O ÚNICO E A SUA PROPRIEDADE - MAX STIRNER (RESUMO)
O que se segue é um resumo do livro O Único e a sua propriedade (1844) do filósofo alemão Max Stirner. O livro, e também este resumo, se divide em duas partes. A primeira trata do “homem” (ou “humano” - em linguagem inclusiva), considerando a luta que o humano trava na busca de se encontrar e mostrando como se deu o desenvolvimento humano na história universal. A segunda parte trata do “eu” e mostra como ele deve se libertar das imposições exteriores da religião, da sociedade e do Estado, concluindo que cada indivíduo precisa se reconhece como único. É importante colocar que este
resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem
paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor
original.
I. O HUMANO
1. UMA VIDA HUMANA
A partir do momento em que vê a luz do mundo, um ser humano, uma criança, busca encontrar-se, numa luta cujo desfecho consiste em vencer ou sucumbir, o que vencer será senhor, o vencido súdito, mas os dois são inimigos, e estão sempre alerta, atentos às fraquezas do outro. Começamos por testar as nossas forças com as forças da natureza. Os pais impõem-se-nos como forças da natureza; mais tarde, é preciso abandonar pai e mãe, considerando-se vencidas todas as forças da natureza.
Durante bastante tempo continuamos arredados de uma luta que mais tarde não nos dará descanso, a luta contra a razão, que surge após a infância. Espírito é o nome do primeiro encontro conosco próprios. Para o homem da razão, isto é, para o homem do espírito, a família não é mais uma força da natureza: manifesta-se então uma recusa dos pais, e se estes renascem sob a forma de forças espirituais, racionais.
2. HOMENS DO TEMPO ANTIGO E DO MODERNO
Para entender o desenvolvimento humano, consideremos o modo como os nossos antepassados conduziram as suas vidas. Comecemos pelos Antigos, nossos antepassados pré-cristãos. Na época mais brilhante da Antiguidade, a cultura sofista expandia-se, e a Grécia divertia-se com tudo aquilo que antes levara muito a sério. Os sofistas propunham a onipotência do entendimento.
Mas surge então um segundo momento da libertação intelectual grega com Sócrates. Sócrates entendia que não basta utilizar em tudo o entendimento, mas o mais importante é saber qual a causa na qual ele se empenha, se ele serve a uma boa causa, por isso foi Sócrates o fundador da ética. Sócrates dizia: “Tendes de ser puros de coração, se quiserdes que deem valor à vossa inteligência.” Por isso, pode-se chamar esse segundo momento de período da pureza do coração. Com Sócrates começa a grande prova do coração, todo o seu conteúdo é passado a pente fino.
Os Antigos elevaram-se às alturas do espírito, e procuraram espiritualizar-se. Como os Antigos orientaram os seus esforços no sentido da superação do mundo, procurando libertar o indivíduo dos laços complexos e enredados das relações com as outras coisas, chegaram também, por fim, à própria dissolução do Estado e à preferência por tudo o que fosse privado. Entendeu-se que comunidade, a família, etc., enquanto relações naturais, constituíam obstáculos pesados que restringem a liberdade de espírito.
Enquanto para os Antigos, o mundo era uma verdade (uma verdade a cuja não-verdade eles procuraram chegar, e por fim chegaram), para os Modernos, o espírito era uma verdade. É possível observar no cristianismo um processo semelhante àquele que vimos na Antiguidade, na medida em que, até à época preparatória da Reforma, o entendimento permaneceu prisioneiro dos dogmas cristãos, mas no século anterior ao da Reforma se deu um levantamento sofista que entrou num jogo herético com todos os artigos da fé. Dizia-se: “se o coração se mantiver na fé cristã, não há razão para o entendimento não desfrutar dos seus prazeres”.
Foi, então, que assim como Sócrates surgiu para superar os sofistas na Antiguidade, no Cristianismo levantou-se a Reforma. A própria Reforma, tal como Sócrates, levou finalmente a sério o coração, e desde então os corações tornaram-se cada vez menos cristãos. Na medida em que, com Lutero, se começou a levar a peito a coisa, este passo da Reforma levaria necessariamente a que também o coração fosse aliviado da pesada carga da fé cristã. Então o Cristianismo se tornou árido, decrépito e sem conteúdo.
