EXEGESE: SÃO JOÃO 1, 1 - 3
O objetivo deste texto é fazer uma exegese detalhada de São João 1, 1-3, em que lemos: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.” (NAA). Primeiro, no entanto, é importante fazer uma contextualização a respeito do Evangelho de João. Assim como os demais evangelhos canônicos, João é de autoria anônima, sendo a atribuição ao discípulo de Jesus uma tradição da Igreja. Ele, no entanto, difere dos chamados evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Isso ocorre por diferentes razões. Primeiro, porque Mateus e Lucas foram escritos tomando Marcos como base, o que não ocorre com João. Segundo, porque sua escrita é mais tardia, enquanto os sinóticos são datados de 50 d.C. a 65 d.C., o quarto evangelho provavelmente foi escrito por volta do ano 100 d.C., podendo ter passado por edições posteriores, o que significa que o quarto evangelho apresenta uma teologia mais desenvolvida, refletindo elaborações feitas pelos cristãos a respeito da pessoa de Jesus (veja: VASCONCELLOS, Pedro Lima. Lendo o Evangelho segundo João. São Paulo: Paulus Editora, 2018.).
O Evangelho
de João pode ter sido fruto da teologia de uma das comunidades de cristãos do
primeiro século e desde cedo sua linguagem exerceu influência sobre formulações
gnósticas. A interpretação do quarto evangelho feita pelo gnosticismo
dificultou com que ele fosse aceito como canônico pela Igreja, todavia, a
partir de Orígenes, a leitura gnóstica passou a ser considerada uma desconfiguração
do texto. De todo modo, os pais da Igreja perceberam que poderiam usar passagens
do quarto evangelho justamente para rebater os gnósticos, o que levou a uma
alteração da maneira como o texto passou a ser enxergado:
“Essa apropriação inicial do
Evangelho de João pelo gnosticismo desembocou na suspeita duradoura de que o
Evangelho ensinava o gnosticismo. Somente quando foi reconhecido que o
Evangelho poderia realmente ser usado contra o gnosticismo, ele encontrou sua
aprovação por parte da “grande” igreja, apesar de suas diferenças em relação
aos sinópticos” (HAENCHEN, 1984, A Comentary on the Gospel of John chapters 1-6. Translated by: Robert W. Funk. Filadélfia: Fortress Press, 1984, p.19, tradução minha).
Considerado
esse contexto, podemos analisar melhor a passagem em questão, considerando-a
versículo por versículo:
João 1,1: No princípio era o
Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Nestle 1904: Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος, καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν, καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος.
No princípio (Ἐν ἀρχῇ): aqui temos
uma clara analogia com o primeiro versículo da Bíblia no qual lemos: “No
princípio (LXX: "ἐν ἀρχῇ"),
Deus criou os céus e a terra.” (Gênesis 1,1, NAA). Assim,
temos aqui o momento em que Deus dá início à criação, o que faz pensar que o
Verbo precede a criação do mundo. Alguns observam que o texto não diz que “No
princípio, Deus criou o Verbo”, mas sim que “No princípio era o
Verbo”, o que levou a formulações de que o Verbo poderia de algum modo incriado,
mas essa afirmação não se encontra presente no texto. O termo traduzido por
princípio é ἀρχῇ que
significa “início”, “origem” (Concordância Strong), também pode ter
o sentido de “elementar”, “primordial”, “primeiro”, “original” (Concordância
Exaustiva NAS), pode significar ainda “princípio de todas as coisas”, “o
primeiro de uma série”, “aquilo pelo qual qualquer coisa começa a ser”, “a
origem” “ a causa ativa”, “aquele que ocupa o primeiro lugar”, “o principado” (Léxico
Grego de Thayer). Dado esses sentidos, parece sugestivo que o Verbo se
identifique com o próprio princípio. O Verbo poderia ser lido como sendo, ele
mesmo, o princípio, a origem, o começo, o primeiro e a causa de tudo. Os
primeiros filósofos sempre buscaram aquilo que seria o princípio de tudo, de
acordo com Aristóteles em Metafísica A: “Os primeiros
filósofos afirmaram o princípio material como sendo o fogo, o ar ou a
água, outros como o único, outros como uma pluralidade de princípios
materiais.” Parece que para João, o princípio de tudo não seria um elemento
material, mas o Verbo. No entanto, não há aqui a ideia do Verbo como eterno,
mas sim como o princípio a partir do qual o mundo foi criado.
