ATO DE SER E CIÊNCIA DIVINA EM TOMÁS DE AQUINO

 

    O objetivo deste texto é discutir algumas noções importantes relacionadas à filosofia de Tomás de Aquino, especialmente os conceitos de ato de ser e reflexões sobre a ciência divina. Para tanto, construí esse texto a partir de reflexões construídas em diálogo em uma rede social* e a partir de pesquisas pessoais. O texto é composto das seguintes partes: (i) Da distinção real entre essência e ato de ser; (ii) Argumento ato-potencial a favor da existência de Deus; (iii) A Ciência divina em Aquino; (iv) As formas no intelecto divino. 

    Assim, será discutido neste texto:

(1) Da distinção real entre essência e ato de ser: apresenta-se um conceito muito mal compreendido de Aquino, mas que é essencial para entender como o filósofo teoriza a causalidade, que é a noção de ato de ser. Para tanto, mostra-se que essa noção não deve ser confundida com o conceito de existência e que há uma distinção real entre ato de ser e existência. Considera-se, desse modo, o ato de ser como aquilo que atualiza desde dentro a essência de algo e suas perfeições.  

(2) Argumento ato-potencial a favor da existência de Deus: nesta seção, proponho uma forma de estruturar as três primeiras vias a favor da existência de Deus em um único argumento que as reduz ao binômio ato e potência. É importante considerar que em termos metafísicos, a distinção ato/potência é fundamental para dar conta de qualquer tipo de mudança e, por isso, qualquer argumento que possa ser reduzido a esse binômio pode ser compreendido como uma prova apodítica em certo sentido. O argumento revela que aceitar o binômio já nos conduz a uma demonstração da existência de Deus. Discute-se, também, nesta seção, que tal argumento, diferente de outras formas de argumento cosmológico (como algumas encontradas entre os árabes e na literatura contemporânea sobre o kalam), não depende da tese de que o mundo teve um começo nem de alguma teoria específica sobre o tempo. 

(3) A Ciência divina em Aquino: em seguida, discute-se como Deus conhece à luz da filosofia tomista. Apresenta-se o conhecimento divino como um conhecimento em ato que, diferente do modo humano de conhecer, se dá por meio de uma hiper-intelecção sincrônica, intuitiva e simples pela qual Deus tudo conhece de uma só vez ao contemplar sua própria essência. Além disso, considera-se como o caráter atual e imutável do conhecimento divino não significa que a Divindade não conheça o possível e que se pode atribuir a Deus um tipo de mudança que é a mudança nocional. Dois conceitos importantes discutidos nessa seção são os de conhecimento de inteligência simples ou ciência natural e o de conhecimento de visão ou ciência livre. 

(4) As formas no intelecto divino: por fim, discutem-se como as formas encontram-se no intelecto divino, defende-se que elas não se encontram nem de modo universal nem de modo singular, antes Deus conhece as formas de modo que subsumi todas as perfeições dos singulares e em seu modo determinado. Trabalha-se, a partir disso, como Aquino, partindo do neoplatonismo, defende que as formas se encontram em Deus de modo transversal ou transcantegorial, pontuando, no entanto, que Aquino diverge do neoplatonismo em relação ao fato de que estes entendem que as formas se encontram em uma hipóstase intelectiva inferior ao Uno, enquanto aquele compreende que elas se encontram no próprio Deus. 


 

I. ATO DE SER E CIÊNCIA DIVINA EM TOMÁS DE AQUINO 

 

1.1 Da distinção real entre ato de ser e essência  

 

Um conceito fundamental do pensamento de Tomás de Aquino é o de ato de ser (actus essendi). O ato de ser é aquilo que atualiza desde dentro as perfeições de algo e é em razão desse ato que se pode dizer que algo é. É importante, no entanto, distinguir ato de ser de existência. A existência consiste na realidade efetiva de algo, consiste em algo perdurar enquanto um fato externo às suas causas. Existência é, pois, o fato bruto de que algo perdura e persiste como um fato que pode ser apreendido. O ato de ser já se refere a algo mais íntimo, como um princípio constitutivo das coisas. A existência pode ser entendida, desse modo, como um produto do ato de ser. O ato de ser é aquilo que atualiza a própria essência das coisas, isto é, sua forma: “esse expressa um ato, enquanto 'existir' simplesmente indica que uma coisa está factualmente ali” (ALVIRA, CLAVELL & MELENDO, 1991, p.25, tradução minha). 