Consideremos agora o reino dos espíritos, que é imensamente grande, pois o espiritual é infinito. Vejamos então o que é realmente o espírito, essa herança que os Antigos nos legaram. O espírito é o criador de um mundo espiritual, o espírito só é espírito quando cria algo de espiritual: só é real quando se junta ao espiritual, às suas criaturas. Reconhecemos o espírito por suas obras. As obras ou os filhos do espírito não são nada mais do que espíritos. Na medida em que se reconhece o espírito por suas obras, é importante considerar sua primeira obra, pois esta é a que surge a partir do nada. A primeira criação do espírito é ele próprio, o espírito. No entanto, o “eu” sente que se distingue do espírito, o espírito se torna o seu ideal, a transcendência, o seu Deus.
O espírito é então uma coisa, e eu sou outra. Mas, o que é essa outra coisa? Temos espírito porque temos pensamentos. O que são os pensamentos? São seres espirituais. Então não são coisas? Não, são o espírito das coisas, o essencial de todas as coisas, o que elas têm de mais íntimo, a sua ideia. Eu acredito na verdade, e é por isso que a minha busca se orienta para ela; não há nada acima dela, ela é eterna. Sagrada e eterna é a verdade, ela é o sagrado, o eterno. No topo da esfera do sagrado está, pois, o ser supremo e a fé nele, o nosso “espírito santo”. Sagrado é, acima de tudo, a verdade, a justiça, a lei, a boa causa, a majestade, o casamento, o bem comum, a ordem, a pátria, etc.
Com os fantasmas, entramos no reino dos espíritos, no reino das essências. Quando vamos ao fundo de uma coisa, ou seja, quando buscamos a sua essência, muitas vezes encontramos coisas muito diferentes do que ela parece ser. Aquilo que, a princípio, era visto como a existência, o mundo e coisas afins, é agora mera aparência, e aquilo que verdadeiramente existe é, ao contrário, a essência, cujo reino se enche de deuses, espíritos, demónios, ou seja, de boas ou más essências, de bons ou maus seres. Conhecer e aceitar as essências e nada mais que as essências, é isso a religião: o seu reino é um reino de essências, de espectros e de fantasmas.
A maioria das pessoas acredita nesse reino de fantasmas, são como loucos mesmos, loucos de manicômio, pessoas possessas por ideias fixas, como a verdade da fé que não se duvida, ou a ideia intocável da majestade do povo. Isso é o fanatismo, e é nos mais cultos que mais se encontra o fanatismo, porque o homem é culto a partir do momento em que se interessa pelas coisas espirituais, e este interesse pelo espiritual, se for vivo, é precisamente o fanatismo. Muitos que até recusam o Cristianismo, ficam presos às crenças da moralidade cristã, a moralidade acaba sendo uma obsessão.
Ainda hoje usamos a palavra de origem latina “religião”, que exprime o conceito de “estar preso a”. Presos estaremos, de fato, enquanto a religião se apoderar da nossa interioridade. Deus, a imortalidade, a liberdade, o humanitarismo, etc., são-nos insuflados desde a infância como ideias e sentimentos que atingem a nossa interioridade e, nos dominam inconscientemente e nos são impostos.
A história universal, cujo desenvolvimento se deve totalmente à raça caucásica, parece ter percorrido até agora duas eras caucásicas: na primeira tivemos de desenvolver e esgotar a nossa negritude inata, e na segunda o nosso mongolismo (carácter chinês), ao qual é igualmente necessário pôr fim de forma terrível. A negritude, o nosso caráter negro, é representada pela Antiguidade, o tempo da dependência das coisas; o mongolismo corresponde ao tempo da dependência dos pensamentos, a era cristã. Ao futuro pertencem as palavras: “Sou o dono do mundo das coisas e sou o dono do mundo do espírito”.
