmos de certo modo, mas como
fatos que podem nos motivar. Parece, portanto, ser possível identificar uma
assimetria aqui. Embora Williams saiba que existe um sentido externalista
objetivo de razão, ele parece não entender o conceito de uma razão puramente
normativa e não-psicológica. Ele parece entender que se uma pessoa não tem
nenhuma motivação, então ela também não tem nenhuma razão. No entanto, para um
objetivista, mesmo que uma pessoa, após deliberação bem-informada, não esteja
motivada a fazer o que ela deve fazer, ela ainda assim tem razões normativas
objetivas para fazer o que deve fazer. A verdade é que o subjetivista só
emprega o termo razão em um sentido psicológico e motivacional e, é por não
entender o conceito não-psicológico de razão normativa, que temos razões para
pensar que Williams provavelmente tem menos chance de estar certo. Se ele
tivesse entendido o que são razões puramente normativas, ele teria chegado à
conclusão de que elas são verdadeiras.
Muitos filósofos que parecem
rejeitar o realismo metaético parecem não entender alguns conceitos. Nesse caso, não faz nem sentido falar que
haja uma discordância real. Williams não pode de fato estar discordando do
realismo moral porque o sentido em que ele usa o termo “razões” é diferente do
sentido em que o realista usa esse termo. O mesmo ocorre com Mackie, quando
ele diz que não existem valores objetivamente prescritivos, ele quer dizer que
nenhuma crença normativa poderia necessariamente motivar alguém a aceitá-las. O
realista moral, no entanto, não defende que valores objetivos necessariamente
nos motivam a agir, mas sim que tais valores nos dizem o que devemos fazer.
Hume, por sua vez, tem textos em que ele parece usar o termo
“razão” em um sentido internalista, em outros trechos parece reconhecer a
existência de razões normativas que se oponham aos nossos desejos e
preferências. Hume, portanto, é alguém que não discorda de fato do realismo
moral, mas sim que faz informações que contradizem suas próprias declarações
objetivistas em outros trechos. Temos, pois, razões para dizer que há uma
assimetria quando se considera aqueles que discordam da existência de verdades
normativas, de modo que temos razões para manter que existem tais verdades.
VIII. METAFÍSICA
Quando ontologistas pensam sobre a
natureza da realidade, eles se perguntam sobre que entidades existem. Algumas
coisas, como fatos, significados, leis da natureza, guerras, fome, sombras, sinfonias,
modos, números e razões são exemplos de itens que causam controvérsias sobre se
elas devem ser incluídas como coisas existentes em uma ontologia. De acordo com
o fundamentalismo, tudo que existe são os constituintes fundamentais da
realidade. Uma forma de fundamentalismo é aquela que diz que não existem
átomos, rochas ou estrelas, mas apenas partículas subatômicas. Essa visão, no
entanto, é muito extrema e implausível. Ao invés disso, faz mais sentido dizer
que muitos objetos físicos são compostos, no sentido de que esses objetos são
feitos de componentes menores. Alguns, no entanto, defendem que, embora objetos
compostos existam, eles existem apenas em sentido superficial. No entanto, como
o Universo é um objeto composto, tal visão teria a implicação implausível de
que o Universo não existe em sentido fundamental. Além de defender a existência
de objetos compostos, precisamos incluir na nossa ontologia eventos e
processos.
De acordo com uma visão chamada
atualismo, ser ou existir é existir no mundo real, de modo que não pode
haver nada que seja meramente possível. No entanto, parece mais correto adotar
o possibilismo, segundo o qual há coisas que nunca se tornam reais, mas
que são meramente possíveis. Há, inclusive, eventos que, embora nunca ocorram,
são possibilidades. O possibilismo, no entanto, não significa necessariamente
que entidades possíveis são reais. Pode-se distinguir a palavra “existir” em um
sentido amplo e um sentido mais estrito. Possibilidades existem em um sentido
amplo, embora não existam no sentido estrito de existirem como entidades reais.
Por exemplo, poderíamos ter agido diferente do que agimos e quando fazemos
escolhas entendemos que há cursos possíveis de ação que poderíamos ter tomado.
O atualismo, ao negar a existência de possibilidades, acabaria tendo que negar
que poderíamos ter agido diferente.