Era o Verbo (ἦν ὁ Λόγος): sobre o
verbo ἦν, ele se encontra
no indicativo ativo imperfeito, o tempo verbal imperfeito tem
aspecto progressivo ou repetido e tempo passado (σφόδρα), assim
expressa tanto que o Verbo existia no passado quanto que ele continua existindo
ainda. O verbo nessa forma “expressa continuidade de existência, isto é, sendo.
O Verbo era por toda a eternidade; nunca se tornou o
que era.” (Comentário Bíblico Adventista). Esse tipo de dedução da eternidade
do Verbo a partir do tempo verbal parece presumir demais. Parece uma interpretação
forçosa concluir que ao empregar o verbo nesse tempo, João estivesse querendo
comunicar que o Verbo sempre existiu, numa espécie de eternidade passada. Essas
noções teológicas da eternidade do Verbo parecem mais desenvolvimentos
posteriores, mas não uma intenção explícita do texto. Basta dizer que, para
João, o Verbo existia no princípio, antes de criar o mundo.
Mas o que
exatamente é o Verbo? Não há dúvidas de que o contexto associa o Verbo a Cristo,
ou mais apropriadamente, que Cristo é o Verbo, embora isso requeira melhor
elaboração. Isto é, se há uma unidade entre o Verbo e Jesus, se devemos pensar
numa unidade, se o Verbo se encarna em Jesus, se ele é sua essência ou
pessoalidade, se Jesus e Verbo são o mesmo ou se o Verbo existe anteriormente a
Jesus e apenas passa a viver nele são noções que merecem discussão. Isso
poderia ser discutido em outro espaço e é um assunto por demais complexo para
tratar aqui. Assim, ao invés de nos concentrarmos em “quem é o Verbo”,
consideramos “O que é o Verbo?”.
A palavra
Verbo em grego é Λόγος. Esse termo
pode significar “palavra”, “declaração”, “discurso”, “expressão divina”,
“analogia” (Concordância de Strong), pode querer dizer também
“linguagem”, “uma palavra pronunciada pela voz viva de modo a incorporar uma
ideia”, “fala inteligível”, “o dito”, “promessa profética”, “decreto
divino”, “declaração”, “pensamento”, “instrução”, “doutrina”, “narrativa”,
“evento”, “ação”, “razão”, “causa”, “fundamento” (Léxico Grego
de Thayer). Como vemos, Λόγος é uma palavra profundamente
polissêmica.
Para
entender o significado de Λόγος consideremos
sua etimologia e depois o sentido que foi empregado na
literatura antiga. A análise etimológica de Λόγος foi feita pelo filósofo
alemão Martin Heidegger no parágrafo 7 de Ser e Tempo,
ele observa que o significado fundamental de Λόγος é
“discurso” e, embora tenha sido tradicionalmente traduzido como “razão”, seu
significado mais originário não é esse, mas sim “tornar manifesto aquilo de que
se discorre no discurso”. Ele observa que Λόγος tem o sentido de “fazer ver
algo”, “fazer ver aquilo sobre o que se discorre e fazer ver a quem se
discorre”. Nesse sentido, Λόγος é o
discurso que faz ver a partir daquilo mesmo que se discorre. Esse “fazer-ver”
significa que o discurso é um “tornar manifesto” no sentido de fazer-ver
que mostra. Λόγος é
uma proferição verbal em que cada vez algo é visto, é um fazer-ver
algo mostrando, fazer ver algo como algo. Λόγος também pode se referir aquilo
mesmo que se mostra no discurso. Assim, parece fundamental no sentido de Λόγος, algo como
uma “manifestação”, uma “mostração”, um “fazer-ver”. Em sentido mais
propriamente teológico podemos dizer que Λόγος significa “revelação”,
“manifestação” daquilo que se faz ver. Assim, Λόγος pode
ser entendido como “manifestação divina” ou “revelação de Deus”.
