PENSAMENTO DE HEIDEGGER: INTRODUÇÃO
Martin Heidegger foi um filósofo alemão
que viveu entre 1889 e 1976. É considerado por muitos como um dos maiores
filósofos do século XX. A princípio sua intenção era ser padre e assim cursou
Teologia na Universidade de Freiburg, sendo aluno de Edmund Husserl (ALEXANDRE,
2015). Assim como Immanuel Kant na Crítica da Razão Pura promove uma revolução
epistemológica ao estabelecer o começo do conhecimento nos sentidos, mas sua origem nas categorias a priori da Consciência (KANT, 1781), Heidegger, em
Ser e Tempo, lança as bases para uma nova ontologia fundamental que identifica
o ser dos entes com o significado.
Para compreender sua ontologia, é
necessário entender como ele desconstrói ou destrói por meio da suspensão
fenomenológica (εποχη) as interpretações
sedimentadas sobre o ser dos entes oriundos da filosofia grega. Para tanto,
será preciso investigar o processo histórico através do qual o substancialismo
aristotélico vai dando lugar a outras concepções sobre a essência das coisas. A
problemática do ser não deixa de estar também relacionada a discussões
gnosiológicas.
Nas Categorias, Aristóteles define a
essência ou “substância segunda” como dizendo
respeito à espécie (aquilo
dentro do qual estão incluídas as substâncias primárias) e ao gênero (aquele dentro do qual
estão incluídas as próprias espécies). Ele observa que as substâncias não têm graus, de modo
que um ser humano, por exemplo, não pode ser “mais ser humano” do que outro.
Assim, a essência é uma categoria que reúne entes de uma mesma espécie ou
gênero (ARISTÓTELES, 384-322 a.C., 2010). A essência é concebida como algo que
o substrato possui e que o faz ser o que ele é tornando-o pertencente a uma
classe de substratos que têm em comum a mesma natureza (JOSEPH, 2014).
A essência,
embora concebida por uma classificação feita através de um processo mental, é
abstraída a partir dos sentidos, de modo que, para a ontologia aristotélica, o locus do conhecimento está no objeto.
Desse modo, Aristóteles entendia que o objeto do conhecimento é anterior ao
conhecimento. Essa visão ontológica e gnosiológica vai ser reafirmada pelo
pensamento escolástico, como em Tomás de Aquino e sua concepção de que a
essência precede a existência nos seres finitos e também pelos
empiristas, como John Locke, que entende que a origem de todo material do
conhecimento vem da experiência (RUSHDOONY, 1987).
Platão, por
outro lado, concebeu a essência em termo de “ideias”. Para ele, as ideias eram
a realidade suprassensível cujo mundo sensível é só uma representação fenomenal
das mesmas. Essas ideias ou essências seriam eternas e imutáveis, sendo
ontologicamente independentes do tempo, do espaço e da consciência cognoscente
(HODGE, 2001). No capítulo VII da República, Platão ilustra isso por meio da
alegoria da caverna, onde ele retrata Sócrates dizendo a Glauco que o mundo
visível é somente sombra de uma realidade inteligível à qual a alma ascende por
meio da filosofia. É dito do Bem como a Ideia suprema que dispensa a verdade e
a inteligência (PLATÃO, 2011). Assim, tanto Aristóteles, quanto Platão,
concebem o ser como uma essência imutável, do qual o mundo sensível é apenas
matéria ou representação.
No Teeteto,
Platão apresenta Sócrates em um diálogo levantando outra questão relevante
sobre o ser, que não pode ser desconsiderada ao se pensar na formulação de uma
ontologia: a disputa entre Heráclito e Parmênides. De certo modo, a própria
metafísica platônica é uma tentativa de lidar com o problema entre esses dois
filósosfos. Sócrates diz a Teodoro que enquanto Heráclito ensina que tudo é
devir, Parmênedes ensina que tudo é uno e imutável (PLATÃO, 2015).