Alguns atualistas defendem que,
embora não haja eventos meramente possíveis, nós podemos escolher como agir. No
entanto, isso é inconsistente. Se podemos escolher entre diferentes
alternativas, então a alternativa que não escolhemos seria uma mera
possibilidade. Muitos atualistas acreditam na visão
do sentido único, segundo a qual a palavra “existir” só tem um sentido. Uma
visão melhor, no entanto, é a visão do sentido plural, segundo a qual
“existir” pode ter um sentido geral quanto mais específico.
Quando dizemos que algo existe em
sentido específico, queremos dizer que esse algo existe enquanto uma parte
concreta do mundo espaço-temporal. Outras coisas, no entanto, podem existir
em sentido geral como algo meramente possível. Possibilistas não negam que
não possam existir coisas que não existem. Meras possibilidades não existem em
sentido específico, embora existam em sentido geral. Willard Quine tenta
refutar o possibilismo dizendo que não teríamos como distinguir coisas
meramente possíveis. Mas isso não é assim, por vezes somos incapazes de
distinguir mesmo entre coisas reais e há coisas possíveis que podemos
distinguir. Podemos, por exemplo, distinguir entre pessoas ou construções
diferentes que poderiam ter existido, mas não existem. E, mesmo quando não
podemos identificar, por exemplo, os diferentes filhos que uma pessoa poderia
ter tido, isso não significa que não faça sentido em falar dos diferentes tipos
de filhos que uma pessoa poderia ter tido. Parece, pois, que a melhor posição é
aceitar o possibilismo e a visão do sentido plural.
De acordo com o que podemos chamar
de fundacionalismo realista existe, em sentido amplo, muitos entes
possíveis que nunca existem no mundo real e muitos eventos possíveis que nunca
ocorrem de fato, mas essas verdades sobre o que é possível dependem de verdades
sobre o que é real. Contudo, podemos pensar em diversos mundos possíveis que
não derivem de verdades sobre o mundo real e esses mundos possíveis não deixam
de ser possibilidades verdadeiras.
Além de distinguir entre o que é
real e o que é possível, entre objetos compostos e seus componentes, podemos
ainda falar de objetos que são ontologicamente dependentes de outros. De
acordo com alguns, pensamentos dependem de quem os pensa e não há experiência
sem um experienciador. Podemos, ainda, distinguir entre entidades concretas,
como objetos físicos e estados mentais, e entidades abstratas, como
números, significados e argumentos válidos. Há, ainda, entidades e propriedades
que dependem da mente, como os fatos sobre a vida mental privada de uma pessoa.
Essas distinções não são rígidas e há nelas sobreposição. Alguns defendem que
objetos abstratos são aqueles que não existem no espaço e no tempo. Contudo, algumas
entidades abstratas, como a linha do Equador, têm localização no espaço,
enquanto outras, como uma sinfonia, passam a existir em um determinado momento
do tempo. Muitas coisas são híbridas, sendo parcialmente concretas e
parcialmente abstratas, como nações, tribos, exércitos, leis criminais,
sinfonias e estilos literários.
Podemos também distinguir entre os
diferentes modos em que coisas podem existir. Quando uma entidade
abstrata, como uma sinfonia, existe porque foi criada por nós, é mais fácil
entender em que sentido ela existe. Mas existem entidades abstratas que não
foram criadas por nós, e esse é o caso de verdades matemáticas e razões
normativas. De acordo com platonistas, entidades abstratas existem como
parte da realidade, embora elas não existam nem no espaço nem no tempo. Nominalistas,
por sua vez, rejeitam a existência dessas entidades abstratas. O nominalismo
pode levar a conclusões muito extremas, como a de que entidades matemáticas são
ficcionais.
Contudo, não existe só o nominalismo
e o platonismo. De acordo com o que podemos chamar de visão da questão sem
clareza, a pergunta sobre se objetos abstratos realmente existem em um
sentido ontológico não é suficientemente clara, pois não é claro em que sentido
poderia ser verdadeiro ou falso que objetos abstratos realmente existam em
sentido ontológico. Para essa visão, objetos abstratos como números não são o
tipo de entidade sobre a qual seja claro se elas existem ontologicamente.