É importante considerar que Aquino não acreditava que existiam as coisas por si mesmas já no mundo e que Deus simplesmente forneceria algo a elas. Ao discutir o fato de que as coisas foram criadas do nada (creatio exnihilo), pode-se entender uma supra-acidentalidade do ser, no sentido de que antes de serem criadas do nada só se pode falar das essências como possivelmente existindo. Nada existe que receba de Deus como externa a si a existência, pois nenhum ente existe que não tenha sido criado do nada por Deus: “ente significa ter um ato de ser” (GILSON, 1962, pp.52-53). 

É incorreto pensar o ato de ser como algo numericamente distinto da essência. Embora haja uma distinção real entre essência e o ato de ser, a essência não é outra que o ato dela mesma. Assim, não é como se pudéssemos falar de uma essência sobre a qual advém o ato de ser como duas coisas distintas. Só se pode falar que o ato de ser é extrínseco à essência no sentido em que falamos que algo que se encontra no exercício de seu ato é extrínseco para com o mesmo algo tomado como potência, isto é, como dois estados de uma mesma coisa: “A essência é, pois, necessariamente exigida como aquilo que o ato de ser vai atualizar” (GILSON, 1962, p.62). 

Existe, assim, uma distinção real entre essência e ato de ser porque enquanto a primeira nada mais é do que o correlato da potência ou da quididade, o segundo é o próprio ato da essência. Em razão disso, não faz sentido afirmar que a essência recebe seu ser de fora, pois o ato de ser possui um caráter intensivo, isto é, ele consiste na atualização desde dentro da própria forma da coisa. Em nível transcendental, essa distinção pode ser reduzida ao binômio ato/potência, que permite falar em uma distinção real entre os dois termos. E a partir desse binômio é possível demonstrar a existência de Deus. 

 

1.2 Argumento ato-potencial a favor da existência de Deus 

 

A noção de causalidade como relacionada ao binômio ato-potência e a noção de ato de ser desempenham um papel muito importante nas três primeiras vias de Aquino nas quais ele busca demonstrar a existência de Deus. Na realidade, as três vias podem ser formuladas a partir das noções de ato e potência e que levam a uma conclusão que só pode ser um Deus que tudo conhece em ato 

 

Podemos demonstrar a existência da causa própria de um efeito, sempre que este nos é mais conhecido que aquela; porque, dependendo os efeitos da causa, a existência deles supõe, necessariamente, a preexistência desta. Por onde, não nos sendo evidente, a existência de Deus é demonstrável pelos efeitos que conhecemos. (AQUINO,1485/2017, p.129, ST I. Q.2 Art.2) 

 

O argumento, assim, não se limita a mostrar que há uma causa de todo movimento e mudança, mas que essa é causa é um Deus que é um Intelecto que tudo conhece com perfeição. Pode-se colocar o argumento da seguinte maneira e se pode ver como ele nos leva à ideia de um Deus (cf. AQUINO, 1485/2017, pp. 128-130, ST I, Q.2, Art. 3): 

 

1. Tudo que é composto de ato e potência precisa ser causado por outro, pois nada pode se autoatualizar e do nada, nada vem. 

2. Aquilo que atualiza algo composto de ato e potência pode ser ou outro algo composto de ato e potência ou um ato puro. 

3. Visto que a série de causas atualizantes não teria eficiência causal se prosseguisse infinitamente, precisa haver um ato puro. 

4. O ato puro não pode ser composto de forma e matéria, logo ele não é material. 

5. Para causar tudo o que há, o ato puro precisa conter em si todas as formas pela qual informa a matéria ao atualizá-las, logo, o Ato Puro precisa ser um Intelecto.  

6. As formas existem no Intelecto Puro nem de modo particular (pois isso o individualizaria), nem de modo universal (pois o ato puro é simples e a forma deve se identificar realmente com a essência do Intelecto Puro). Logo, as formas existem no intelecto puro ao modo transcategorial/transversal, relativo ao ser enquanto ser, embora virtualmente distintas. 

