A FUNÇÃO SOCIAL DA FILOSOFIA - MAX HORKHEIMER (RESENHA)

 

O texto a seguir foi construído a partir de anotações de aulas da disciplina de Filosofia Social do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia ministrada pelo professor doutor Rafael Cordeiro Silva em 2023. A partir disso, o texto a seguir consiste em uma resenha do texto "A Função Social da Filosofia” (1940) do filósofo Max Horkheimer.   

A tese central do texto consiste em entender que filosofia é essencialmente crítica da realidade. Diferente do que ocorre em ciências da natureza e ciências mais exatas, na filosofia há problemas no que diz respeito a definir o que seja tal campo do conhecimento. Ademais, enquanto em outras ciências o que é estudado são as teorias mais atuais e recentes, os estudantes de filosofia se voltam aos filósofos antigos. Nas ciências da natureza, há uma ausência de discussão em termos de fundamentos, como a definição e o método. Enquanto há consenso entre os praticantes das ciências naturais quanto aos seus métodos, definição e método, na filosofia não existe esse consenso. 

Horkheimer considera diferentes propostas de definições de filosofia. Primeiro, ele considera a definição presente em Platão e Kant, por exemplo, que veem a filosofia como uma ciência exata que possui um método, objeto, critério de verdade e campo de investigação próprios. Essa é também a posição de Edmund Husserl em seu último período. 

 Uma segunda forma de pensar a filosofia é entendê-la como uma síntese da ciência, posição que remonta a Comte e Spencer, e aparece de alguma forma em Bertrand Russell, Ernst March e Leonard Hobhouse. Assim, enquanto para os primeiros, a filosofia é uma ciência independente, para os segundos a filosofia é uma ciência auxiliar. Essa última é a posição da filosofia analítica que entende a filosofia como uma disciplina auxiliar da ciência por meio da clarificação da linguagem, algo que remonta a Wittgenstein e ao Círculo de Viena.  

Uma terceira visão sobre o que é a filosofia é a de que ela tem como função introduzir uma ordem estética no pensamento, estando relacionada com a arte e a beleza. Esta visão está presente de algum modo em Max Scheler, Friedrich Schelling e Henry Bergeson. 

Essas três visões têm a ver com a definição de filosofia, mas há também debate sobre qual é o conteúdo da filosofia. Primeiro, há aqueles que pensam que a filosofia tem a ver com os conceitos e leis supremas como o ser e Deus, trata-se da filosofia como metafísica, algo que aparece nas escolas aristotélicas e neotomistas.  Uma segunda posição, presente em Kant, é de que a filosofia se aplica ao a priori e discute os problemas de como o empírico se relaciona às condições a priori da experiência. Uma terceira visão entende a filosofia como uma ciência da experiência interior. Uma quarta proposta aparece nos positivistas lógicos, que veem a filosofia como análise linguística, a exemplo de Rudolf Carnap. Uma quinta visão é àquela presente no que é denominado como “filosofia da vida”, segundo a qual a filosofia deve se dedicar à discussão de valores universais, como Wilhelm Dilthey. 

Uma outra discussão diz respeito ao debate sobre qual é o método da filosofia. Pode-se considerar três métodos diferentes: (i) a análise de conceitos e redução aos elementos últimos (neokantismo); (ii) empirocriticismo (empirismo lógico - assemelha-se a i); (iii) dialética hegeliana; (iv) método fenomenológico (Husserl e Heidegger). Vê-se, pois, uma ausência de consenso tanto em relação ao que é filosofia, sua definição e método. 