Chamamos alguém de cognitivista
sobre algum tipo de declaração se tal pessoa acredita que essa declaração pode
ser verdadeira em um sentido forte. Muitas dessas declarações possuem
implicações ontológicas. De acordo com o cognitivismo não-metafísico, há
declarações que podem ser verdadeiras em sentido forte sem que elas tenham
implicações ontológicas positivas. Para tal visão, a existência de certas
verdades, como as verdades matemáticas, não implica que elas correspondam a
algo que exista em sentido ontológico. Para que sentenças matemáticas sejam
verdadeiras em sentido forte não é necessário que números realmente existam em
sentido forte. Isso valeria para coisas como verdades lógicas e argumentos
válidos. Um cognitivista não-metafísico precisa aceitar, assim, a visão do
sentido plural, pois entende que algumas coisas possam existir, embora em um
sentido não-ontológico.
Algumas pessoas corretamente
observam que se há algo ao invés de nada, então isso requereria uma explicação.
Mas mesmo que nada tivesse existido, ainda assim haveria o que explicar. Porque
mesmo que não tivesse existido nem Deus, nem o Universo, ainda haveria verdades
sobre o que poderia ter existido, a verdade de que nada existe e a verdade de
que sete é um número primo. Mesmo que nada existisse, pois, em sentido
específico, essas coisas ainda existiriam em sentido amplo. Assim, podemos
defender uma forma de cognitivismo não-metafísico, segundo a qual não é claro
se tais verdades existem em sentido ontológico. Verdades não precisam existir
em sentido ontológico, verdades só precisam ser verdadeiras.
Quando consideramos os números, nós
podemos de modo plausível apelar para uma visão de questão sem clareza. Pode-se
argumentar que, visto que números são entidades abstratas, não há qualquer
sentido claro em que possa ser verdadeiro ou falso que números existam em uma
parte não espacial nem temporal da realidade. Tal posição não poderia se
aplicar a Deus, por exemplo, que caso existisse, diferente dos objetos
abstratos, teria de ter uma existência em sentido ontológico.
Para que haja verdades
normativamente irredutíveis não é necessário que elas existam em um sentido ontológico.
Muitas pessoas argumentam que tais verdades normativas são muito estranhas
metafisicamente para serem compatíveis com uma visão científica do mundo. No entanto,
se adotamos o cognitivismo não-metafísico não precisamos achar que as verdades
normativas tenham implicações ontológicas. Desse modo, em metaética podemos
adotar uma posição chamada de cognitivismo normativo não-naturalista
não-metafísico. Essa posição pode ser chamada de modo mais breve de racionalismo
metaético, já que é uma posição que defende a existência em sentido
não-ontológico de razões normativas irredutíveis.
IX. EPISTEMOLOGIA
Naturalistas, no entanto, podem
objetar o racionalismo metaético, dizendo que, visto que propriedades ou
verdades normativas não-naturais não podem ter nenhum efeito causal, nós não
poderíamos ter qualquer conhecimento delas, a esse argumento damos o nome de
objeção causal. Para ter esse tipo de conhecimento, alguns argumentam que
precisaríamos ter uma espécie de intuição misteriosa quase-perceptual dessas
verdades. De acordo com racionalistas, como Sidgwick e Moore,
entre os fatos do mundo existem fatos sobre o que é racional e o que não é
racional. Nesse sentido, julgamentos de racionalidade são apreensões de fatos,
não através de uma percepção sensível, mas de uma faculdade mental análoga à
percepção sensível. Gibbard assume que não pode haver esse tipo de faculdade.
No entanto, muitos racionalistas não
abraçam a visão de uma faculdade mental análoga à percepção e defendem que
podemos formar crenças normativas verdadeiras de modo análogo ao qual formamos
crenças lógicas e matemáticas verdadeiras. Quando consideramos fatos que
conhecemos pela percepção sensível, esses fatos são contingentes e referentes
ao mundo empírico real. No entanto,
verdades lógicas e matemáticas são verdades necessárias e não são simplesmente
sobre características do nosso mundo, mas sobre princípios verdadeiros em todos
os mundos possíveis. É por isso que tais verdades não precisam ser conhecidas
por meio da percepção, elas são conhecidas simplesmente por meio do pensamento
e talvez verdades normativas sejam do mesmo tipo.