7. Se todas as formas existem no Intelecto puro ao modo transcategorial/transversal, o Intelecto puro conhece tudo apenas contemplando sua própria essência, logo, o Intelecto Puro é Onisciente. 

8. Por conter em si todas as formas e ser Ato Puro, o Intelecto Puro tem potência ativa para atualizar todas as possibilidades metafísicas, logo ele é Onipotente. 

9. Sendo o Intelecto Puro, Ato Puro simples, ele não tem causa. 

11. Conclui dos anteriores que, o Intelecto Puro é imaterial, Onisciente, Onipotente e não-causado, isso é o que chamamos de Deus. 

 

É importante entender que esse argumento não depende da tese de que o mundo foi criado. Para Aquino, é filosoficamente possível que o mundo seja eterno no passado. Ainda que o passado fosse infinito, a existência de mudança, movimento e contingência requer uma Causa não-causada. Isto é, ainda que a série causal regredisse infinitamente no passado, ainda seria necessário um Ato puro que atualizasse a potência de todas as coisas.  

Embora essa série pudesse ser infinita no passado, ela não pode cair em um regresso infinito de compostos de ato e potência. Isso porque uma série infinita no passado é um infinito possível (isto é, uma série sempre incompleta e em relação a qual não existem infinitas coisas atualizadas de uma só vez, mas várias distribuídas ao longo do tempo). No entanto, um regresso de compostos de ato-potência sem um atualizador puro é um infinito real, um tipo de regresso infinito vicioso e que não pode existir na realidade. 

Deve, pois, existir um Ato Puro que seja um Primeiro Motor, pois é absurdo que haja um infinito quantitativo em ato. Por isso, o argumento requer que aceitemos um termo puríssimo, que não possua mistura de ato e potência passiva. Visto que não se pode regredir ao infinito em uma série de causas essencialmente ordenadas (em entes compostos que passam constantemente da potência ao ato), os termos que são movidos necessariamente devem ter uma mistura com potência passiva e sempre dependem de um atualizador puro que os façam passar da potência passiva para o ato.  

Aqui há um elemento importante para entendermos a noção de ato de ser. Porque uma vez entendido o binômio ato-potência e como ele é fundamental para explicar qualquer mudança, segue-se que tem de haver um Ato-Puro. Potência e ato dividem o ser de tal forma que só há dois tipos de coisas: compostos de ato-potência e o ato puro. E não pode haver compostos de ato e potência sem que haja um ato puro. Portanto, tudo o que tem mescla de ato e potência sempre depende de outro para ser ou vir-a-ser. Elas passam a ser e são o que são graças a um ato puro de ser. O ato de ser é o que atualiza desde dentro a própria essência da coisa. 

Vale lembrar que nada disso exige que o mundo tenha sido criado. Havendo qualquer coisa que passe da potência ao ato mesmo em um mundo eterno, tem de existir um Atualizador puro. A possibilidade metafísica de que o mundo seja eterno foi defendida por Tomás de Aquino, o que o coloca em concordância com Aristóteles e os neoplatônicos. As vias de Aquino não discutem a questão sobre se o tempo teve ou não um começo, mas considera apenas o fato de que existe mudança substancial. O motivo pelo qual Aquino acreditava que o mundo foi criado do nada é porque isso é um artigo de fé, não sendo algo que possa ser demonstrado pela razão: 

 

Deve-se admitir, de acordo com a fé, que algo causado não pode sempre existir, pois então se seguiria que sempre existiu uma potencialidade passiva, e isso é herético. Mas como uma potencialidade passiva não precisa preceder no tempo tudo o que Deus pode fazer, não se segue que Deus não poderia ter feito algo que sempre existiu.” (De aeternitatemundi, AQUINO, 1997, p.1, tradução minha) 

 

1.3 A Ciência divina em Aquino  

 

Deus como ato puro tudo conhece em ato. O conhecimento de Deus é perfeito. É importante dizer que onisciência não significa literalmente conhecer tudo em absoluto. Seria estranho dizer que Deus conhece como é andar de bicicleta ou que ele sabe como é sentir tristeza, pensando aqui um conhecimento por acquaintace. Onisciência significa, na verdade, dizer que Deus possui todas as perfeições relativas à sua ciência divina. Isso significa que o conhecimento de Deus esgota tudo o que é possível de ser inteligido (cf. AQUINO, 1485/2017, pp. 217-218, ST I, Q.14, Art. 1). 

