SERMÃO SOBRE A PAIXÃO DE CRISTO - PEDRO CRISÓLOGO (TRADUÇÃO)
SERMÃO 72: SOBRE A PAIXÃO DO SENHOR
Depois que o milagre celeste do nascimento virginal brilhou por todo o mundo, completaram-se as alegres festividades que celebram o nascimento do Senhor; e, tendo também sido celebrada a venerável festa da Epifania, o Senhor anuncia aos seus discípulos a sequência dos acontecimentos que cercariam sua Paixão, quando diz o seguinte:
“Eis que estamos subindo a Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos sumos sacerdotes, e eles o condenarão à morte, e o entregarão aos gentios, e zombarão dele, e cuspirão nele, e ao terceiro dia ele ressuscitará” (Mateus 20:18–19).
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Aquele que podia anunciar o que aconteceria também podia evitá-lo. As adversidades atingem os ignorantes, não os que têm conhecimento. Ele quis sofrer, pois de livre vontade subiu ao lugar onde sofreria. A morte domina os que não querem, mas é serva dos que consentem. Assim, sendo ele voluntário em morrer, não é um infortúnio, mas um ato de poder. “Tenho poder”, diz ele, “para entregar minha vida e para retomá-la; ninguém a tira de mim.” (João 10:18)
Onde há poder para entregar a vida e para retomá-la, morrer, neste caso, não é algo inevitável, mas algo querido. “Ninguém”, ele diz, “a tira de mim.” Se ninguém, então nem mesmo a morte. De fato, a morte não pôde tirar-lhe a vida, nem o inferno pôde retê-la, pois, ao tremer diante de sua ordem, perdeu até as almas que mantinha cativas: “E os túmulos se abriram”, diz a Escritura, “e muitos corpos dos santos ressuscitaram” (Mateus 27:52).
Assim como, quando Cristo nasceu, a concepção não seguiu sua ordem natural, o nascimento não procedeu segundo o costume, e a natureza não observou suas próprias leis, assim também, em sua morte, o Tártaro perdeu os que mantinha sob seu domínio, o inferno renunciou à prerrogativa de seu antigo poder, e a morte cedeu o que lhe fora garantido sob a antiga lei pelo decreto da nova ordem.
Mas voltemos ao que começamos: “Eis que estamos subindo a Jerusalém”, ele diz, “e o Filho do Homem será entregue aos sumos sacerdotes, e eles o condenarão à morte, e o entregarão aos gentios.” Mas Deus, que tudo sabe, sabia, porque previra o que aconteceria, que, diante do escândalo da cruz, da violência da Paixão, da injustiça cometida contra o Criador, a terra tremeria, o céu se abalaria, a luz fugiria, o sol se esconderia, o inferno estremeceria, e toda a criação seria perturbada e lançada em confusão.
Pois o mundo, que não podia suportar a divindade coberta com nosso corpo, previu que seria despojado da carne, coisa que não podia suportar; e, sobretudo, tendo reconhecido a gravidade dos sacrilégios cometidos contra o Homem, supôs que haviam realmente ferido sua divindade. O Senhor advertia seus discípulos dessas coisas repetidas vezes, pondo-as diante de seus olhos e, por assim dizer, preparando a arena para sua Paixão e conduzindo-os a ela. Ele dava a entender que haveria tantos tipos de insultos quantos são os tipos de feras selvagens; que haveria tantos espectadores quanto perseguidores, os quais, não buscando vitória no combate, mas apenas o consentimento na morte do Vencedor, gritariam:
“Crucifica-o, crucifica-o!” (Lucas 23:21)
E iriam tão longe a ponto de erguer seus olhos ferozes e suas vozes mortais ao céu, ou melhor, contra o céu, até que, em sua cruel fúria, ao contenderem com o sangue santo, se manchassem a si mesmos e à sua posteridade e se banhassem naquele sangue, clamando: “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos.” (Mateus 27:25)
“O Filho do Homem”, diz ele, “será entregue aos sumos sacerdotes.” 