No entanto, embora tal visão possa
explicar nosso conhecimento da lógica e da aritmética, o que ainda é duvidoso,
ela não pode explicar completamente nosso conhecimento de verdades normativas.
Isso porque verdades normativas não são analíticas, no sentido de serem
verdadeiras por definição. Da definição de “dor” e de “ruim” não se segue que a
dor seja ruim. É importante observar, no entanto, que quando autores como
Sidgwick, se referem a verdades normativas intuitivas, eles não estão se
referindo a uma faculdade especial, eles apenas estão dizendo que podemos
reconhecer a verdade de algumas crenças normativas simplesmente por considerar
o conteúdo dessas crenças. Essas crenças não seriam derivadas de outras crenças
e seriam autoevidentes, não no sentido de serem infalíveis, mas de serem intrinsicamente
críveis em algum grau.
Podemos falar em razões
epistêmicas para se referira à credibilidade intrínseca. Ao discutir
algumas de nossas crenças, nós precisamos de conceitos modais como
necessidade, possibilidade e impossibilidade. Conceitos modais, assim como
conceitos normativos, não podem ser completamente explicados em outros termos.
As verdades necessárias mais fundamentais são certas leis lógicas, tais como a
lei da não-contradição e a lei do modus ponens. No entanto, de acordo com a objeção
da coincidência massiva, parece que seria muita coincidência que nosso
conhecimento sobre leis lógicas, matemáticas e normativas correspondessem à
realidade. Mas essa objeção depende da ideia de que só podemos ter conhecimento
verdadeiro sobre algo se somos afetados causalmente por esse algo. Esse não
parece ser o caso, uma calculadora pode dar respostas matemáticas verdadeiras
sem ser causalmente afetada por objetos matemáticos.
Podemos dizer que formamos crenças
matemáticas verdadeiras respondendo a razões epistêmicas e nós respondemos a
razões quando nos tornamos conscientes de fatos que nos dão tais razões e essa
consciência nos leva a ter uma crença que esses fatos nos dão razões de ter ou
de querer fazer o que esses fatos nos dão razões de fazer. Nossa mente pode ter
sido de modo não intencional, “projetada” pela evolução natural para responder
a essas razões. Os seres humanos podem ter sidos selecionados por sua
racionalidade, que os tornou capazes de responder a razões epistêmicas. Os
homens diferem dos demais animais, entre outras coisas, por sua linguagem e
racionalidade.
Thomas Nagel nega que a seleção natural poderia explicar a nossa capacidade
de responder a razões. A capacidade de responder a razões epistêmicas, pode ter
capacitado os humanos a formar crenças verdadeiras sobre o futuro e sobre os
efeitos possíveis de suas ações, contribuindo para sua sobrevivência. A
capacidade de responder a razões epistêmicas complexas, como as da aritmética e
geometria, podem ter se originado de habilidades de raciocínio mais simples,
como “visto que três leões entraram na caverna, e dois saíram, ainda resta um
lá dentro”. Podemos chamar essa resposta
à objeção da coincidência massiva de resposta darwiniana. Se nós não estivermos respondendo a razões
epistêmicas, é nossa habilidade de formar muitas crenças verdadeiras sobre
possibilidades e sobre o futuro é que seria uma grande coincidência, podemos
chamar isso de argumento reverso da coincidência.
Alguns, como Alvin Plantiga,
objetam, no entanto, que como a seleção natural visa a sobrevivência e
transmissão dos genes e não a formação de crenças verdadeiras, isso colocaria
em xeque a confiabilidade daquilo que ela seleciona. Teríamos que concluir,
assim, que essas habilidades nos foram dadas por Deus. Podemos concordar, no
entanto, que embora a seleção natural explique como alcançamos essas
habilidades, uma abordagem puramente naturalista não poderia explicá-las
completamente. Teríamos que apelar para a validade de tais raciocínios para
explicá-los, podemos chamar isso de argumento da validade. Por exemplo, leis da
física podem explicar os eventos neurofisiológicos do nosso cérebro que nos
fazem formar crenças matemáticas verdadeiras. Mas a verdade dessas crenças
matemáticas só pode ser explicada na medida em que nossos processos mentais
envolvem raciocínios válidos.