Enquanto os do
partido de Heráclito, seguindo o relativismo de Protágoras, entendiam que nada
é, tudo é movimento, Parmênides, argumentado que as coisas precisariam se
diferir pelo não-ser, sendo o não-ser um nada ser, chegou a um monismo rígido
compreendendo não haver uma pluralidade de seres no real (GEISLER, 2015).
Embora a concepção
heraclitiana do devir permaneça nas perspectivas relativistas sobre o ser, a
partir da dicotomia platônica, a mutabilidade dessa concepção vai ser relegada
ao mundo das coisas sensíveis, enquanto a essência vai ser compreendida pela
tradição filosófica em geral de um modo parmenediano, como uma substância
imutável e ontologicamente independente do espaço-tempo e da consciência.
No contexto filosófico em que
a Fenomenologia surge, havia duas grandes correntes na Tradição Filosófica em
relação ao sujeito e ao objeto que de alguma forma ou outra reverberam ou o
pensamento de Platão, mais próximo do subjetivismo e do idealismo ou o
pensamento de Aristóteles, mais próximo do realismo e do objetivismo, ou o
pensamento de Parmênides, com uma ênfase maior no universal e no absoluto ou o
pensamento de Heráclito, mais próximo dos particulares e do relativo.
A perspectiva realista pode ser
definida como aquela que concebe que o locus de conhecimento e
significado está nas coisas em si, em uma essência substancial na realidade
anterior ao sujeito. Tal posicionamento foi representado por empiristas, como
Francis Bancon, cuja doutrina concebia a origem do conhecimento na manipulação
da natureza pela experimentação. Em sua ênfase na objetividade, a Ciência
positivista buscou banir o máximo possível a influência da subjetividade na
construção de um conhecimento válido. A visão epistemológica do significado
habitando nas coisas, também propiciou uma concepção popperiana de verdade, e
uma busca de se aproximar através do teste da teoria pelo erro cada vez mais da
essência praticamente inalcançável que habitaria na realidade.
O realismo assume uma série de
pressupostos sem questionamento. A existência do mundo concreto, a suposição de
que o mundo que se manifesta a nós corresponde ao mundo concreto, que nossos
sentidos e cognição são apropriados para apreender a realidade e a existência da causalidade, tempo ou espaço são pressuposições que permanecem inquestionadas
no Realismo.
Outra corrente, por sua vez, via o sentido ou o conhecimento como
representações mentais ou cognitivas, sendo que o conhecimento ou o sentido
estava na construção representacional que a Consciência fazia da realidade. O
conhecimento, neste caso, seria uma construção do sujeito. O filósofo
representativo desta corrente teria sido René Descartes, que através da dúvida
metódica estabeleceu o Cogito como fundamento gnosiológico
primordial (DESCARTES, 2005). O grande equívoco do idealismo cartesiano teria
sido o solipsismo filosófico, que isolou o ego cogito do
mundo. Além disso, como observou Edmund Husserl nas Conferências de Paris,
vários pressupostos permaneceram inquestionados no processo metódico de
Descartes, como o próprio substancialismo. Descartes simplesmente presume sem
justificativa que a consciência é uma substância pensante (HUSSERL, 1929). Além
disso o “penso, logo existo” assume sem questionamento o princípio da
causalidade.
O filósofo que buscou conciliar a disputa epistemológica entre o Realismo e o
Idealismo, mas que acabou adotando uma espécie de Idealismo, foi o prussiano
Immanuel Kant. Kant partiu da ideia de que todo conhecimento começa com a
experiência, mas é encaixado em categorias a priori da Consciência. Ele
concebeu a Consciência como composta de estruturas lógicas apriorísticas. O
conhecimento, então, consistiria em apreender os elementos do mundo empírico
por meio da aplicação dos processos racionais da consciência, na união da
intuição da ordem do empírico com a razão. A razão pura seria aquela que contém
os princípios para conhecer algo absolutamente ‘a priori’. Kant fala, então, de
uma ‘forma do fenômeno a priori’, que estaria presente no espírito em geral,
independente da sensação (KANT, 1781).