 	O Senhor Jesus descrevia como seria sua Paixão ao mencioná-la com frequência, para que seus discípulos esperassem o que era de se esperar e não fossem abatidos pelo peso de um fardo imprevisto, nem surpreendidos por um assalto inesperado. O que é conhecido prepara o espírito; o que é anunciado o fortalece; o que é esperado dá aviso e torna o homem mais forte diante de tudo. Assim como um soldado é posto em risco pela chegada súbita do inimigo, também aquele que conhece antecipadamente o movimento do adversário conquista a vitória. 
Um rei forte, mesmo protegido por uma guarnição poderosa, não consegue se defender do desconhecido; mas até mesmo um guerreiro solitário nada teme de um inimigo cujos movimentos conhece. Assim, o Senhor quis que seus discípulos soubessem de antemão todo o curso tempestuoso de sua Paixão, para que, em meio àquela tempestade, se tornassem corajosos e firmes.
“Eis que estamos subindo a Jerusalém.” Assim como quem, com uma única viga, sustenta uma casa após danos estruturais, Cristo, depois dos pesados e múltiplos fardos de sua Paixão, colocou um único apoio, sua Ressurreição, para sustentar a fé dos apóstolos, que já começava a vacilar, e torná-la firme para sempre.
“Ao terceiro dia ressuscitará.” 
 A partida não é tão triste quando o retorno é tão rápido. Depois de três dias, essa ida e volta são tais que mostram que ele jamais esteve realmente ausente. Quando Deus vai, ele continua aqui; e, estando aqui, jamais se ausenta. Cristo foi, mas nunca deixou os apóstolos; o Senhor foi à morte, mas nunca se apartou da vida; desceu ao inferno, mas não esteve ausente do céu, como ele mesmo afirma: “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu.” (João 3:13) 
Não querer morrer é próprio do medo humano; morrer e ressuscitar pertencem somente a Deus. E “ao terceiro dia”: por que não ao quarto? Por que não ao quinto, mas ao terceiro? Para que, na Paixão do Filho, se mostrasse o assentimento de toda a Trindade. Ele diz “três dias” para simbolizar a Trindade, porque a mesma Trindade, que no princípio criou o ser humano por meio da obra de Cristo, no fim o restaura por meio da Paixão de Cristo.
“Façamos o homem” (Gênesis 1:26), ele diz. “Ide, pois, e batizai todas as nações em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mateus 28:19), para a remissão dos pecados. Se na remissão dos pecados a Trindade está unida em misericórdia, como não estaria unida também em vontade na Paixão do Filho? “Assim como Jonas esteve no ventre do peixe três dias e três noites,” ele diz, “assim também o Filho do Homem estará no coração da terra.” (Mateus 12:40) Ele disse “no coração da terra”, não “no poder da terra”, querendo dizer que a terra sentiria, reconheceria e tremeria diante de seu Criador, mas não o reteria; o receberia para homenageá-lo, não para corrompê-lo; não pensaria que o Corpo do Senhor lhe pertencia, mas o receberia como Aquele que compartilha da majestade celeste.
Mas a mente se perturba ao pensar por que o Pai quis ou permitiu que o Filho sofresse a morte dessa maneira; por que o Senhor quis restaurar a vida dos mortais por meio de uma morte tão ignominiosa; e por que o Espírito Santo consentiu que a divindade descesse a sofrer tais indignidades na carne, de modo que mais se perdessem pelo escândalo do que se salvassem pela fé? O intelecto humano não compreende que Deus nasce e morre.
Ao ouvirmos as muitas amargas indignidades que compuseram a Paixão do Senhor, surgiu em nós o espanto: por que Deus — que, por seu mandamento, criou e, por seu decreto, delimitou tudo o que o céu contém, o que a terra produz, o que o mar encerra e o que o Tártaro outrora evocava, organizando o mundo em tanta beleza —, para absolver a sentença de morte, derramou aquela torrente de sangue sagrado?
Por que o Princípio do universo, o Autor da natureza, quis nascer, senão porque quis morrer? Por que Deus assumiu a carne com todas as suas fraquezas, senão porque escolheu suportar as indignidades ligadas à carne? Por que o Senhor de toda a criação entrou na forma de servo, senão para suportar todas as humilhações da servidão? O Juiz escolhe ser julgado, o Advogado escolhe ser posto em julgamento, quando suporta ser julgado por réprobos. Que necessidade havia de sofrer, se ele tinha tanto o poder quanto a capacidade de salvar? Ou qual a razão, então, de morrer, se possuía tanto a força quanto o poder de dar a vida?