Visto que não podemos ser
causalmente afetados pela validade desses tipos de raciocínio, nossas
habilidades envolvem o que podemos chamar de uma resposta não-causal à
validade. Embora muitas pessoas assumam que processos físicos aleatórios
possam ser completamente explicados por leis físicas, isso não é assim. Muitos
processos físicos devem também ser explicados de outras maneiras. Esse é motivo
pelo qual a física não é a única ciência. Explicações evolucionárias e
sociológicas não apelam para as leis da física. Nós formamos nossas crenças
raciocinando de modos válidos e a validade não é uma propriedade física. Mas
essas explicações não-físicas são compatíveis com as leis físicas.
É importante notar que mesmo que os
processos mentais fossem completamente determinados em nível neurofisiológico,
isso em nada ameaçaria a validade de nossos raciocínios. O que valida nossos
raciocínios, não é sua gênese, mas o fato de que eles são respostas a razões
epistêmicas. Quando nós formamos crenças corretas raciocinando de formas
válidas, essa validade em nada é afetada se o nosso raciocínio é explicado em
termos evolutivos ou neurofisiológicos. A matemática, por exemplo, não deixa de
ter sua validade não importa se nossa capacidade para a matemática tem sua
gênese na evolução ou é determinada pelo funcionamento de nossos neurônios. A
gênese é irrelevante para a questão da validade de um raciocínio. Do mesmo
modo, ainda que nossas crenças morais tenham uma origem evolutiva isso não
ameaça a validade de nossos raciocínios morais na medida em que forem respostas
a razões epistêmicas. Podemos manter, inclusive, que nossos raciocínios morais
podem ser explicados tanto como resposta a questões evolutivas (em relação à
sua gênese) quanto como resposta a razões epistêmicas (em relação à sua
validade).
A validade não é uma
propriedade natural e verdades sobre raciocínios válidos não são fatos
naturais. Portanto, devemos rejeitar o naturalismo metafísico. No
entanto, ao rejeitar o naturalismo, não precisamos adotar uma forma de
platonismo, que alguns acham misterioso. Não é preciso defender que
verdades sobre raciocínios válidos existam em sentido ontológico, nem
precisamos recorrer a uma explicação em termos de uma intuição quase-perceptual
misteriosa. Nossa resposta à validade não é resultado de que objetos abstratos
causam em nós uma percepção. Podemos formar crenças verdadeiras sobre validade
sem que haja um processo causal, simplesmente por raciocinarmos corretamente. E
essa capacidade para raciocinar corretamente pode ter se originado
evolutivamente a partir de formas mais simples de raciocínio.
X. RACIONALISMO
De acordo com racionalistas
epistêmicos, visto que o conceito de razão não é natural, mas
irredutivelmente normativo, certas sentenças declaram verdades irredutivelmente
normativas. Se nossas crenças são ou não
justificadas isso depende da razão pela qual nós temos essas crenças. Nossas
crenças podem se formar de formas que as tornem prováveis de serem verdadeiras,
como quando nossas faculdades estão funcionando bem em condições normais, ou de
formas que não são confiáveis, como quando as formamos em estado hipnótico ou
quando as temos só porque desejamos muito acreditar assim. A origem de algumas
de nossas crenças pode remontar parcialmente à seleção natural. Com base
nisso, alguns propuseram o argumento naturalista a favor do ceticismo
normativo. De acordo com esse argumento, visto que a seleção natural teria
nos dispostos a ter crenças normativas independente de seus valores de verdade,
não estamos justificados a acreditar que essas crenças sejam verdadeiras.
A seleção natural poderia ter sido
uma influência que distorce nossas crenças, eliminando a confiabilidade delas.
No entanto, apesar de podermos defender que nossas crenças epistêmicas
normativas foram evolutivamente vantajosas e que foi vantajoso responder a
razões epistêmicas, isso não implica que foi vantajoso crer que nós temos
razões epistêmicas. Para serem capazes de responder a razões epistêmicas, os
primeiros seres humanos não precisavam ter o conceito de razões epistêmicas.
Além disso, o cético precisaria argumentar que a seleção natural não só nos deu
habilidades para ter as crenças que temos, mas que ao fazer isso, ela produziu
em nós crenças no sentido forte de determinar seu conteúdo.