Neste ponto, a filosofia kantiana acaba
por cair num certo idealismo, e a ideia de categorias gerais da consciência vai
ter reverberações na Psicanálise, no conceito de representantes pulsionais e na
Psicologia Analítica, na ideia de estruturas arquetípicas da psique universal.
O kantianismo ainda permanece gnosiologicamente problemático pois a afirmação
de que o noumena é incognoscível já
presume um conhecimento sobre o noumena, o
conhecimento de que o noumena não se
pode conhecer. Isso é uma contradição nos próprios termos (GEISLER, 2015).
Dentro de toda essa discussão do que seria a Consciência e de onde estaria o locus de
significado, sentido e conhecimento, a Fenomenologia de Edmund Husserl traz
dois conceitos importantes: a ideia de consciência intencional e a do a priori da correlação intencional. Enquanto a tradição
filosófica empirista reduzia a consciência ao sentido psicológico, os
cartesianos a colocavam como constructo isolado do mundo e os kantianos a viam
como estrutura categorial, Husserl concebia a consciência como inerentemente
intencional.
A ideia de intencionalidade já estava
presente no Psicologismo de Franz Brentano que concebia a intencionalidade no sentido
do voltar-se da consciência para os objetos representados para e na
consciência. Brentano falava de um objeto
intencional, isto é, o objeto é presente para a consciência no processo
em que ele se apresenta à mesma. Toda experiência psíquica se refere a um
objeto. No entanto, a psicologia intencional de Franz Brentano, concebia a
intencionalidade no sentido do direcionamento das representações, insistindo
numa espécie de idealismo.
Husserl é profundamente inovador. Diferente das teses psicologistas, Husserl
concebe a consciência como um ato, e não uma estrutura psicológica,
pois a consciência é transcendental. A consciência não é
estrutural, mas um verbo. Conhecer é direcionar a consciência para o objeto. É
nesse sentido que a Fenomenologia vai falar de Consciência Intencional. Cada Cogito tem em si
como visado o seu cogitatum. A propriedade fundamental da Consciência
é sempre ser consciência de alguma coisa. A intencionalidade
da Consciência é uma reorientação até a coisa, e isso é um traço constitutivo,
o ser da própria consciência. A Consciência, portanto, não é uma estrutura
fechada separada do mundo exterior, ela é aberta ao mundo e sempre direcionada
ao objeto. Pode-se falar então, de uma consciência pública, não existe uma cisão entre “interior” e
“exterior”, a experiência é vivida no mundo.
Mas Edmund
Husserl não cai no Idealismo tradicional, como se só a Consciência estivesse
direcionada para o mundo. O objeto também é objeto em referência a uma
consciência. Para todo ato de ver existe uma coisa vista, para todo observar há
um observado, para todo olhar há um olhado, para todo ouvir um ouvido, para todo
cheirar um cheirado, e para todo lembrar um lembrado. Assim, não basta falar
numa consciência intencional, é preciso identificar também a natureza
constitutiva dos objetos intencionais. É nesse sentido que se pode falar de uma
análise noético-noemática. Os atos de consciência (noeses)
e a coisa visada (noema), encontram-se numa correlação noético-noemática apriorística.
A intencionalidade faz
com que o ego puro projete atos intencionais que incidem no
objeto, que por sua vez está direcionado a consciência que o visa.
Husserl vai falar, então de um a
priori da correlação intencional, isto é, o sujeito e objeto surgem como
inseparáveis, não numa relação de duas anterioridades
separadas, nem numa dialética de antagônicos, mas como
uma correlação de emergências simultâneas e inseparáveis. O
foco não está mais na ênfase idealista no sujeito, nem na ênfase realista do
objeto, mas sim na correlação universal e apriorística eu-mundo. Existe uma
vinculação universal inexorável de correlação sujeito-objeto, sem o qual não
existiria nem “eu”, nem “mundo”. Essa correlação, portanto, está posta antes de
qualquer coisa, por isso a priori – anterior a qualquer
experiência. Isso não significa que as ‘coisas’ (embora essa não seja a melhor
palavra) não existiriam se não houvesse nenhum sujeito, mas sim que só pode
haver objeto se houver um sujeito que lhe doe sentido. Mas esse sentido não é
dado arbitrariamente por uma consciência idealista, antes é constituído na
própria aparição do fenômeno à consciência. Não existe, portanto, um objeto
visado sem uma consciência intencional que o vise, nem consciência intencional
sem um objeto intencional visado (GOTO, 2008).