Deus intelige tudo de modo perfeito em dois sentidos. Primeiramente, ele intelige todas as coisas por meio de sua própria essência, já que o ser de cada ente participa no ser divino: “Em Deus, o intelecto que intelige, o objeto da intelecção, a espécie inteligível e o ato mesmo de inteligir são, absolutamente, uma só e mesma realidade” (AQUINO, 1485/2017, p. 221, ST I, Q.14, Art. 4). Em segundo lugar, Deus intelige todas as coisas na medida em que é a causa de todas as coisas, pois a essência divina se encontra em cada ente existente assim como a causa em seu efeito. Sendo a causa de tudo, Deus conhece todas as coisas, pois elas agem em virtude dele, visto que é Deus quem em sua providência ordena e dispõe imediatamente todas as coisas. 

Importante dizer que Deus conhece não apenas o que é o caso, mas também o que é possível que seja o caso (cf. AQUINO, 1485/2017, p. 226, ST I, Q.14, Art. 9). Poderia se questionar se Deus conhecer o possível não implicaria uma privação naquele que conhece tudo em ato. Sobre isso é importante salientar que nem toda possibilidade atualizável ou potência que pode ser realizada implica de fato algum tipo de privação. Quando se fala em privação o que está em questão é sempre um defeito relativo à natureza da coisa. Por exemplo, para Deus, não conhecer como é praticar o mal ou como é ter uma emoção não é uma privação, na verdade ter emoções ou poder praticar o mal é que seriam defeitos em Deus. Não é uma privação, por exemplo, para uma faca não conseguir enxergar, mas é uma privação do olho não enxergar e uma privação da faca não cortar bem. Então, antes de tudo, é importante entender que a privação é sempre dita em relação à natureza da coisa. 

Deus conhece em ato aquilo que é potencial, o que significa que ele conhece o que é possível de modo perfeito. Ter todas as perfeições e nenhuma privação no que se refere à natureza da ciência divina significa ser sumamente perfeito e conhecer em ato todas as coisas, incluindo aquilo que é possível. Assim, Deus, em sua onisciência perfeita conhece tudo em ato, isso inclui tanto as coisas que são conhecidas por Deus como sendo possíveis (a ciência natural ou de simples inteligência), quanto o conhecimento de Deus sobre as coisas reais (a ciência livre ou de visão) 

 

Pois, certas, embora não existam atualmente, contudo, existiram ou hão de existir; e de todas essas se diz que Deus as conhece pela ciência de visão... Há outras coisas, porém, que estão no poder de Deus, ou da criatura, e que, contudo, nem existem, nem existirão, nem existiram e, em relação a essas, não se diz que Deus tem a ciência de visão, mas, a de simples inteligência. E assim dizemos, porque as coisas, que vemos, têm um ser distinto, fora de nós (AQUINO, 1485/2017, p. 226, ST I, Q.14, Art. 9). 

 

O fato de Deus conhecer tudo em ato significa que ele não conhece por meio de raciocínios, ele não precisa partir de premissas e chegar a uma conclusão nem descobre coisas novas. Nada de novo que ocorre no mundo faz Deus conhecer algo a mais que antes ele não conhecia. Nem Deus teve de passar por um processo para atingir todo conhecimento que ele possui agora. Desde a eternidade Deus tudo conhece de uma só vez por meio de uma hiper-intelecção sincrônica, intuitiva e simples: “Mas, em contrário, diz Agostinho: Deus não vê tudo particular ou separadamente como por um conceito, alternando, daqui para ali e dali para aqui; mas, vê todas as coisas simultaneamente” (AQUINO, 1485/2017, p. 225, ST I, Q.14, Art. 7). 

