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TEORIA DO COMANDO DIVINO: VALOR E DEVER - ROBERT ADAMS (RESUMO)

 

O que se segue é um resumo da Parte III: The Nature of the Good e IV. The Epistemology of Value do livro Finite and Infinite Goods: a Framework for Ethics. O objetivo é apresentar as teses do texto original de forma compactada, sem constituir uma resenha crítica. Assim, o resumo busca refletir as ideias dos autores originais, sintetizando suas principais teses. A leitura deste resumo não substitui a leitura do livro. Ele está estruturado conforme a organização original, dividindo-se nas seguintes partes:  

(1) Obrigação (Obligation) 

(2) Teoria do Comando Divino (Divine Commands) 

(3) Dilema de Abraão (Abraham’s Dilemma) 

(4) Vocation (Vocação) 

(5) Política e o Bem (Politics and the Good) 

(6) Epistemologia do Valor (Epistemology of Value: Revelation of the Good + Moral Faith) 

 

Referência: ADAMS, Robert Merrihew. Finite and Infinite Goods: A Framework for Ethics. New York: Oxford University Press, 2002.  

 

I. OBRIGAÇÃO 

 

A obrigação, seja ela de caráter pré-moral ou moral, deve ser compreendida a partir de um requerimento social e, no caso da obrigação moral, também em referência ao bem. Assim, o conceito de obrigação pode ser situado em um contexto que envolve tanto dimensões linguísticas e normativas quanto sociais e éticas. É importante, assim, discutir a relação entre sanções e a semântica da obrigação, a fim de compreender o significado dos termos de obrigação, examinando como o uso de expressões normativas se vincula a expectativas sociais e a possíveis consequências decorrentes do seu descumprimento. A análise das sanções, nesse sentido, não é meramente punitiva, mas visa esclarecer o papel que elas desempenham na formação do sentido e da força dos enunciados obrigatórios dentro de uma comunidade. 

Outro ponto central é a reflexão sobre a culpa, que é um elemento essencial na compreensão da obrigação. A culpa pode ser entendida como um correlato afetivo e psicológico do descumprimento de um dever; ela expressa a consciência de não ter correspondido a uma exigência que se reconhece como válida. Dessa forma, a culpa não apenas pressupõe uma obrigação, mas também reforça a sua autoridade interior, evidenciando o vínculo entre obrigação e responsabilidade moral. 

A base para a compreensão da obrigação é o requerimento social. As obrigações, em seu sentido mais fundamental, emergem das expectativas e práticas sociais que estruturam a vida coletiva. Contudo, no âmbito moral, tais requerimentos se elevam a um nível superior ao se vincularem à noção de bem, que confere à obrigação uma dimensão de normatividade intrínseca e não apenas convencional. Assim, a obrigação moral se distingue da mera exigência social por estar orientada a um valor objetivo e universal, o qual fundamenta e legitima as demandas éticas. 

 

II. TEORIA DO COMANDO DIVINO 

 

A Teoria do Comando Divino é uma forma de fornecer uma explicação abrangente da natureza da obrigação moral, entendida como derivada dos comandos de um Deus perfeitamente bom. A proposta parte da ideia de que os requisitos que constituem a obrigação moral são mais bem compreendidos como comandos divinos, sendo essa uma versão idealizada da teoria do requerimento social, na qual a relação com Deus assume um caráter interpessoal e social. 

Em primeiro lugar, essa teoria pode ser situada no contexto mais amplo da filosofia moral, esclarecendo que se trata de uma teoria da obrigação, e não do bem. A Teoria do Comando Divino busca explicar o que torna uma ação certa ou errada, pressupondo uma teoria do bem previamente estabelecida. A validade dos comandos depende, contudo, do caráter divino: eles só podem definir obrigações morais se emanam de um Deus essencialmente bom, amoroso e justo. Assim, a autoridade moral de Deus não é arbitrária, mas fundamentada em Sua perfeição moral. Essa abordagem possui uma tradição histórica significativa, remontando a autores como Locke, Cumberland e Pufendorf, que também vincularam a obrigação aos comandos divinos, embora baseassem o bem em concepções hedonistas. 