Heidegger vai
além de Husserl. Influenciado por Dilthey, ele vai incluir a ideia de “mundo”,
“cosmovisão” ou “concepção de mundo” (DILTHEY, 1919/1992) e conceberá sua
ontologia dentro de um campo hermenêutico, de modo a conceber o ser dos entes
como significado. Assim, Heidegger vai conceber o Ser-aí como ser-no-mundo. O
Ser-aí está sempre imerso numa trama de significados, numa cosmovisão que
orienta sua vivência.
Heidegger
designa o Ser-aí como Existência (Movimento para fora) ou ainda, Ser-no-mundo.
Ser-no-mundo significa a correlação homem-mundo, ser e mundo são
correlacionados assim como o são o objeto e sujeito intencionais de Husserl,
não existe ser sem mundo, nem mundo sem o Ser. Ser no mundo é uma condição
ontológica do Ser-aí e, portanto, não é uma condição que ora existe, ora não,
como se o homem pudesse “ser” e, além disso, possuir ou não relação com o mundo
a depender de seu desejo. O Ser-aí nunca é livre de ser-em. Tecer relações com
o mundo só é possível porque o Ser-aí só existe no mundo, sendo como é. Esta
condição implica que outros entes possam se deparar “com” o Ser-aí à medida que
conseguem se mostrar por si mesmos, dentro de um mundo (HEIDEGGER, 1993).
Sobre a
questão do ser, é importante distinguir aquilo que é ôntico e aquilo que é
ontológico. A palavra ‘ôntico’ se refere àquilo que diz respeito às coisas, aos entes e a
palavra ‘ontológico’ diz respeito ao Ser e seu horizonte de possibilidades. Nós
somos o ente para quem a questão do Ser se manifesta. O Dasein tem o ser como
tarefa ou questão. Assim, Ôntico é aquilo que é perceptível diretamente.
Ontológico é aquilo que o Ser pode ser ontologicamente, é o que o Dasein é em
si mesmo. Pensando no humano, podemos falar também, de suas condições
existenciais e de suas condições categoriais. As condições existenciais são
aquelas condições que dizem sobre o Ser, e as condições categoriais são
significações que não dizem sobre o Ser. O mundo, por sua vez, diz respeito à
concreção fática permeada por uma rede de sentidos que constituem a
experiência.
Em Ser e
Tempo, Heidegger, estabelece três primados ao levantar a questão do Ser, o
primado ontológico segundo o qual o Ser-aí é em si mesmo ontológico, o primado
ôntico segundo o qual o Ser-aí é determinado em seu ser pela
existência e o primado ôntico-ontológico segundo o qual o Ser-aí é originariamente constitutivo
de uma compreensão do ser de todos os entes que não possuem o modo de ser
do do Ser-aí (HEIDEGGER, 2015). O Ser-aí é o ente que em sendo está em jogo o seu próprio
Ser, pois: (i) sendo, o Dasein estabelece uma relação de ser com tudo o que é;
(ii) sendo, o Dasein realiza possibilidades de ser; e (iii) sendo, o Dasein
pode deixar de ser. A essência do Dasein é a existência.
Ao levantar a questão do Ser,
Heidegger prossegue mostrando sua submissão ao método fenomenológico. Ele
observa que seu método de investigação envolve a remoção das interpretações
sedimentadas da tradição ontológica para se chegar às experiências originárias
do que significa “ser” a partir da suspensão fenomenológica. Heidegger define o
método fenomenológico como deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se
mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo (HEIDEGGER, 2015).
Enquanto
para Tomás de Aquino a essência precede a existência nos seres finitos e
posteriormente para Jean Paul Sartre a existência precede a essência, na Fenomenologia
Existencial de Heidegger, a essência do Ser é a existência. O Ser-aí passa a
ser definido como aquele no qual a essência e a existência se identificam.
