REALISMO X IDEALISMO E A PROPOSTA FENOMENOLÓGICA
A Fenomenologia é sobretudo um modo de
pensar que surge no contexto da crise das ciências, em especial como uma
anti-teoria, que se contrapõe ao cientificismo positivista e ao psicologismo e
que supera o dilema filosófico de ênfases no sujeito ou no objeto das tradições
idealista e realista. Na medida em que Husserl usou conceitos da tradição
filosófica, doando-lhes um novo sentido dentro do olhar fenomenológico, é
importante resgatar, num primeiro momento, a tradição filosófica no meio da
qual Husserl desenvolve seu pensamento.
No contexto filosófico em que a
Fenomenologia surge, haviam duas grandes correntes na Tradição Filosófica em
relação ao sujeito e ao objeto. A primeira pode ser denominada de Realismo,
caracterizada pela concepção de que o locus
de conhecimento e sentido encontrava-se nas coisas em si, em uma essência substancial, numa realidade anterior ao sujeito. Tal posicionamento foi
representado por empiristas, como Francis Bancon, cuja doutrina concebia a
origem do conhecimento na manipulação da natureza pela experimentação. Em sua
ênfase na objetividade, a Ciência positivista buscou banir o máximo possível a
influência da subjetividade na construção de um conhecimento válido. A visão
epistemológica do sentido habitando nas coisas também propiciou uma concepção
popperiana de verdade, e uma busca de se aproximar através do teste da teoria
pelo erro cada vez mais da essência praticamente inalcançável que habitaria na
realidade.
Outra corrente, por sua vez, via o
sentido ou o conhecimento como representações mentais ou cognitivas, sendo que
o conhecimento ou o sentido estaria na construção representacional que a
Consciência fazia da realidade. O conhecimento, neste caso, seria uma
construção do sujeito. O filósofo
representativo desta corrente é René Descartes, que através da dúvida metódica
estabeleceu o Cogito como fundamento
gnosiológico primordial. O grande equívoco do idealismo cartesiano foi o
solipsismo filosófico, que isolou o ego cogito
do mundo.
O filósofo que buscou conciliar a disputa
epistemológica entre o Realismo e o Idealismo, mas que acabou adotando uma
espécie de Idealismo, foi o prussiano Immanuel Kant. Kant partiu da ideia de que
o conhecimento começa com a experiência, mas tem sua origem na Consciência. Ele concebeu a
Consciência como categorial, na qual o mundo seria ‘encaixado’ nas categorias
da consciência, composta de estruturas lógicas apriorísticas. O conhecimento, então,
consistiria em apreender os elementos do mundo empírico por meio da aplicação
dos processos racionais da consciência, na união da intuição da ordem do
empírico com a razão. A razão pura seria aquela que contém os princípios para
conhecer algo absolutamente ‘a priori’. Kant fala, então, de ‘formas do fenômeno
a priori’, que estariam presentes no espírito em geral, independente da sensação.
Neste ponto, a filosofia kantiana acaba por cair num certo idealismo, e a ideia
de categorias gerais da consciência vai ter reverberações na Psicanálise, no conceito de representantes pulsionais e na Psicologia Analítica, na ideia de
estruturas arquetípicas da psique universal.
Dentro de toda essa discussão do que
seria a Consciência e de onde estaria o
locus de significado, sentido e conhecimento, a Fenomenologia traz dois
conceitos importantes: a ideia de consciência
intencional e a de a priori da correlação intencional. Enquanto
a tradição filosófica empirista reduzia a consciência ao sentido psicológico,
os cartesianos a colocavam como constructo isolado do mundo e os kantianos a
viam como estrutura categorial, Husserl concebeu a consciência como
inerentemente intencional. A ideia de intencionalidade já estava presente no
Psicologismo de Brentano, que concebia a intencionalidade no sentido do
voltar-se da consciência para os objetos representados para e na consciência.