O valor de mim próprio nunca poderá ser muito grande enquanto houver o duro diamante do Não-Eu. Entre os Chineses, tudo fica na mesma, nada de essencial ou de substancia se altera. Assim sendo, na nossa era mongoloide toda a mudança foi sempre apenas reforma ou melhoria, nunca eliminação, consumpção ou destruição. Os Chineses serão provavelmente o povo mais positivo, porque estão completamente afundados em regulamentos; mas também a era cristã não saiu do positivo, ou seja, da liberdade limitada, da liberdade “adentro de certos limites”. No seu nível mais avançado da cultura, esta atividade merece o nome de científica, do trabalho sobre um pressuposto estático, de uma hipótese intocável.
Na sua primeira e mais incompreensível forma, a moralidade apresenta-se como hábito, aquilo que é antigo e permanente, contrário à inovação. Agir de acordo com os usos e costumes do país - é a isso que se chama agir moralmente. Por isso, a China é o país em que se pratica da forma mais simples um comportamento moral puro. O mongolismo estabeleceu a existência de seres espirituais, de um mundo de espíritos, criou um “céu” (Tien), os caucasianos lutaram durante milénios com esses seres espirituais, buscando-lhes os fundamentos.
Por vezes, dividem-se os seres humanos em duas classes, os cultos e os incultos. Os primeiros, ocupavam-se das ideias, do espírito, e no período pós-cristão, cujo princípio é o do pensamento e no qual eles dominaram, exigiam um respeito submisso para as ideias que reconheciam. Mas os incultos, na verdade, não são mais que crianças, e quem quer que seja que siga apenas as suas necessidades vitais é indiferente em relação àqueles espíritos; mas, como é igualmente fraco no confronto com eles, submete-se ao seu poder e é dominado pelos pensamentos. É este o sentido da hierarquia. A hierarquia é o domínio dos pensamentos, o domínio do espírito! Até hoje, continuamos a ser hierárquicos, oprimidos por aqueles que se apoiam nos pensamentos. Mas os dois, o culto e o inculto, e vice-versa, estão sempre a esbarrar um no outro, e não apenas no choque de dois indivíduos, mas num e no mesmo homem. Porque nenhum homem culto é tão culto que não encontre prazer nas coisas, sendo, por isso, inculto; e também não há homem inculto totalmente desprovido de pensamentos.
Durante muito tempo viveu-se na ilusão de ter a verdade, sem se pensar seriamente na necessidade de sermos nós próprios verdadeiros para possuirmos a verdade. Esse tempo foi a Idade Média. Imaginava-se que se podia chegar a realidades não materiais e não sensíveis por meio da consciência comum, ou seja, a consciência material, aquela forma de consciência que só é receptiva a coisas materiais ou sensíveis e sensoriais, e mortificava-se o corpo das mais diversas formas, para acolher em si o suprassensível.
Lutero, que pôs fim à Idade Média, foi o primeiro a compreender que o homem terá de se tornar outro se quiser apreender a verdade: terá de se tornar tão verdadeiro como a própria verdade, só aquele que tem fé verdadeira pode alcançar a verdade. Por isso, com Lutero começa a compreender-se que a verdade, sendo pensamento, só existe para o homem pensante. Lutero e Descartes foram, pertinentemente, associados no “Quem tem fé é um Deus” (espírito que crê) e no “Penso, logo existo” (espírito que pensa), o céu do homem é o pensamento, o espírito.
Como o protestantismo rompeu com a hierarquia medieval, pode generalizar-se a ideia de que tinha sido quebrada em absoluto a hierarquia, esquecendo-se por completo que ele tinha sido uma Reforma, ou seja uma renovação da velha hierarquia. A outra, a medieval, tinha sido uma fraca hierarquia, porque teve de aceitar, a seu lado, toda uma barbárie profana; só a Reforma revigorou a força da hierarquia.