Heidegger dá duas caracterizações iniciais para o Ser-aí: (1). A essência do
Ser-aí é a sua existência e; (2). O ser do Ser-aí é sempre meu (HEIDEGGER,
2015).
A existência
é o movimento para fora, a condição do Ser-aí de estar constantemente às voltas
com o seu ser, se conduzindo no mundo, estando numa trajetória existencial a
partir das relações que estabelece. Existência é a capacidade de ser aquilo que
se projeta ser. A Existência ou Ser-aí possui o significado de que percebemos
que somos, e não apenas somos (SAFRANSKI, 2005). O Ser-aí é a pré-sença
(Dasein) que engloba o indivíduo no conjunto como existência humana. Apenas o
Ser-aí existe, pois, são próprios somente a ele os modos de ser, a realização
de modos de ser na articulação eu - mundo. Existir é realizar modos de ser, é
responder ao mundo que se apresenta a nós.
Enquanto os
entes dados se localizam no mundo, nós somos em e habitamos o mundo, nos
relacionando com ele. O Dasein não se localiza no mundo, ele habita mundo.
Habitar mundo é construir com o mundo uma trama de significados, é
“encontrar-se”. Isso inclui a (i) disposição afetiva= modos de o mundo nos
atingir; (ii) compreensão: Paisagem do mundo que se mostra ao sujeito no mesmo
momento que o atinge; e (iii) linguagem= referir-se ao mundo, posicionar-se no
mundo, se manifestar no mundo, responder ao mundo.
Sobre a
disposição afetiva escreve SAFRANSKI (2005): “Sempre somos disposicionados de
alguma forma. Podemos entrar em disposições, mas essencial é que elas se
instalem se insinuem, nos rondem nos assaltem. Não as dominamos. Na disposição
descobrimos os limites de nossa autodeterminação.” (p. 199)
A compreensão,
por sua vez, é uma das estruturas existências em que o Dasein se sustenta. O
Dasein é de tal maneira que ele sempre compreendeu ou não compreendeu ser dessa
ou daquela maneira. Como tal compreensão ele “sabe” a quantas ele mesmo anda,
isto é, as quantas andam o seu poder-ser. Esse “saber” não nasce primeiro de
uma percepção inerente a si mesmo, mas pertence ao ser do Dasein que, em sua
essência, é compreensão. É somente porque o Dasein é na compreensão de seu
poder ser que ele pode se perder e se desconhecer (HEIDEGGER, 1993).
Já a
linguagem é o pronunciamento do discurso e o discurso, por sua vez, é a articulação
da compreensibilidade de ser-no-mundo, portanto, é sempre carregada de
significado e sentido. O discurso é partilhado explicitamente na linguagem,
tornando possível a partilha das interpretações do Ser-aí (HEIDEGGER, 1993).
O significado
se refere às interpretações construídas na trama existencial. O sentido se
refere à direção que o Dasein dá à sua trajetória existencial. A circularidade
hermenêutica, por sua vez, diz respeito à questão de que a compreensão (as
facetas do mundo) possibilita a interpretação (construção de significados), e a
interpretação possibilita a manifestação de novas facetas do mundo. E
projetar-se significa lançar-se no mundo em uma dada direção (sentido). O
sentido será buscado como algo presente, que existe no mundo ou num mundo
transcendental imaginário, onde é possível se agarrar e orientar-se (SAFRANSKI,
2005). Heidegger, contrariando o realismo e se opondo ao mito da neutralidade,
observa que é a Consciência a partir de seus pressupostos quem atribui significado
ao mundo:
"A interpretação de algo como algo funda-se,
essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A
interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de
pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação
textual exata, se compraz em se basear nisso que 'está' no texto, aquilo que,
de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião
prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete." (HEIDEGGER,
2012; pp.211-212)
E assim, Heidegger também se contrapõe ao objetivismo e ao
mito da neutralidade cientificistas:
"Certamente não experimentaremos a essência da ciência,
na sua mais íntima necessidade, enquanto, falando do 'novo conceito de
ciência', conferirmos a uma ciência demasiado hodierna a auto-suficiência e a
ausência de pressupostos...Toda a ciência é filosofia, quer ela o saiba e o
queira quer não. Toda a ciência permanece presa a este início da filosofia. É a
partir dele que ela cria a força da sua essência, posto que ainda permaneça em
geral à altura deste início." (HEIDEGGER, 1933, pp.4-5).