 Thomas Kuhn entende que uma ciência madura é algo em que há um consenso entre seus praticantes em relação à sua definição, método e conteúdo, as humanidades no geral seriam pré-ciências na qual não existe esse consenso. A filosofia é uma ideia vaga na qual não há consenso nem quanto à definição, nem quanto ao conteúdo nem quanto ao método. As ciências particulares surgem do processo vital da sociedade, é a dinâmica histórica que dá nascimento às diversas ciências particulares. Isso não significa que toda ciência esteja orientada à satisfação de problemas urgentes. Nem tudo que a ciência produz serve a propósitos utilitários imediatos. Apesar disso, tudo que a ciência produz possui um potencial de aplicabilidade mesmo que indeterminado e não conhecido no momento. As necessidades sociais influenciam o progresso técnico-científico.  

No imaginário do senso comum, a filosofia tem resposta para tudo, prestando-se ao êxito como as demais ciências. Horkheimer chama de “inimigos da filosofia” aqueles, como os filósofos analíticos do início do século XX, que veem a filosofia como uma ciência auxiliar que tem por objetivo clarificar a linguagem. Essa definição é excludente pois exclui tudo que não se enquadra em uma linguagem rigorosa, rotulando tais coisas como metafísica, algo ao lado da poética e da religião. 

Horkheimer ao apresentar seu entendimento do que vem a ser a filosofia, vale-se de Sócrates, pois sua figura se caracterizou por uma relação tensa com a realidade. O elemento social da filosofia é, para Horkheimer, manter essa relação tensa como a realidade. Cientistas, por exemplo, foram perseguidos, não por suas ideias científicas, mas por suas ideias filosóficas. Galileu, por exemplo, não foi perseguido por causa do heliocentrismo em si, mas por questionar a concepção filosófica de mundo que justificava a hierarquia eclesiástica e social a partir da ideia da centralidade da terra. O filósofo tem de estar em constante tensão com a realidade que nos é apresentada como algo natural. As pessoas no senso comum lidam com a realidade como se ela fosse natural, mas a realidade é um constructo. Os hábitos e costumes não devem ser aceitos sem crítica.  

Os inventos tecnológicos modificam o costume das pessoas. Por causa do rápido desenvolvimento tecnológico, os costumes mudam rapidamente. A racionalização do mundo pela ciência dá fim a certos costumes e cria outros, como ocorre no campo da arte. Uma das consequências do processo de racionalização é a burocratização, que faz com que toda vida humana seja regulamentada, algo que atinge a vida, a ciência e as artes. No cinema, por exemplo, o produto artístico é planejado por experts. Apesar do rápido desenvolvimento tecnológico, isso não significou que o modo de pensar o humano progrediu, na verdade ele até mesmo regrediu. O progresso técnico não foi acompanhado por um amadurecimento das faculdades criadoras do humano, o progresso técnico até mesmo mata essa capacidade e criatividade, tornando a vida mais mecânica.  

Aquilo que é assimilado pelo processo científico é depois naturalizado, tomado como óbvio e dado. Os novos hábitos trazidos pela tecnologia quando consolidados são transformados em natureza. Nós nos acostumamos ao impacto tecnológico. Embora Horhkeimer diga não compartilhar de uma visão pessimista da tecnologia, sua visão pode ser considerada em certo sentido pessimista, a exemplo de sua referência a uma expressão que alude a Schopenhauer sobre a vontade poder ser cega. A história pode caminhar para um rumo que não pensamos, não há telos nenhum na História. 

Horkheimer, assim como Marcuse, distingue dois tipos de progresso: (i) progresso técnico; (ii) progresso humanitário. O progresso técnico é visível, mas não é acompanhado por um progresso humanitário. A oposição entre progresso técnico e progresso humanitário é uma das marcas do pensamento da Teoria Crítica. Horkheimer associa o progresso técnico, não ao progresso humanitário, mas à guerra. O progresso técnico resultou na guerra, a racionalização técnico-científica resultou na desrazão. O racionalismo individual pode vir acompanhado de um completo irracionalismo geral. O desenvolvimento tecnológico não trouxe felicidade, mas guerra. 