A Teoria dos Comandos Divinos preenche melhor o papel conceitual de obrigação moral do que o mero requerimento social humano. Isso se deve ao fato de que a relação entre o ser humano e Deus confere razões mais fortes e profundas para a obediência. Tais razões derivam do vínculo relacional com o Criador, fonte do amor, do ser e de todos os bens. Nesse contexto, a gratidão aparece como uma motivação intrinsecamente valiosa para obedecer aos comandos divinos, pois expressa uma excelência moral independente dos próprios comandos. A força normativa dessa relação é reforçada pela excelência do Comandante, já que Deus é identificado como o Bem em si, dotado de perfeição moral e não moral.  

Além disso, os comandos divinos satisfazem a exigência de objetividade moral, pois sua validade é independente das preferências ou convenções humanas. Ainda assim, é importante ressaltar que as crenças morais preexistentes funcionam como uma restrição racional sobre o que se aceita como comando divino, evitando interpretações moralmente absurdas. A teoria também preserva o vínculo entre obrigação e reconhecimento moral, pois os comandos, enquanto atos comunicativos, tornam inteligível o sentido de “certo” e “errado”. Nessa perspectiva, a culpa moral é compreendida como uma ofensa interpessoal a Deus, o que permite integrá-la à possibilidade de perdão divino. 

É importante, no entanto, manter uma distinção entre vontade divina e comando divino. Nem tudo que Deus deseja que façamos é um comando divino obrigatório. Isso permite manter a noção de supererrogação: ações boas e preferíveis a Deus, mas não moralmente exigidas. Se a vontade divina definisse diretamente a obrigação, tudo o que Deus desejasse seria obrigatório, o que suprimiria essa distinção. Além disso, a noção de comando enfatiza a dimensão comunicativa: para haver obrigação, é necessário que Deus comunique Sua vontade, de modo que o comando é sempre um ato comunicativo entre Deus e os seres humanos. 

Para desempenhar seu papel moral, um comando divino precisa ser adequado no sentido de que ele deve ser objetivo, inteligível e comunicável. Os comandos podem ser revelados por diferentes meios, não se restringindo a textos sagrados: incluem a lei natural, a consciência, as inclinações humanas, os profetas e até os requerimentos sociais. Tais sinais, porém, devem ser avaliados racionalmente, com base em sua compatibilidade com a bondade de Deus. Um Comando Divino autêntico deve envolver três elementos fundamentais: (i) um sinal causado por Deus com intenção comunicativa; (ii) a intenção divina de emitir um comando específico; e (iii) a possibilidade de que o destinatário compreenda esse comando como tal. 

Há, no entanto, uma objeção comum à Teoria do Comando Divino, segundo a qual, ela viola a nossa autonomia. Os objetores argumentam que a Teoria do Comando Divino implicaria heteronomia, sendo, portanto, incompatível com a autonomia moral. Contudo, embora haja de fato uma incompatibilidade entre a Teoria do Comando Divino e a concepção kantiana de autonomia, segundo a qual a razão prática é a única fonte da lei moral, a Teoria do Comando Divino é compatível com uma concepção mais ampla e virtuosa de autonomia, entendida como responsabilidade e competência moral. O crente continua responsável por interpretar e aplicar corretamente os comandos de Deus, exercendo discernimento crítico.  

Além disso, a lealdade a Deus requer uma postura crítica em relação às próprias crenças sobre o que se entende como vontade divina, reconhecendo a transcendência de Deus sobre qualquer formulação humana. Nesse sentido, é possível reformular a relação entre autonomia e obediência sob o conceito de deo-nomia: a verdadeira lei interior do homem é aquela que, enraizada em Deus, harmoniza o amor a Ele com o amor por outros bens, como a verdade, a justiça e o bem do próximo. 

 

III. O DILEMA DE ABRAÃO 

 

Um dos desafios mais profundos à Teoria do Comando Divino (TCD), segundo a qual a obrigação moral, isto é, o que é certo ou errado, é constituída pelo fato de uma ação ser comandada ou proibida por Deus. É o dilema de Abraão, que surge da possibilidade de que Deus possa ordenar algo intrinsecamente mau ou cruel, o que colocaria em questão a coerência moral da teoria. O dilema é ilustrado pelo célebre episódio bíblico do sacrifício de Isaque (Gênesis 22), em que Abraão é ordenado a sacrificar seu filho. Kierkegaard, em Temor e Tremor, explorou de modo paradigmático a tensão entre obediência religiosa e moralidade humana, mostrando o conflito ético interno que a fé pode provocar.  