Considerado
o sentido etimológico de Λόγος como “manifestação
divina”, vejamos seu uso na literatura antiga. Sabemos que vários
pensadores desenvolveram uma “doutrina do Λόγος”. A doutrina
do Λόγος em sua
formulação em diferentes pensadores antigos, é apresentada no comentário
de Norman Champlin. Ele apresenta as seguintes doutrinas sobre
o Λόγος: (i)
doutrina de Heráclito: Λόγος é o princípio orientador do
mundo, que é puro fluxo; (ii) doutrina estoica: Λόγος
é “a razão universal, a força criadora eterna, a energia sustentadora e
orientadora, a ‘alma do mundo’.”; (iii) doutrina veterotestamentária: Λόγος é a
vontade divina, a sabedoria personificada; (iv) doutrina hebraica
apócrifa: Λόγος é a
natureza divina; (v) doutrina hebraica posterior: Λόγος é o
agente de Deus; (vi) doutrina de Filo de Alexandria: Λόγος é a
essência imaterial da mente de Deus, o princípio de mediação entre Deus e a
criação, o agente revelador de Deus (O Novo Testamento Interpretado
Versículo por Versículo).
Parece
que Λόγος, tanto em
seu sentido etimológico, quanto em algumas das doutrinas filosóficas, carrega o
sentido de “revelação”. Λόγος é a revelação de Deus. O
sentido de Λόγος
aplicado a Cristo pode também ser derivado de sua tradução usual
como “Palavra”, William Hendriksen assim descreve o
sentido joanino de Λόγος: “Uma palavra
serve a dois propósitos distintos: a. ela dá expressão aos
pensamentos profundos - a alma do ser humano - , e faz com que ninguém esteja
presente para ouvir o que é dito, ou ler o que é pensado; e b. ela
revela esse pensamento (isto é, a alma de quem fala) aos outros. Cristo é o
Verbo (ou a Palavra) de Deus em ambos aspectos: ele expressa ou reflete a mente
de Deus e também revela Deus para os homens.” (Comentário do Novo Testamento).
Novamente vemos a presença de Λόγος com o sentido de
“revelação”.
A tese que
me parece mais convincente, entretanto, é de que há aqui uma influência de fundo
da noção de Sabedoria do livro de Provérbios. Provérbios 8 parece ter exercido
especial influência para o prólogo joanino: “(Eu, a Sabedoria), fui empossada
desde tempo indefinido, desde o começo, desde tempo mais remotos do que a
terra. Quando não havia águas de profundeza, eu fui gerada como que com dores
de parto, quando não havia mananciais fortemente carregados com água. Antes de
serem assentados os próprios montes, antes dos outeiros, eu fui gerada”
(Provérbios 8:23-25). Essa tese da influência de Provérbios 8 em João 1 é
reforçada pelo contexto que afirma que o Verbo foi “gerado”, ao descrevê-lo
como “unigênito” de Deus (João 1:14,18).
Desse modo,
o quarto evangelho parece identificar a Sabedoria gerada por Deus antes da
fundação do mundo com Cristo, o Verbo divino. A partir disso, os pais da Igreja
também desenvolverão uma doutrina da geração do Filho, como exemplo, podemos
citar a chamada “cristologia do Logos” desenvolvida pelos Pais apologistas,
tais como o Justino de Roma (c.100 – c.165), Atenágoras de Atenas e Teófilo de
Antioquia (c.116 – c.181). Justino, por exemplo, escreveu sobre o Verbo: “essa
Potência é gerada pelo Pai, pelo seu poder e vontade” (Apologias de Justino,
o mártir).
E o Verbo estava com Deus (καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν): a
preposição πρὸς (com)
significa “para”, “em direção”, “movendo em direção a”, “em interface com” (Concordância
de Strong), “em relação a”, “perto de” (Léxico Grego de Thayer).