Horkheimer considera que a filosofia está em uma tensão com a realidade, a exemplo do que fez Sócrates a não aceitar os deuses que estavam postos. Hoje, no entanto, a situação do mundo não se coloca como uma discussão sobre os deuses, no entanto no nosso cenário social ainda há a crença de certas leis gerais e eternas que precisam ser criticamente colocadas em questão. Na medida em que razão e realidade não estão conciliadas, havendo questões irracionais na realidade, o filósofo ainda precisa tomar uma posição crítica, assim como fez Sócrates. 

Diferente de disciplinas como a física, a filosofia não tem um campo fixo bem delimitado, pois ela lida com os modos de vida e com a hierarquia de valores (tradições sociais) que constitui um problema para a filosofia. Horkheimer separa a atividade científica da atividade filosófica. Enquanto a ciência surge para atender certas necessidades que surgem do processo histórico, a filosofia se posiciona criticamente frente a esse processo histórico a fim de levantar problemas em relação a esse processo histórico. A ciência trabalha com certos dados, a filosofia precisa confiar no seu próprio trabalho teórico. 

Estando nos Estados Unidos quando escrevia o texto, Horkheimer faz uma análise que distingue o que ocorre nos Estados Unidos e na Europa. As tensões com a realidade por razões emergem com mais frequência na Europa dada seu histórico com conflitos territoriais entre nações. Já nos Estados Unidos, os problemas que surgem não são nem tanto os problemas de tensão com a realidade, mas de necessidades práticas relativas à ocupação e expansão da terra. 

Horkheimer considera que no território dos Estados Unidos surgem algumas noções de filosofia vinda de autores pragmáticos, que entendem que a filosofia tem a função de resolver problemas cotidianos. Horkheimer discorda dessa visão pragmática e critica aqueles que querem transformar a filosofia em uma espécie de ciência ou auxiliar da ciência, como a filosofia analítica, pois entende que essas visões são limitadas e não compreendem que a função essencial da filosofia é lidar com a tensão com a realidade. Contrapondo-se à posição de que a filosofia deve ser uma mediadora ou servidora da ciência, ele entende que a filosofia tem uma função própria que não é, como na ciência, a resolução de problemas.  

O filósofo também se afasta da ideia de que a filosofia se atende apenas às demandas e necessidades da organização social, como da indústria, pois não poderia ultrapassar a realidade social. Uma filosofia que tivesse voltada apenas à utilidade no sentido de resolução de problemas práticos se afasta da perspectiva proposta pelo autor.  

Horkheimer em seguida investiga a noção de ideologia, estabelecendo uma discussão com um autor chamado Karl Mannheim, filósofo que entendia que a ideologia era determinada pela realidade social e que conhecendo a realidade social poderia ser possível saber qual é a visão de um filósofo, que é sua ideologia. Mannheim entendia que o contexto histórico define as ideias de um autor e não se pode ultrapassá-lo. Horkheimer reconhece que nossas ideias são influenciadas e se moldam pelas necessidades e pelo contexto social, no entanto, ele entende que esse contexto social não limita o pensamento filosófico, pois é possível se voltar criticamente para esse contexto filosófico. 

O filósofo, para ilustrar o conceito de ideologia de Mannheim, considera, então, alguns exemplos para discutir esse conceito de ideologia. Ele cita os Junkers alemães (grandes latifundiários) que eram proprietários de terra pertencentes à nobreza, que devido ao seu contexto tinham uma determinada ideia sobre a realidade ligada ao esquema de herança. Em seguida ele cita a burguesia liberal, mostrando como os interesses deles estavam sempre voltados ao êxito do negócio, ao cálculo e ao denominador comum do dinheiro. Citando esses exemplos, ele mostra o conceito de ideologia, estando inserido dentro de um contexto social, faz com que a pessoa adote uma determinada ideologia e vice-versa, porque toda ideologia também se relaciona a um contexto histórico. Isso, no entanto, leva a uma forma de relativismo que condiciona toda ideologia ao contexto histórico. Horkheimer se afasta disso, pois entende que é possível fazer juízos críticos a esses contextos históricos.  