Heidegger
também trata de profundas questões existenciais, dando lugar central em seu
pensamento à ideia de angústia (angst).
Ele observa que normalmente nós somos como se é. A impropriedade acontece
quando nós nos tomamos como entes simplesmente dados, o que seria uma queda no
mundo. Ele se refere a isso como a deixa do ser, a ocultação do ser na vida
cotidiana. Não obstante, “a Impropriedade seria a forma original de nosso
Dasein, e não apenas no sentido (onticamente) habitual, mas também do
ontológico. Pois a impropriedade é um existencial como o ser-em.” (SAFRANSKI,
2005, p. 203).
Para
discutir tais questões existenciais, a morte ganha um importante papel no
pensamento de Heidegger. Nós vivemos a temporalidade na certeza da nossa morte.
Somos incompletos até que nos completemos com a morte, e na vida é possível ser
outro quem. Ser-para-a-morte significa que o Ser-aí é o ente, que sendo sempre
pode deixar de ser. É a condição de ser de estar à volta com o horizonte de
possibilidades, sempre junto com a possibilidade de deixar de ser. É estar às
voltas com a possibilidade da impossibilidade da existência. É a condição de
estarmos num processo de possibilidades que termina com a possibilidade da
morte. Nós nos determinamos no momento em que morremos. As coisas se determinam
quando nascem, mas nós nos completamos com a morte.
“A morte não é o fim da vida, mas o ser-para-o-fim, ela não
está na nossa frente como a derradeira horinha, mas está dentro da nossa vida,
pois sabemos do nosso morrer. A morte é... a possibilidade da impossibilidade
da própria existência... A relação com a morte é o fim de toda a relação. O
pensar na morte é o fim de todo o pensar. A morte não é um acontecimento no
tempo, mas o fim do tempo” (SAFRANSKI, 2005, p. 205).
O único afeto que não nos coloca no mundo é a angústia. A angústia é a condição que emerge da experiência de rompimento da trama significativa. É a disposição afetiva da indeterminação de nós mesmos e da realidade colocada pelo rompimento com o mundo, a suspensão do mundo e dos significados a ele atribuídos e a percepção da incerteza da existência. A angústia é a condição de desalojamento existencial que emerge de uma ruptura da trama significativa do mundo. A compreensão da angústia é o poder-ser, é a abertura. “A angustia rompe a relação com o outro, e faz o individuo isolado cair fora das relações de familiaridade com o mundo.” (SAFRANSKI, 2005, p. 192).
A linguagem da
angústia é o silêncio. A nossa condição ontológica é de desalojamento
existencial. A angústia pode conduzir a um vazio paralisante ou à apropriação
da nossa condição de ser (propriedade). A propriedade é nossa condição autêntica
de ser (o ser autêntico), nossa condição própria ontológica da existência. É se
perceber nessa condição que nós somos (ser no mundo), e direcionar-se na
realidade em um mundo de possibilidades.
O mundo é uma
concreção fática permeada por um todo hermeneuticamente consistente. O mundo
tem a capacidade de mundar. Isto é, o todo significativo do mundo é capaz de fazer surgir um mundo, um
conjunto de relações de sentido. O mundo pode possuir sentido ôntico quando é
compreendido como o contexto onde o Dasein vive como Dasein, e não como ente
que o Dasein em sua essência não é, mas pode vir ao seu encontro dentro do
mundo. Mundo possui aqui um significado pré-ontologicamente existenciário.
Deste sentido, resultam diversas possibilidades: mundo ora indica o mundo
“público” de nós, ora o mundo circundante mais próximo, “doméstico” e próprio.