O Comentário Bíblico Adventista sugere que a preposição
“denota íntima associação e companheirismo”. Isso parece ser mais uma
interpretação teológica do que algo que se pode devidamente deduzir da
preposição. O que parece interessante aqui é que o Λόγος está
com Deus, isto é, ele é distinto de Deus. Essa distinção entre
o Λόγος e Deus
pode nos levar a concluir que o Λόγος não é Deus. Isso parece uma
dedução correta em algum sentido, o Λόγος é um agente que revela Deus se
distinguindo do próprio Deus que ele revela. Mas a última porção do versículo
parece proibir que se leve esse raciocínio às suas últimas consequências, em
alguma medida o Verbo tem um caráter divino. De qualquer modo, é inegável que
aqui se introduz alguma distinção entre o Λόγος e Deus, ou seja, o Verbo não é
Deus no sentido que aparece nessa porção, mas sim alguém que está com
Deus.
E o Verbo era Deus (καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος): esta
certamente é uma das declarações mais surpreendentes do Novo Testamento. Até
aqui pudemos saber que o Λόγος atua
como um agente que revela Deus, mas que esse agente seja o próprio Deus é algo
um tanto inesperado. Não se pode deixar de ver aqui uma associação com o Anjo
de Jeová do Antigo Testamento. O Anjo de Jeová é um agente revelador
de Deus que muitas vezes parece se confundir com o próprio Deus ou ser nomeado
como Deus.
Dado que o
versículo acabou de introduzir uma distinção entre o Λόγος e
Deus, alguns tentaram compreender essa declaração como não dizendo que o Λόγος é o
próprio Deus. De acordo com uma nota na Tradução do Novo Mundo com
Referências, devemos entender que o Λόγος não é o próprio Deus, mas um
deus: “ '[um] deus.' Gr. Theós, em contraste com ton theón,
‘o Deus’, na mesma sentença”. A mesma obra diz no Apêndice 6A: “(deus) é um
substantivo predicativo no singular ocorrendo antes do verbo e sem ser
precedido de artigo definido. Trata-se de um theós anartro
(substantivo sem artigo). O Deus com quem a Palavra ou o Logos estava
originalmente é designado aqui pela expressão grega Θεὸς, isto
é, theós precedido pelo artigo definido ho. Trata-se
de um theós articular. A construção articular do substantivo
indica uma identidade, uma personalidade, ao passo que um substantivo
predicativo anartro singular, precedendo ao verbo, indica o atributo ou
predicado de alguém. Portanto, a declaração de João, de que a Palavra ou o
Logos era ‘[um] deus’, ‘divino’ ou ‘semelhante a deus’ não significa que era o
Deus com quem estava. Apenas expressa certo atributo da Palavra ou do Logos,
mas não o identifica com o próprio Deus.” Isso pode estar de acordo com o
uso amplo da palavra hebraica "deus" (אֱלוֹהִים ) para
se referir a agentes reveladores que não necessariamente são o próprio Deus. De
fato, parece que a Bíblia designa como “deus” um agente que atua
como revelador de Deus, ainda que esse agente não seja o próprio Deus.
Além do mais, como predicado, o sentido mais próprio é “O Verbo era divino”,
isto é, de qualidade divina.
Mas
será que a ausência do artigo justifica mesmo essa distinção entre "Θεὸς anartro” e “Θεὸς articulado”? Mesmo
pensadores que discordam que o Λόγος não seja Deus em sentido
pleno, sugerem que essa distinção é teologicamente significativa, na medida em
que o Θεὸς articulado
pode se referir à pessoa divina de “Deus, o Pai”, enquanto
o Θεὸς anartro
pode se referir a Deus enquanto essência divina. No entanto, essa
distinção teológica entre pessoa divina e essência divina é uma formulação
posterior. De modo similar, o Comentário Bíblico Adventista também
parece ver um significado teológico nessa distinção: “A ausência, no grego, do
artigo definido antes da palavra 'Deus' torna impossível traduzir a declaração
como ‘Deus era o Verbo’. Traduzi-la desta forma seria igualar Deus e o Verbo, e
assim, limitara Divindade exclusivamente ao Verbo. Os dois termos ‘Verbo’ e
‘Deus’, não são intercambiáveis. Seria tão incorreto dizer que ‘Deus era o
Verbo’, quanto dizer que ‘o amor é Deus’ ou que ‘a carne se fez
Verbo’.”