O protestantismo fez do ser humano um verdadeiro “Estado-de-polícia-secreta”. A consciência, um espião sempre alerta, vigia todos os movimentos do espírito, e tudo o que faz e pensa é para ele uma questão de consciência, ou seja, questão de polícia. O protestante é feito desta dilaceração do ser humano, entre impulso natural (plebe interior) e consciência moral (polícia interior), em que a razão da Bíblia substitui a razão da Igreja. O católico é simplesmente leigo, o protestante é em si mesmo homem espiritual. É este o progresso em relação à Idade Média, e ao mesmo tempo a maldição do período da Reforma: o espiritual chegou à sua completude e plenitude. A história universal tratou-nos de forma cruel, e o espírito alcançou um poder absoluto.
Entre os modernos, os mais moderníssimos são os Livres. Os Livres são apenas uma tradução dos liberais. Podemos considerar: (i) o liberalismo político: No liberalismo político, que favorece o egoísmo burguês, a liberdade do indivíduo é a liberdade de pessoas, do poder pessoal, de senhores: a segurança de cada pessoa individual contra todas outras pessoas, a liberdade pessoal; (ii) o liberalismo social: No liberalismo social ou socialismo, que favorece o egoísmo do trabalhador, as pessoas devem ser iguais social e economicamente; (iii) liberalismo humanista: No liberalismo humanista, o humano deve lutar pela essência da humanidade dentro de si, as diferenças individuais são abolidas e o que importa é a humanidade dentro de cada um.
II. O EU
1. A SINGULARIDADE-DO-PRÓPRIO
A liberdade é uma doutrina do cristianismo. A liberdade proclamada pelo cristianismo cumpre-se na privação, no “sem”: sem pecado, sem deus, sem moral, etc. O impulso para a liberdade resultou sempre no desejo de uma determinada liberdade, por exemplo a liberdade religiosa, a liberdade política, etc. O desejo de uma determinada liberdade inclui sempre a intenção de estabelecer uma nova dominação; assim, a revolução pôde dar aos seus defensores o sentimento de quem luta pela liberdade, mas na verdade isso só aconteceu porque se tinha em vista uma determinada liberdade, e com isso uma nova dominação.
Diferente da liberdade é a singularidade-do-próprio. A singularidade-da-próprio é toda a minha essência e a minha existência, sou eu mesmo. Eu sou livre de tudo aquilo de que me desembaracei, e proprietário daquilo que tenho em meu poder, ou de que sou senhor, meu próprio, sou-o em cada momento e em todas as circunstâncias, desde que saiba ter-me e não me entregar aos outros.
2. O EU-PROPRIETÁRIO
Será que é possível chegar ao eu próprio através do liberalismo? O liberalismo proclamou o advento do “humano”, podemos dizer que com isso se levou às últimas consequências o Cristianismo, e que desde sempre o cristianismo não teve outro objetivo que não fosse o de realizar o “humano autêntico”. A religião humana é apenas a última metamorfose da religião cristã. Pois o liberalismo é religião, uma vez que separa de mim a minha essência para a colocar acima de mim, porque eleva o “humano” na mesma medida em que qualquer religião o faz com o seu deus ou os seus ídolos, porque faz do que é meu algo de transcendente. Podemos chamar a esta religião a religião de Estado, a religião do “Estado livre”, como aquela religião que o Estado livre se sente, não apenas legitimado, mas forçado a exigir de cada um dos seus, quer este, no seu íntimo, seja judeu, cristão ou qualquer outra coisa.
Dizer que o Estado tem de levar em conta o “humano”, a nossa “humanidade”, equivale a dizer que ele tem de contar com a nossa moralidade. A moralidade é oposta ao egoísmo, porque só dá valor ao humano em mim, e não ao meu eu enquanto tal. É por isso que o Estado e eu são inimigos. O egoísta, não se empenha no bem comum, nem se sacrifica pela sociedade. Este Estado, que aliás não existe ainda, mas espera pela sua concretização, é ideal do liberalismo em progresso. O liberalismo quer dar corpo ao "humano", ou seja, criar para ele um mundo, que seria o mundo humano ou a sociedade humana universal (comunista). O humano ou a humanidade é concebido como algo abstrato e geral, uma qualidade diferente do eu. Ao humano. pertence o poder, o mundo e o eu.