Horkheimer afirma que a definição de ideologia de Mannheim está correta até certo ponto, já que certas ideologias de fato fazem sentido dentro do contexto histórico no qual se inserem. No entanto, reconhecer que o processo histórico influencia as nossas ideias não é suficiente para pensar a filosofia, pois isso poderia nos dar apenas uma análise sociológica. Por exemplo, se considerarmos o pensamento de Descartes é possível entender como as ideias matemáticas cartesianas refletem os interesses burgueses para o cálculo. No entanto, não é suficiente constatar sociologicamente essa relação entre o pensamento Descartes e seu contexto histórico, mas é preciso considerar o processo de tensão com a realidade e o caráter revolucionário das ideias cartesianas em relação ao seu tempo em estabelecer uma tensão com a realidade posta. É preciso entender como novas ideias não só reproduzem o seu contexto, mas os transcendem e trazem possibilidades de tensão e transformação. 

Entender certos movimentos e a formação de novas estruturas que criam novos pensamentos envolve se aprofundar mais e considerar as tensões da realidade. Horkheimer rejeita a posição de que a verdade é uma noção relativa meramente ao contexto histórico, pois entende que sem uma noção de verdade não há a possibilidade de crítica. Todo posicionamento da filosofia busca um juízo que possa ser considerado verdadeiro, o que torna possível a colocação de uma crítica real ao mundo. Contra a ideia de que cada ideologia pertenceria a uma classe específica e seria válida para cada classe, o autor considera que é preciso entender que é possível criticar filosoficamente tais ideologias e que nem toda ideologia é valida, especialmente quando se considera os conflitos entre ideologias. 

Opondo-se à noção de que valores, crenças e tradições sejam relativas a cada sociedade, Horkheimer propõe a filosofia como tendo um papel de criticar tais elementos que se passam por verdades relativas, impedindo que os homens deixem de se levar por essas ideias que a sociedade os dita, tornando possível que os homens aprendam a discernir suas ideias e transformar-se. A filosofia tem a função de demonstrar a contradição na qual nos inserimos em que há um desacordo entre nossas ideias e desejos e aquilo que de fato se dá na realidade.  

A filosofia precisa se afastar do espírito de especialização, que faz com que se perca de vista a totalidade da sociedade na qual as contradições são visíveis. Aludindo a Platão, Horkheimer considera que quando Platão fala do filósofo como governante, ele não quer dizer que o governante deve ser escolhido entre filósofos de manuais. O filósofo está destinado a governar porque tem uma compreensão da totalidade da realidade, não estando restringido as artes particulares. O filósofo precisa ter uma visão do todo. 

Os grandes filósofos tinham uma compreensão dialética, pensando a totalidade da organização social. Eles tinham uma expectativa de organizar a sociedade de forma racional que fizesse desaparecer a dominação de uns sobre os outros. Ele mostra como nos antigos essa pretensão estava mais relacionada à ideia da forma do bem. O interesse de Horkheimer, como um materialista, não é mais pensar nessa forma do bem, mas pensar alternativas a partir da análise da própria realidade social na qual se encontra inserido. Embora a filosofia moderna não seja propriamente uma filosofia social, os autores modernos, mesmo quando lidavam com questões metafísicas, também lidaram com as tensões sociais que existiam em seu contexto histórico. Filósofos modernos já eram em certo sentido filósofos sociais também. 

A filosofia é a tentativa metódica e perseverante de introduzir a razão no mundo. A função social da filosofia é desenvolver o pensamento crítico e dialético, sendo algo sempre precário e incômodo, carecendo de uma utilidade imediata. Um abismo separa os princípios segundo os quais os homens julgam a si mesmo e a como a realidade é de fato, é essa disparidade ou tensão que revela o papel da filosofia em diminuir essa disparidade. 


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