Importante salientar que o fato de Deus conhecer coisas possíveis não muda o fato de que ele conheça tudo em ato, o fato de Deus conhecer tudo necessariamente não significa que aquilo que ele necessariamente conhece não possa ser contingente. Deus conhece as coisas contingentes de modo necessário. Em termos tomistas técnicos, o fato de Deus poder conhecer de modo necessário aquilo que é contingente, significa dizer que Deus muda nocionalmente por denominação extrínseca em sua linha terminativa. 

Aqui é importante dizer que uma mudança nocional é aquela demarcada por um tipo de ganho de uma relação que não denota nenhuma perda ou ganho de perfeição e esse tipo de mudança, diferente de uma mudança real, pode ser atribuída a Deus. Trata-se do caso de uma mudança na linha terminativa dos atributos divinos, isto é, na sua expressão e efeitos possíveis. Tal compreensão em linguagem contemporânea se aproxima do que é chamado de “mudança de Cambridge”, que é uma mudança que um objeto sofre, não porque algo nele mudou, mas porque algo com o qual ele está relacionado mudou. Trata-se de uma mudança puramente relacional que não implica uma mudança intrínseca no objeto. Por exemplo, quando uma mulher se torna viúva nada nela mudou de fato, mas sim em seu marido que morreu (LOWE, 2009, p.238). 

Podemos falar em fins de operações distintos quando temos em mente Deus conhecer verdades necessárias e fatos contingentes e isso ocorre porque aquilo que poderia ser verdade, mas não é o caso, produz em Deus um outro tipo de noção em relação ao fim extrínseco de seu conhecimento.  Essa mudança nocional terminativa significa que o que muda é o caráter modal da coisa que Deus já conhece em ato e necessariamente desde toda eternidade. Colocado em termos de mundos possíveis, Deus conhece aquilo que poderia ser verdade em um mundo possível, de modo que o fim da operação é distinto neste mundo possível. 

 

1.4 As formas no intelecto divino  

 

A discussão sobre como as formas encontram-se em Deus perpassa debates importantes na Idade Média. Primeiramente, nem todos concordariam em dizer que as formas se encontram em Deus propriamente dito. Na tradição neoplatônica, as formas implicam multiplicidade, logo, embora possam existir no Intelecto, não podem existir no Uno, que está acima do Intelecto e que é Deus propriamente dito. Na tradição cristã. tão noção não poderia ser adotada porque Cristo, a segunda pessoa da Trindade, desde o Evangelho de João, é associado ao Logos, ao Intelecto e Cristo é Deus. O Cristianismo, em discordância com o neoplatonismo, entende que as formas estão no Intelecto divino, mas sem implicar multiplicidade: “É no Verbo e por meio dele que o intelecto pode ver o seu princípio, pois é por meio da sua Palavra, luz intelectual, que Deus se mostra aos homens.” (TEIXEIRA, 2015,p.21). 

Todo esse debate tem suas raízes também em pensar como as formas podem ser tomadas como exemplares das coisas. Essa questão remonta a uma forma distinta de pensar as causas e as formas que vem do contraste entre o pensamento de Aristóteles e de Platão. Aristóteles entendia forma como relacionada ao mínimo denominador comum de propriedades compartilhadas pelos entes de uma mesma espécie. Assim, a forma de cavalo consiste naquilo que é comum e essencial a todos os cavalos. Na filosofia aristotélica, as formas não possuem uma existência separada das coisas, mas é imanente a elas. Por isso, quando se fala de causa formal, trata-se de uma causa intrínseca e não algo externo: “E esta – a forma - é natureza mais do que a matéria, pois cada coisa encontra sua denominação quando é efetivamente, mais do que é em potência” (Física II 1 193b6, ANGIONI, 2009).  

Para Platão, a noção de forma é distinta. Primeiramente, ela não deve ser confundida com os universais (que tem a ver com o modo pelo qual as apreendemos) nem com o denominador comum entre entes de uma mesma espécie. A forma platônica se refere, na verdade, àquilo que subsumi toda a riqueza ontológica dos particulares. Além disso, as formas podem ser pensadas de modo extrínseco aos entes, embora todos os entes delas participem: “toda Forma é separada dos objetos que dela participam” (MELO, 2018, p.32). 