Wayne Grudem observa,
no entanto, que provavelmente não temos aqui nada mais do que uma regra
gramatical e não uma distinção teológica: Θεὸς articulado
é um sujeito enquanto Θεὸς anartro
é um predicado: “A tradução ‘o Verbo era Deus’ foi contestada pelas
testemunhas-de-jeová, que vertem ‘o Verbo era um deus’, implicando
que o Verbo era simplesmente um ser celestial, mas não plenamente divino. Eles
justificam essa tradução salientando que o artigo definido (gr. ho,’o’) não
aparece antes da palavra grega theos (‘Deus’). Dizem,
portanto, que theos deve ser traduzido como ‘um deus’. Porém,
tal interpretação nunca foi acatada por nenhum estudioso do grego de lugar
algum, pois é sabido que a frase segue uma regra normal da gramática grega, e a
ausência do artigo definido indica meramente que ‘Deus’ é o predicado, e não o
sujeito da frase.” (Teologia Sistemática - atual e exausta, capítulo 14).
Assim, para
essa visão, a diferença não é semântica, mas sintática. Isto é, Θεὸς em
ambos os casos significa o mesmo, no entanto, aparece com artigo quando ocorre
como sujeito e sem o artigo quando assume a função de predicado. Duas coisas
sugerem que Θεὸς é
usado em ambos os casos com o mesmo valor semântico: (i) a proximidade
das palavras: o texto no original diz “O Verbo estava com Deus e Deus
era o Verbo”, assim “Deus” e “Deus” ocorrem lado a lado, de modo que é natural
interpretá-los com o mesmo significado; (ii) a estrutura do texto: João
1,1 parece formar uma espécie de raciocínio com três proposições:
“No princípio era o Verbo
O Verbo estava com Deus
E Deus era o Verbo.”
Assim como devemos entender Verbo
como tendo o mesmo sentido nas três proposições, parece que é preciso também
concluir o mesmo sobre a palavra “Deus”. No entanto, não parece que o autor
estivesse querendo construir um silogismo e esperando que o termo Deus na premissa
do meio tivesse o mesmo sentido da premissa final.
É preciso
dizer que o Evangelho de João foi o último a ser escrito, de modo que sua
redação se deu quando a igreja estava provavelmente construindo uma compreensão
de Jesus como Deus. Mas é preciso dizer que não existiam quando o texto foi escrito
os desenvolvimentos teológicos em relação à Trindade. De modo que também
precisamos nos acautelar com a ideia de que João estivesse conscientemente
querendo ensinar o dogma trinitário. Parece mais que João afirma que o Λόγος tem
uma qualidade divina, justamente por ser gerado por Deus e ser seu agente divino
revelador. Ademais, o texto poderia ser lido de maneira próxima como feita pelo
gnosticismo: o Verbo (Logos) é um Éon, uma entidade divina que emana de Deus.
Ou ainda, o Verbo, como vimos, poderia ser entendido como a Sabedoria, associando-o
à Sofia dos gnósticos. No entanto, é preciso dizer que essa é uma interpretação
feita pelo gnosticismo e não necessariamente o sentido pretendido pelo
escritor. O que me parece é que João reflete a mesma teologia que me parece ser
a de Colossenses: Cristo é um ser divino, a primeira criação de Deus, em quem
Deus fez habitar a divindade e aquele que Deus usou como instrumento para criar
tudo (Colossenses 1:15-19)
É verdade, no
entanto, que com o tempo a teologia buscará conciliar a ideia de que Cristo é
Deus e ao mesmo tempo distinto de Deus. A autoproclamada teologia ortodoxa para
resolver o paradoxo, fez uma distinção entre “pessoa” (υπόσταση) e “essência”
(ουσία). Assim, a
distinção diria respeito à pessoa: “O Verbo e Deus Pai são pessoas distintas”.
Já a identidade diria respeito à essência: “O Verbo e Deus Pai compartilham a
mesma essência divina”. Essa é uma forma teológica posterior de conciliar que o
Verbo estava com Deus e ao mesmo tempo era Deus. No entanto, essa é uma
formulação teológica e filosófica que não se encontra presente explicitamente
no texto.
João 1,2: Ele estava no
princípio com Deus.
Nestle 1904: Οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν Θεόν.