O adjetivo mundano, por sua vez, designa sempre um modo de ser do Dasein e
nunca o modo de ser de um ente simplesmente dado (HEIDEGGER, 2015).
Por fim, Heidegger também discute a noção de cuidado (sorge), considerando-o a essência fundamental da existência do ser-aí. Existem dois modos positivos de cuidado: (i) Cuidado substitutivo= Tomar do outro aquilo do qual o outro se ocupa (o cuidado substitutivo autoritário é quando o outro é colocado no modo como se acha que ele deveria ser, é determinar para o outro quem ele é.) e (ii) Cuidado antepositivo= Colocar-se diante do outra como alteridade que somos numa interrogação pelo sentido da existência (HEIDEGGER, 2015).
Assim, buscando investigar a questão do ser, Heidegger toma como fio condutor o ser-aí, o ente que nós mesmos somos. Compreende o ser-aí como ser-no-mundo, cujo modo de ser fundamental é o cuidado. Descobre como existenciais do ser-aí, a disposição afetiva, a compreensão e a linguagem. A partir disso, constata o modo da impropriedade e da decadência do ser-aí em sua cotidianidade. Por fim, mostra como a angústia coloca o ser-aí diante do nada, abrindo a possibilidade de que ele tome a decisão por uma vida autêntica.
Por fim, Heidegger também discute a noção de cuidado (sorge), considerando-o a essência fundamental da existência do ser-aí. Existem dois modos positivos de cuidado: (i) Cuidado substitutivo= Tomar do outro aquilo do qual o outro se ocupa (o cuidado substitutivo autoritário é quando o outro é colocado no modo como se acha que ele deveria ser, é determinar para o outro quem ele é.) e (ii) Cuidado antepositivo= Colocar-se diante do outra como alteridade que somos numa interrogação pelo sentido da existência (HEIDEGGER, 2015).
Assim, buscando investigar a questão do ser, Heidegger toma como fio condutor o ser-aí, o ente que nós mesmos somos. Compreende o ser-aí como ser-no-mundo, cujo modo de ser fundamental é o cuidado. Descobre como existenciais do ser-aí, a disposição afetiva, a compreensão e a linguagem. A partir disso, constata o modo da impropriedade e da decadência do ser-aí em sua cotidianidade. Por fim, mostra como a angústia coloca o ser-aí diante do nada, abrindo a possibilidade de que ele tome a decisão por uma vida autêntica.
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REFERÊNCIAS
ALEXANDRE, Renato. A Revolução do Amor. Barueri: Ágape,
2015.
ARISTÓTELES (384-322
a.C.). Categorias in Órganon. Edipro,
2º ed. 2010.
DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: L&PM
Editora, 2005.
DILTHEY, Wilhelm. Os
Tipos de Concepção de Mundo. Covilhã: Lusofia, 1919/1992.
GEISLER, Norman. Teologia Sistemática 1. Rio de Janeiro:
CPAD, 2015.
GOTO, Tommy Akira (2008).
Introdução à Psicologia Fenomenológica.
São Paulo: Paulus.
HEIDEGGER, Martin. A autoafirmação da universidade alemã.
Covilhã: Lusosofia, 1933.
_________________Ser
e Tempo. Petrópoles: Vozes, 2015.
HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos,
2001.
HUSSERL, Edmund. Conferência de Paris. Covilhã:
Lusosofia, 1929.
JOSEPH, Miriam. O Trivium. São Paulo: É Realizações,
2014.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Membros do grupo
de discussão Acrópolis (Filosofia) – versão eletrônica, 1781.
PLATÃO (429-347 a.C.). A República. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011.
____________________ Teeteto. Domínio Público, 2015.
RUSHDOONY, Rousas John. Revolt Against Maturity. Vallecito: Ross
House Books, 1987.
SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem
e o mal. São Paulo: Geração Editorial, 2005.
SCHAEFFER, Francis. A morte da razão.
SCHAEFFER, Francis. A morte da razão.
*Foram inclusas anotações de aula e trechos de trabalhos realizados para a faculdade e este texto foi usado como introdução para meu projeto de TCC
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