O direito é o espírito da sociedade. Se a sociedade tiver uma vontade, essa vontade é o direito: ela só existe através do direito. Mas, como ela só existe se exercer a sua soberania sobre os indivíduos, o direito é a sua vontade soberana. A justiça é o interesse da sociedade. Todo o direito vigente é direito alheio, é direito que alguém me “dá” ou me “concede”. Os reformadores sociais pregam-nos um “direito da sociedade”, o direito de todos que deve anteceder o direito do eu. O individuo torna-se escravo da sociedade, e só tem razão se a sociedade lhe der razão, ou seja, só se viver segundo as leis da sociedade, se for legalista.
O comunismo, que pressupõe que os homens “têm por natureza os mesmos direitos”, contradiz o seu próprio princípio segundo o qual eles não têm qualquer direito por natureza. Pois não quer aceitar, por exemplo, que os pais têm, “por natureza”, direitos sobre os filhos, ou vice-versa: abole a família. Quando a Revolução declarou a igualdade um “direito”, refugiou-se em território religioso, na religião do sagrado, do ideal.
O direito, aquilo que numa sociedade é de direito, tem também a sua expressão na lei. Seja qual for a lei, ela deve ser respeitada pelo cidadão, que precisa ser um legalista. Há quem tente distinguir a lei, que partiria de uma autoridade legítima da ordem, que seria arbitrária. Mas uma lei sobre a ação humana (lei ética, lei do Estado, etc.) é sempre uma expressão de uma vontade, logo uma ordem. Os Estados só duram enquanto houver uma vontade dominante e essa vontade for vista como idêntica à vontade própria. A vontade do senhor é lei. O Estado não pode abdicar da pretensão de determinar a vontade individual, a vontade própria é a ruína do Estado.
Todo o Estado é um regime despótico, quer o déspota seja um ou muitos, quer sejam todos os dominadores, cada um exercendo a sua ação despótica sobre os outros como se pensa que acontece numa república. Costumamos classificar os Estados de acordo com a forma como o “poder supremo” está repartido neles. Se for por um só - monarquia; se for por todos – democracia. O poder supremo é poder contra o indivíduo e a sua vontade própria. O Estado exerce o seu poder, o indivíduo não o pode fazer.
O comportamento do Estado é o do poder violento: a esse poder ele chama “direito”, ao do indivíduo chama-lhe “crime”. Todas as formas de governo se fundam no princípio de que todo o direito e todo o poder pertencem à totalidade do povo. Existe sempre um coletivo acima do indivíduo, e esse coletivo tem um poder que se diz legitimo, ou seja, que é o próprio direito.
O direito sofreu um ataque vindo do seu próprio campo, a partir do ponto de vista do próprio direito, quando o liberalismo declarou guerra aos “privilégios”. Gerou-se uma luta feroz em torno de dois conceitos: o de privilégio e o de igualdade de direitos. A “igualdade de direitos” é, na verdade, um fantasma, porque o direito não é mais nem menos que concessão, uma questão de graça- que, aliás, podemos ganhar também por mérito próprio, pois mérito e graça não se contradizem, uma vez que também graça tem de ser “merecida”. E assim se alimenta o sonho de que “todos os cidadãos devem ter direitos iguais”. Enquanto cidadãos de um Estado, eles são certamente todos iguais para esse Estado, mas ele não deixará de os dividir de acordo com os seus fins próprios, privilegiando-os ou preterindo-os; mas terá, para além disso, de os classificar em bons e maus cidadãos. A polémica contra o privilégio é um dos traços característicos do liberalismo, que insiste na sua luta contra o “privilégio”, o direito prévio, porque se reclama de “direito”. Mas não pode fazer muita coisa, porque os privilégios só terão fim com o fim do direito, uma vez que são apenas variantes deste.