Aqui parece
haver apenas uma repetição do que já foi dito no versículo anterior,
provavelmente essa repetição serve para dar ênfase ao que já foi dito. O verso
também pode servir de transição no sentido de dizer que o Verbo que sempre
esteve junto de Deus agora se faz presente com Deus para criar o mundo. No
entanto, essa parece ser mais uma leitura teológica que parte da eternidade
imanente do Verbo para sua ação econômica no tempo. A distinção em questão
consiste na distinção teológica entre a Trindade em si mesma na
eternidade (Trindade Imanente) e a Trindade em ação no tempo (Trindade
econômica). Assim, o texto estaria dizendo no versículo 1 que “No princípio
(na eternidade) o Pai sempre esteve no Filho” e o versículo 2 faria uma
transição dizendo que “O Pai e o Filho vieram a agir juntos dentro do tempo”.
Mas isso é uma leitura que requer conceituações teológicas posteriores. Parece
que João desejava apenas dar nova ênfase ao que já havia dito e não precisamos
fazer especulações teológicas por causa de uma mera repetição.
João 1, 3: Todas as coisas
foram feitas por ele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.
Nestle 1904: πάντα δι’ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν.
A
palavra γέγονεν usada
no indicativo ativo perfeito no sentido de “teria sido feito.” (NVI), pode tanto
se referir ao que foi criado quanto à vida que aparece no verso seguinte (4). A Tradução
do Novo Mundo sugere a seguinte interpretação: “Todas as coisas
vieram a existir por meio dele, e sem ele nem mesmo uma só coisa veio a
existir. O que veio a existir por meio dele foi a vida”. A
NVI, por outro lado, faz o contrário: “Todas as coisas foram feitas por
intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito. Nele
estava a vida.” Aparentemente a leitura da Tradução do Novo
Mundo é a mais provável por ser a leitura ante-nicena (isto é, anterior ao
concílio que estabeleceu a doutrina da Trindade), enquanto a leitura que a
maioria das traduções segue, incluindo a NVI, é uma escolha que se cristalizou
por favorecer mais a doutrina da Trindade. Assim, o ponto final é mais
adequadamente colocado depois de ἕν enquanto faz mais sentido
situar ὃ γέγονεν como
parte do próximo versículo (.4)
William Hendriksen sugere
que este texto ensina que o Verbo criou todas as coisas, ele diz: “Portanto, a
grande verdade de que Cristo criou todas as coisas (porque, nas obras externas,
todas as três Pessoas cooperam) é, antes de tudo, declarada positivamente, a
partir do ponto de vista do passado.” (Comentário do Novo Testamento).
Essa leitura também parece um pouco forçada por ser influenciada por
desenvolvimentos teológicos posteriores. Se entendermos que o Verbo é o mesmo
que a Sabedoria personificada do Antigo Testamento, então o texto afirma algo
que já existe na tradição hebraica: que Deus criou tudo por meio de sua Palavra.
Não parece suficiente concluir daqui que a Palavra criou ativamente o mundo,
mas sim que Deus é quem ativamente criou o mundo usando sua Palavra ou Verbo
como meio. O Verbo age como uma espécie de instrumento pelo qual Deus criou
tudo. Isso está em conformidade com o significado da preposição δι’ que
tem o sentido de “através de” (Concordância Strong). Não parece, pois,
apropriado designar o Verbo como “Criador” com base neste versículo.
Concluímos,
assim, que São João 1,1-3 ensina que no princípio o Verbo e
Deus estavam juntos, antes mesmo de criar o mundo e que o mundo e tudo o que
nele há foi criado por Deus por meio do Seu Verbo ou da Sua Palavra.
Descobrimos que a palavra Verbo tem o sentido de agente revelador de Deus, que
esse agente pode ser chamado também de Deus, mas que ele é ao mesmo tempo
distinto de Deus. Podemos ver o Verbo como uma ponte entre Deus e o mundo, o
Verbo está nesse lugar intermediário, por isso Deus usa o Verbo tanto para
criar o mundo quanto para se revelar ao mundo, e é nesse sentido que ele é um
ser divino, a presentificação de Deus no mundo.
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LXX: Septuaginta
NAA = Nova Almeida Atualizada
NVI =
Nova Versão Internacional
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