O argumento cético não se aplica às
nossas crenças normativas. Uma crença normativa do tipo “quando certos fatos
implicam que alguma crença deve ser verdadeira, esses fatos nos dão razão para
ter essa crença”, não poderia ser inteiramente produzida por nenhuma série de
pequenas mudanças genéticas. Além disso, poderíamos responder a razões sem
precisar ter essa crença normativa, de modo que ela nada acrescentaria a uma
vantagem evolutiva. Além disso, uma crença normativa como essa não é sobre
características do mundo empírico, mas é uma verdade necessária. Nossas
habilidades para ter crenças normativas podem ter se formado por evolução, mas
essas habilidades, ao nos permitir ter crenças matemáticas sofisticas, por
exemplo, precisam ter ido muito além de meramente serem governadas pelas leis
da seleção natural. A evolução pode nos ter dado asas, mas passamos a usar
essas asas para voar longe e descobrir novas verdades. Descobrir verdades sobre
lógica modal ou aritmética sofisticada não pode ser algo completamente
explicável como produto da evolução.
Além disso, nós sabemos que dois
mais dois são quatro ou que algo não pode ser ao mesmo tempo completamente
verdadeiro ou falso, e podemos saber que essas crenças são verdadeiras ainda
que não soubéssemos como sabemos disso. Isso se aplica às nossas crenças
normativas, como a de que, quando certos fatos implicam que alguma crença deve
ser verdadeira, então isso nos dá uma razão decisiva para ter essa crença. O
cético teria que argumentar que não temos nenhuma maneira de saber que crenças
normativas como essa são verdadeiras, mas isso é mais implausível do que a
posição que o cético quer criticar. Além disso, o cético teria que dizer que
devemos acreditar que não há nada em que devemos acreditar, e isso é uma
autocontradição.
Se nossas crenças normativas foram
em sua maior parte produzidas por forças evolutivas, então essas crenças
estariam relacionadas à nossa sobrevivência e transmissão de genes, por exemplo,
seria esperado que ter filhos fosse considerado um dever e escolher não ter
filhos fosse considerado algo errado. Mas não é isso que ocorre, muitos que
decidem não ter filhos são respeitados ou até admirados. É verdade que muitas
crenças morais estão alinhadas com razões evolutivas, é o caso da condenação do
incesto, mas disso não se segue necessariamente que a razão de termos essas
crenças é sua vantagem evolutiva. Em alguns casos, crenças morais nossas
parecem até mesmo opostas a forças evolutivas, como a condenação do adultério,
do estupro, o dever de cuidar dos mais velhos e a regra de ouro. Quase sempre é
possível inventar explicações evolutivas criativas, mas implausíveis, para a
origem dessas crenças morais.
Alguns autores como Sharon Street
argumentam que precisamos considerar não só a evolução biológica, mas também a evolução
cultural. Esse argumento cultural teria mais força se levarmos em conta as
crenças morais que levam comunidades a justificarem guerras, conquistas ou
expropriação de outras comunidades. Uma crença desse tipo poderia ser a de que
se deve sempre dar prioridade à própria comunidade ou tribo. No entanto, a
evolução cultural que se observa é justamente o oposto disso. Diversas culturas
adotam a regra do outro e historicamente caminhamos para considerar a
xenofobia, a colonização e o racismo como errados, bem como a desenvolvermos a
ideia de que todos são iguais e merecem os mesmos direitos. Parece, portanto,
razoável supor que ao formar crenças normativas, especialmente aquelas opostas
a forças evolutivas, estamos respondendo ade modo válido a razões epistêmicas,
o que favorece o racionalismo.
XI. ACORDO
Se a moral é objetiva, era de se
esperar que houvesse maior acordo em assuntos morais, assim como há na
matemática. No entanto, alguns argumentam que o que se observa é que há um
grande desacordo moral entre as pessoas, culturas e tempos históricos, o que
denominamos de argumento do desacordo moral. Diante disso, o mais
correto seria defender é que, entre pessoas bem-informadas, pensando de forma
racional e tendo clareza dos conceitos envolvidos, haveria maior acordo moral.