Brentano falava de um objeto intencional,
isto é, o objeto é presente para a consciência no processo em que ele se
apresenta a mesma. Toda experiência psíquica se refere a um objeto. No entanto,
a psicologia intencional de Franz Brentano, concebia a intencionalidade no
sentido do direcionamento das representações, insistindo numa espécie de
idealismo.
Husserl é profundamente inovador.
Diferente das teses psicologistas, Husserl concebe a consciência como um ato, e não uma estrutura psicológica, pois a consciência é transcendental. A consciência não é
estrutural, mas um verbo. Conhecer é o direcionar da consciência para o objeto. É
nesse sentido que a Fenomenologia vai falar de Consciência Intencional. Cada Cogito
tem em si como visado o seu cogitatum.
A propriedade fundamental da Consciência é sempre ser consciência de alguma coisa. A intencionalidade da
Consciência é uma reorientação até a coisa, e isso é um traço constitutivo, o
ser da própria consciência. A Consciência, portanto, não é uma estrutura
fechada separada do mundo exterior, ela é aberta ao mundo e sempre direcionada
ao objeto. Pode-se falar, então, de uma consciência
pública, não existe uma cisão entre “interior” e “exterior”, a experiência
é vivida no mundo.
Mas
Edmund Husserl não cai no Idealismo tradicional, como se só a Consciência estivesse
direcionada para o mundo. O objeto também é objeto em referência a uma consciência.
Para todo ato de ver existe uma coisa vista, para todo observar há um
observado, para todo olhar há um olhado, para todo ouvir um ouvido, para todo
cheirar um cheirado, e para todo lembrar um lembrado. Assim, não basta falar
numa consciência intencional, é preciso identificar também a natureza
constitutiva dos objetos intencionais. É nesse sentido que se pode falar de uma
análise noético-noemática. Os atos de
consciência (noeses) e a coisa visada
(noema), encontram-se numa correlação noético-noemática apriorística. A intencionalidade faz com que o ego
puro projete atos intencionais que incidem no objeto, que por sua vez está
direcionado à consciência que o visa.
Husserl vai falar, então, de um a priori da correlação intencional, isto
é, o sujeito e o objeto surgem como inseparáveis, não numa relação de duas anterioridades separadas, nem numa dialética de antagônicos, mas como uma correlação de emergências simultâneas e
inseparáveis. O foco não está mais na ênfase idealista no sujeito, nem na
ênfase realista do objeto, mas sim na correlação universal e apriorística
eu-mundo. Existe uma vinculação universal inexorável de correlação sujeito-objeto,
sem o qual não existiria nem “eu”, nem “mundo”. Essa correlação, portanto, está
posta antes de qualquer coisa, por isso, a
priori – anterior a qualquer experiência. Isso não significa que as
‘coisas’ (embora essa não seja a melhor palavra) não existiriam se não houvesse nenhum sujeito, mas sim que só pode
haver objeto se houver um sujeito que lhe doe sentido. Mas esse sentido não é
dado arbitrariamente por uma consciência idealista, antes é constituído na
própria aparição do fenômeno à consciência. Não existe, portanto, um objeto
visado sem uma consciência intencional que o vise, nem consciência intencional
sem um objeto intencional visado.
FONTES
Goto,
Tommy Akira (2007). A (Re) constituição da
Psicologia Fenomenológica em Edmund Husserl. Tese de Doutorado. PUC
Campinas: Campinas
Goto,
Tommy Akira (2008). Introdução à
Psicologia Fenomenológica. São Paulo: Paulus.
Husserl,
Edmund (1929). Conferências de Paris.
Edições 70.
Kant,
Immanuel (1781). Crítica da Razão Pura. Membros
do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia) – versão eletrônica.
Ponty,
Merleau Maurice (1999). Fenomenologia da
Percepção - prefácio. São Paulo: Martin Fontes.
*Anotações de aula.
*Anotações de aula.
ARTIGO ATUALIZADO E AMPLIADO PARA FALAR DE HEIDEGGER (AQUI)
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