É importante dizer que, embora platônicos contemporâneos na filosofia analítica pensem as formas como objetos abstratos sem eficiência causal, as formas para Platão possuem sim uma relação muito importante com a causalidade. Platão e neoplatônicos defendiam que objetos abstratos possuem eficiência causal. A causalidade dos objetos abstratos para neoplatônicos não é uma causalidade eficiente, mas uma causalidade teleológica e formal (intrínseca e extrínseca):  as formas são causas paradigmáticas dos entes, o fundamento de seu ser. 

A forma intrínseca seria as razões das coisas, e se assemelha à mesma definição de causa formal de que fala Aristóteles. Ela é diferente da causalidade paradigmática-transcendental, que é a forma pensada como um exemplar que confere unidade para a forma imanente. Pode-se, pois, falar de causa formal em dois sentidos: a causa formal intrínseca (que diz respeito à forma imanente à coisa) e a causa formal extrínseca ou causalidade paradigmática (que é a forma como exemplar) (CULBREATH, 2018, p.12). 

É importante dizer que embora Tomás Aquino seja algumas vezes pensado como um “aristotélico”,  vale salientar que isso não é completamente verdadeiro. Aquino foi fortemente influenciado pelo neoplatonismo e é mais neoplatônico que aristotélico. Por isso, ele não ignorou a compreensão neoplatônica exemplarista das formas. De um lado, Aquino incorporou um desenvolvimento trazido à tona por Santo Agostinho de que as formas são exemplares no Intelecto Divino, e de outro, ele discordou dos neoplatônicos por entender que esses exemplares estão contidos no próprio Deus ou Uno, não em uma hipóstase intelectiva inferior ao Uno: “É necessário admitir-se a existência das ideias na mente divina. Pois, ao que se chama em grego ideia chama-se, em latim, forma” (AQUINO, 1485/2017, p. 238, ST I, Q.15, Art. 1) 

Quanto ao modo como as formas encontram-se no Intelecto divino, o tomismo, influenciado pelo neoplatonismo, compreende que as formas no intelecto divino não existem nem de modo universal nem particular, mas transversal, na medida em que elas se identificam com a própria essência divina que é a própria Beleza, Verdade e Bondade, embora possam ser distinguidas virtualmente: 

 

Pois, Deus, conhecendo, pela sua essência, os seres diferentes de si, enquanto ela é semelhança das coisas, ou princípio ativo delas, necessariamente a sua essência será o princípio suficiente de conhecer tudo o que faz, não somente em universal, mas também, singularmente. (AQUINO, 1485/2017, p. 228-229, ST I, Q.14, Art. 11) 

 

No intelecto divino, as formas se identificam com a própria essência ou ser divino em certo sentido. A essência divina é a própria verdade, beleza e bondade e é contemplando Sua própria essência que Deus conhece tudo que é bom, belo e verdadeiro, ou seja, todas as coisas. Na essência divina que é simples as formas existem de modo transversal ou transcategorial, como aquilo que atravessa todas as categorias de ser, mais precisamente, o belo, o verdadeiro e o bom. Na essência divina as formas são a própria essência divina, embora possam diferir entre si virtualmente. Desse modo, as formas estão em Deus não de modo universal, nem particular, mas transversal. 

Enquanto nós, humanos, inteligimos a forma por meio da espécie inteligível, que é o meio pelo qual se intelige e que é abstraída do fantasma quando ele é purificado de tudo que é particular, Deus intelige todas as coisas ou todas as formas simplesmente por contemplar Sua própria essência, pois é ela mesma o Bem, o Belo e a Verdade. Bem, belo e verdade são transcategorias que atravessam todas as categorias de ser, de modo que tudo que existe, na medida em que realiza de modo excelente seu ser, é bom, belo e verdadeiro 

 

Como já dissemos, inteligir não é ato orientado para nada de exterior, mas, imanente no sujeito, como ato e perfeição do mesmo, porque o ser é a perfeição do que existe; pois, como o ser é consecutivo à forma, assim o inteligir é consecutivo à espécie inteligível. Ora, em Deus não há forma diferente do seu ser, como já dissemos. Por onde, como a sua essência mesma é também a espécie inteligível, conforme já dissemos, segue-se necessariamente, que o seu ato mesmo de inteligir é a sua essência e o seu ser. (AQUINO, 1485/2017, p. 221, ST I, Q.14, Art. 4) 


   

Para finalizar, sobre o modo como as formas estão contidas em Deus, pode-se considerá-las a partir do seguinte léxico sobre tipos de perfeicões e contenções:

       As formas podem estar contidas em um sujeito de 3 modos:

1. Contenção formal: é quando certo sujeito contém uma determinada perfeição de acordo com o seu conceito tal como é expressado em sua definição. Assim, por exemplo, é que o homem contém formalmente a animalidade, a racionalidade, etc.