“Eis que estamos subindo a Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos sumos sacerdotes, e eles o condenarão à morte, e o entregarão aos gentios, e zombarão dele e cuspirão nele, e ao terceiro dia ressuscitará” (Mateus 20:18–19).
Estamos subindo a Jerusalém, e no dia da Páscoa, para que toda a cidade judaica se reunisse diante do espetáculo da Paixão, do espetáculo público da morte e do escândalo da cruz. Não bastava uma paixão comum, nem uma morte privada, nem uma morte comum como as demais: a singularidade da Paixão devia corresponder à singularidade daquele que sofria.
Assim foi feito, para que o Criador do mundo morresse tendo o mundo por testemunha; e para que o Senhor do mundo fosse reconhecido pelo mundo por meio de sua dor antes mesmo de sê-lo por sua glória. A Paz do céu é traída pelo beijo da falsidade; aquele que sustenta tudo é preso; o Vínculo de todas as coisas é atado; o que atrai tudo é levado; a Verdade é acusada pela mentira; e aquele a quem todas as coisas servem é posto em julgamento.
Os judeus o entregam aos gentios; os gentios o devolvem aos judeus; Pilatos o envia a Herodes; Herodes o devolve a Pilatos, e a piedade se torna negócio da impiedade, a santidade é levada ao mercado da crueldade. O Perdão é açoitado; a Graça é condenada; a Majestade é ridicularizada; a Virtude é zombada. O Doador da chuva é coberto de cuspe; o que adornou os céus é pregado com cravos de ferro; o que concede o mel é alimentado com fel; o que faz brotar as fontes é feito beber vinagre.
E quando já não restava castigo possível, a morte se esconde, hesita, pois não encontra ali nada que lhe pertença. A novidade é suspeita à antiguidade: era o primeiro, o único homem que via isento de pecado, livre de culpa, sem dívida com as leis de seu domínio. Ela se espanta de ver sobre a terra Aquele que não tem nela traço algum de terrenidade. “O primeiro homem”, diz a Escritura, “é terreno, da terra; o segundo homem vem do céu.” (1 Coríntios 15:47) A fúria judaica avança, e, em seu desespero, agarra e investe contra o Autor da vida, disposta a perecer totalmente, contanto que não perca tão grande prêmio.
. Mas iniciemos agora o que foi prometido: por que Deus Pai enviou seu próprio Filho à morte, e a uma morte desse tipo? Por que permitiu uma Paixão tão vergonhosa? Por que o Espírito Santo consentiu que Cristo, reinando com ele e um em divindade com ele, sofresse tamanha indignidade na carne? Rezai, irmãos, para que, pela graça com que ele sofreu, revele-nos o mistério de sua Paixão e ilumine a todos nós quanto à razão de morte tão sagrada.
Primeiro, devemos considerar: quando um rei é mais glorioso? Quando está adornado de púrpura, coroado de diadema, coberto de ouro, alto em seu trono, apenas quando se prepara para uma procissão solene ou quando está em privado? Ou é mais glorioso quando veste o traje comum de batalha, o último em honras, o primeiro em perigos, carregando a espada, revestido de armas pesadas, e, por seu país, seus cidadãos, seus filhos e a vida de todo o povo, destrói o inimigo, despreza os perigos, faz pouco caso das feridas e se dispõe a suportar sua própria morte pela salvação de seu povo, obtendo, assim, maior vitória e triunfo por desprezar a morte do que por derrotar o inimigo?
E, então, que problema há se Cristo veio à nossa condição de servidão, desde o seio do Pai, desde o oculto da divindade, para nos restaurar à sua liberdade; se suportou nossa morte para que tivéssemos vida pela sua morte; se, ao desprezar a morte, trouxe de volta a nós, mortais, a condição de deuses e elevou os terrenos à dignidade dos celestes? Mas como é que Deus chama Cristo a tamanha ignomínia e, ao mesmo tempo, exalta o ser humano a tão grande glória?