Assim, quando encontramos desacordo moral esse desacordo, segundo o realista,
poderia ser explicado apontando que falta alguma informação, ou que alguma
pessoa não está pensando racionalmente ou que falta clarificar melhor os
conceitos. Como considerado, muitos discordam que existam verdades normativas
porque não compreendem o conceito de razão normativa ou por confundiram razões
normativas com razões motivacionais ou psicológicas.
Um antirrealista moral teria
que defender, assim, não só que há desacordo moral, mas que em condições
ideais, mesmo após cuidadosa reflexão bem-informada e racional, as pessoas
continuariam discordando sobre assuntos morais fundamentais. Intuicionistas defendem
que em condições ideais, mesmo que houvesse alguma discordância moral, não haveria
discordâncias morais profundas. De acordo com o que podemos chamar de visão
da convergência, se todos soubessem todos os fatos não-normativos
relevantes, usassem os mesmos conceitos normativos, entendessem e
cuidadosamente refletissem sobre os argumentos relevantes e não fosse afetado
por nenhuma influência que distorça suas crenças, eles teriam crenças
normativas similares. Parece ser exatamente o caso que em condições ideais, quase
todos concordariam que o não devemos infligir sofrimento imerecido a alguém,
que torturar uma criança por diversão seria errado, que não se deve matar uma
pessoa inocente ou que temos razões para evitar colocar a nós mesmos em agonia
sem propósito. Pode até haver discordâncias sobre a aplicação desses
princípios, mas no geral, espera-se que em condições ideais concordaríamos
sobre eles. Alguns argumentam, no entanto, que crenças morais mudaram ao longo
do tempo, mas isso parece apoiar ainda mais a visão da convergência. Ao longo
do tempo, estamos aprendendo a pensar melhor sobre a moral e fazendo progresso
e chegamos a conclusões, por exemplo, de que a escravidão é errada ou de que
todos os seres humanos são iguais.
XII. NIETSCHE
Um filósofo que parece apresentar um
grande desafio à visão da convergência é Friedrich Nietsche. Dado que
Nietsche foi um grande filósofo, é difícil entender como ele defendeu coisas
que parecem tão oposta ao que é amplamente aceito moralmente. Nietsche defende
em alguns lugares que o sofrimento é intrinsicamente bom, de que não devemos
ter consideração pelos fracos e oprimidos, que devemos viver de modo arriscado
construindo casas ao redor de vulcões etc.
É importante lembrar, contudo, que
Nietsche fez declarações como essa principalmente no final de sua vida, quando
a loucura afetava sua mente. Além disso, Nietzche parece se basear em crenças
metafísicas problemáticas, como o pessimismo de Schopenhauer, a ideia de eterno
retorno ou de que tudo que acontece é bom e será redimido. Em outras ocasiões,
no entanto, Nietsche faz declarações morais que contradizem suas próprias
concepções. Não temos, pois, boas razões para pensar que Nietsche discordaria
de crenças morais importantes em condições ideais.
XIII. O QUE MAIS IMPORTA
Podemos nos perguntar que papel
nossa geração desempenha em fazer com que a história humana tenha realmente
valido a pena. Podemos perguntar se o passado da história humana até aqui foi
mais positivo que negativo. Independente da resposta, podemos construir um
futuro positivo e, caso o passado tenha sido negativo, pode ser que um bom
futuro faça com que toda história humana tenha, no final das contas valido a
pena. Mesmo que o futuro não seja suficiente para compensar os males do
passado, ainda assim pode valer a pena construir um futuro bom para as futuras
gerações.
Algumas coisas realmente importam e
existem maneiras melhores e piores de viver. Depois de muitos milhares de anos
respondendo a razões de formas que os ajudaram a sobreviver e a reproduzir-se,
os seres humanos podem agora responder a outras razões. Somos uma parte do
Universo que está começando a se compreender. E podemos compreender
parcialmente não apenas o que é de fato verdade, mas também o que deveria ser
verdade e o que poderíamos tornar verdadeiro. O que mais importa agora é
evitarmos acabar com a história humana, é preciso combater o aquecimento global
e evitar que uma guerra nuclear destrua a humanidade. Se não houver seres
racionais em outros lugares, pode depender de nós e dos nossos sucessores se
tudo valerá a pena, porque a existência do Universo terá sido, em geral, boa.
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