2. Contenção virtual: Está relacionada com a potência ativa. É quando há em um certo sujeito a aptibilidade, a virtude para poder produzir aquela perfeição. É dessa forma que a semente contém virtualmente a planta.

3. Contenção eminente: é quando determinado sujeito tem uma perfeição maior que surpassa a perfeição menor que lhe falta propriamente falando. Por exemplo, um anjo não é formalmente um ser racional/discursivo, mas ele é um ser intelectual, que é mais perfeito e vale mais do que a racionalidade/discursividade.

3.1 Contenção super-eminente: Quando um sujeito contém as perfeições em seu grau máximo de modo a subsimir toda perfeição ontológica de todos os entes e superar toda perfeição menor que não se lhe aplique formalmente (perfeição divina)

       Quanto aos tipos de perfeicões temos:

1. Perfeições puras: aquelas que não implicam em seu próprio conceito nenhum grau de imperfeição

1.1. Puras transcendentais: são aquelas que todo ente possui (Uno, beleza, bondade, verdade)

1.2 Puras não-transcendentais: são aquelas que só alguns entes possuem (exemplo: sabedoria).

2. Perfeições impuras: são aquelas que implicam mistura com imperfeições (exemplo: racionalidade discursiva).


       Sendo Deus o próprio Uno, Bem e Beleza as perfeições puras transcendentais estão em Deus de modo formal, além de virtual e eminente. Já as perfeições mistas (como a humanidade, a triangularidade, a equínidade etc) estão em Deus de modo eminente e virtual, mas não formal (já que Deus não é obviamente um humano, um triângulo ou uma pedra, embora contenha a perfeição de todas elas). As formas ainda, não estão em Deus nem de modo particular nem de    modo universal, mas de modo transversal, identificando-se com a essência divina simples que subsume e contém a perfeição de todas as coisas reais e possíveis. Isso significa que tudo que há como que imita externamente as perfeições presentes na essência divina.


REFERÊNCIAS 

AQUINO, Tomás. DE AETERNITATE MUNDI: On the eternity of the world. Translation © 1991, 1997 by Robert T. Miller. Disponível em: https://sourcebooks.fordham.edu/basis/aquinas-eternity.asp#f2 Acesso 12/07/2023. 

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Livros Católicos, 2017. [Online] Disponível em: https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf  Acesso em 12/07/2023. 

ALVIRA, T.; CLAVELL, L. & MELENDO, T. Metaphysics. Sinag-Tala, Manila, 1991, p.25. 

ANGIONI, L. Aristóteles: Física I e II. Tradução e comentários. Campinas. Editora Unicamp, 2009. 

CULBREATH, Jonathan. Paradigmatic Causality in the Philosophy of Plato and Aristotle: Towards a Fuller Understanding. Institute of Philosophy - KU Leuven, 2018.  

GILSON, Etienne. A existência na filosofia de Tomás de Aquino. São Paulo: Duas cidades, 1962. 

LOWE, E. J. A Survey of Metaphysics. Oxford: University Press, 2002. 

MELO, João Vitor Resina Nunes de. O novo horizonte da metafísica platônica: as formas no Parmênides. Dissertação de Mestrado (Filosofia). São Paulo: Universidade de Sâo Paulo, 2018. 

TEIXEIRA, Neto J. A “mística do Logos” e o fundamento da filosofia da linguagem de Nicolau de Cusa. Trans/Forma/Ação, 38 (1), 2015, pp. 9 –28.  

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*Conversas no whatsapp com Rian Lobato e Gabi Schultz. Possíveis imprecisões não se devem a eles mas a algo que eu possa ter compreendido incorretamente, ou a outras fontes de pesquisa que usei ou simplificações minhas.


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