Alguém poderia dizer: “Isso se deve à condição humana; o poder divino nada tem a ver com isso.” Ele diz a verdade, o poder divino nada tem a ver, mas o vínculo divino de parentesco, sim, e o aceita. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos.” (João 15:13) Admirar-te-ás, então, se aquele que fez tão grandes coisas por nós e nos concedeu tantas bênçãos entregou por nós aquilo que de nós recebeu?
Por mais resplandecente que fosse a excelência, o poder e a magnificência do Criador em suas obras, ainda assim o amor de Deus permanecia oculto, a caridade de Deus mantinha-se escondida. Dar bens aos súditos, conceder dons aos servos, isso é próprio de um benfeitor; mas sofrer pelos súditos, morrer pelos servos, isso é sinal de caridade imensa e prova de amor incomparável.
“Deus demonstra seu amor para conosco”, diz a Escritura, “porque, sendo nós ainda pecadores, Cristo morreu por nós.” (Romanos 5:8) E em outro lugar: “Deus amou tanto o mundo que entregou seu Filho unigênito.” (João 3:16) Qualquer um pode conceder favores, qualquer rico pode dar presentes, qualquer benfeitor pode amar os que o reverenciam; mas quem se igualará àquele que tomou sobre si as adversidades de seu povo, que se interpôs diante dos perigos que o ameaçavam, que se entregou ao castigo por eles, que enfrentou a morte para livrá-los da perdição e preservá-los para a vida?
O amor se prova nas adversidades; o peso da afeição se mede pelos perigos suportados; a benevolência se testa pelos castigos; a caridade perfeita se confirma pela morte. Por isso Cristo se expôs à ignomínia da carne, suportou os ultrajes que sofreu, perseverou entre múltiplos tormentos e enfrentou uma morte amarga, porque quis ser condenado, já que amava tanto aquilo que criara. Mas essa vontade de Deus não é nova; já as primeiras palavras da antiga Lei a declaravam: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração.” (Deuteronômio 6:5) É um mandamento que ordena por amor, não por medo; que submete corpos e corações por afeição; que, amando, forma para si servos não forçados, mas voluntários. Eis a primeira razão da Paixão do Senhor: ele quis que se soubesse quanto Deus amou a humanidade, pois quis ser amado, não temido.
A segunda razão é para revogar com ainda mais justiça a sentença de morte que, com justiça, havia imposto. Deus quis cumprir sua própria lei sofrendo, para não executá-la apenas por mandamento, como ele mesmo disse: “Não vim abolir a Lei, mas cumpri-la.” (Mateus 5:17) A promessa de Deus de bens aos justos seria pouco confiável, se o que ele decretou contra os maus se tornasse nula: “Nem uma só letra, nem um só traço da Lei passará, até que tudo se cumpra.” (Mateus 5:18) Quem é sábio entenderá o que aqui se revela; quem percebe, compreenda. Se, por causa de sua própria sentença, ele não poupou nem mesmo seu Filho, a quem poderia perdoar contra sua palavra? Aquele que não pode mentir não pode perdoar injustamente.
Assim, como o primeiro homem, por sua culpa, incorreu em morte segundo a sentença de Deus, e transmitiu a morte à sua descendência, pois quem é mortal gera mortais, culpados, não livres, não absolvidos, mas escravos —, veio do céu o segundo Homem, o único que não conheceu pecado, o único alheio à culpa, o único que nada devia ao pecado e à morte. Veio para tornar-se livre entre os mortos, a fim de que a morte fosse condenada à morte. A morte, que fora ordenada a capturar os culpados, ousou prender o próprio Autor da inocência, para que, assim como a culpa humana trouxe a morte, a inocência divina restituísse a vida ao homem.
Dessa forma, tornando-se transgressora, a morte foi entregue a Cristo, àquela mesma morte à qual Adão fora entregue por causa de sua transgressão. Assim, Cristo se tornaria a nova origem, a origem vivificante, o Pai dos vivos, como disse o Apóstolo: “Assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados.” (1Coríntios 15:22).
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Traduzido de: PETER CHRYSOLOGUS, Saint. St. Peter Chrysologus: Selected Sermons, Volume 3. Translated by William B. Palardy. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 2005.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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