Na sociedade, a exigência humana pode, quando muito, ser satisfeita se se sacrificar a exigência do egoísmo. A liberdade do povo não é a minha liberdade. Um povo só pode ser livre à custa do indivíduo, quanto mais livre o povo, mas limitado o indivíduo. O Estado tem sempre uma única finalidade: limitar o indivíduo, refreá-lo, subordiná-lo, fazer dele súbdito de uma qualquer ideia geral; só dura enquanto o indivíduo não for tudo em tudo, e é apenas a mais marcada expressão da limitação do meu eu, da minha limitação e da minha escravidão. Nunca um Estado tem como objetivo permitir a atividade livre de cada indivíduo, mas sempre aquelas que estão ligadas aos interesses do Estado. Povo é o nome, Estado o espírito daquela pessoa dominante que desde sempre me oprimiu.
No Estado o partido tem grande valor. O partido não é mais que um Estado dentro do Estado. São precisamente aqueles que mais reclamam uma oposição no Estado os que mais se insurgem contra qualquer divisão no partido. É a prova de que também eles só querem um Estado. O partido não suporta o apartidarismo, e é precisamente neste que se manifesta o egoísmo.
Os humanos têm algo de próprio, que eu devo reconhecer e considerar sagrado. A propriedade depende daquele que é o eu-proprietário. O mundo pertence ao humano e deve ser respeitado por mim como sua propriedade. A propriedade é aquilo que é meu. Proprietários não são, nem Deus nem o homem (a “sociedade humana”), mas o indivíduo. Propriedade em sentido burguês significa propriedade sagrada, de tal modo que eu tenho de respeitar a tua propriedade
A concorrência apresenta-se numa estreita relação com os princípios da sociedade burguesa. A concorrência não é outra coisa senão a igualdade. Como a ninguém está vedado concorrer com todos os outros no Estado, com exceção do rei que representa o próprio Estado, nem se esforçar por chegar ao mesmo nível, podendo até derrubá-los ou explorá-los em proveito próprio, isto é a prova provada de que, perante o tribunal do Estado, cada um apenas tem o valor de um “simples indivíduo” e não pode contar com tratamentos preferenciais.
Desse modo, a concorrência se apresenta como livre-concorrência. Mas será a “livre concorrência” verdadeiramente “livre”, ou será mesmo uma “concorrência” a título pessoal, como se quer fazer ver, porque o seu direito se funda nesse título? Será “livre” uma concorrência que o Estado, esse soberano do princípio burguês, dificulta com toda a espécie de barreiras? A livre concorrência não é, de fato, “livre”, porque me falta a coisa mesma que me permite entrar nela, como a falta de capital para investir em um negócio. A livre concorrência tem, assim, apenas um sentido: todos são, para o Estado, filhos iguais, e cada um pode correr e concorrer para merecer os bem as benesses do Estado. No sentido burguês, todos são possuidores ou “proprietários”.
A minha relação com o mundo consiste em desfrutar dele, em o usar para meu gozo pessoal: essa relação é gozo do mundo e faz parte do meu gozo pessoal. O que nós buscamos é o gozo da vida. O meu gozo pessoal me é negado porque eu imagino que tenho de servir outro, porque creio ter obrigações para com ele, porque me considero destinado ao “sacrifício”, à “dedicação”, ao “zelo”.
3. O ÚNICO
Se eu chegar à conclusão de que não sirvo nenhuma ideia, nenhum “ser superior”, daqui resulta, naturalmente, que não sirvo também nenhum humano, a não ser, eventualmente, a mim próprio. E assim serei, não apenas no plano dos atos ou do ser, mas também para a minha consciência: o Único.
Sempre se pensou ser preciso dar-me uma determinação situada fora de mim, e por fim quiseram até impor-me a ideia de que eu deveria reivindicar o humano, porque sou humano. Mas eu não sou um eu ao lado de outros eus, mas o eu único: eu sou Único. Por isso, as minhas necessidades são também únicas, os meus anos, em suma, tudo em mim é único. E só na qualidade deste eu único posso apropriar-me de tudo, só enquanto tal eu posso agir e evoluir: não evoluo como humano, não desenvolvo em mim o humano, mas desenvolvo-me a mim próprio enquanto eu. É este o sentido do Único.
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