No plano filosófico, o dilema coloca a TCD diante de uma dificuldade central: se a teoria é verdadeira, e Deus comanda um ato moralmente repugnante, como o sacrifício humano, então esse ato se tornaria moralmente obrigatório. Contudo, isso parece inaceitável, pois a crueldade seria errada em si mesma, independentemente de qualquer comando. O dilema, portanto, sugere que a obrigação moral seria anterior e independente da vontade divina, desafiando a própria base da teoria. 

A resposta a esse dilema consiste em restringir o escopo da TCD. A teoria da obrigação divina só é válida se o ser que comanda é o supremo Bem. A autoridade moral dos comandos depende, portanto, da bondade essencial de Deus. Um comando oriundo de um ser cruel ou imperfeito não poderia constituir obrigação moral, pois a teoria está condicionada a uma teologia da perfeição moral divina. Essa limitação torna a TCD uma teoria condicionalmente dependente da bondade divina, afastando o risco de justificar ações más em nome da obediência religiosa. 

Essa formulação da TCD também reconhece a possibilidade lógica de que um ser divino aparente possa ordenar algo mau, mas isso não teria validade moral. Nesse caso hipotético, seria errado obedecer a esse ser, pois a obrigação de evitar a crueldade prevaleceria sobre qualquer comando de uma fonte não perfeitamente boa. No entanto, para o teísta que crê no Deus judaico-cristão, essa possibilidade é teologicamente improvável. Um Deus verdadeiramente bom não ordenaria algo abominável. Além disso, é um erro espiritual e uma perda de energia moral ponderar seriamente tal hipótese. Assim como seria irracional considerar obedecer a um pedido criminoso de um cônjuge amado, é um ato de confiança religiosa e sabedoria moral descartar a ideia de que o Deus do amor possa ordenar o mal. Por isso, essa questão deve ser mantida fora da agenda epistemológica, em outras palavras, não deve sequer ser considerada como uma possibilidade real para o crente. 

Uma boa formulação da TCD não se contenta com a mera confiança cega. Ele sustenta que o teísmo deve ser moralmente responsável, e que a fé racional exige a crença de que os comandos divinos procedem de um propósito bom e justo. A convicção de que Deus é o Bem em si deve preceder a aceitação de qualquer comando como moralmente vinculante. Dessa forma, nossas crenças éticas mais fundamentais, como a rejeição da crueldade ou da injustiça, servem como critérios de discernimento. Se um suposto comando divino contradiz fortemente essas convicções, o crente deve questionar a autenticidade da fonte (por exemplo, uma má interpretação de uma escritura ou profeta) ou reconsiderar suas próprias crenças morais, mas nunca admitir a possibilidade de que o próprio Deus seja mau. 

O papel da justiça e do amor divinos são garantias da confiabilidade moral dos comandos. A justiça de Deus assegura que Suas ordens sejam sensíveis às necessidades e à dignidade dos seres humanos, enquanto o amor divino fundamenta o valor e o sentido da obediência moral. Obedecer a Deus, portanto, não é uma submissão cega, mas uma resposta confiante à excelência moral absoluta. O verdadeiro crente, longe de temer um comando cruel, encontra na confiança no caráter justo e amoroso de Deus a base última da moralidade. 

 

IV. VOCAÇÃO 

 

O conceito de vocação desempenha um papel central para uma melhor articulação da relação entre o Valor (bem), compreendido como a estrutura da excelência e do amor a Deus, e o Dever (certo), entendido como a estrutura da obrigação e dos comandos divinos. A vocação atua como um elo entre essas duas dimensões da moralidade, permitindo que a ética adquira um caráter mais individualizado e compatível com a finitude humana, superando assim a fragmentação do valor e a indeterminação prática dos deveres morais gerais. 

Um dos primeiros pontos para tal articulação está na necessidade de reconhecer o lugar dos juízos singulares na ética. A reflexão moral não pode limitar-se à aplicação de princípios gerais, como “ajudar os necessitados”, a fatos empíricos ou circunstâncias concretas. Tais princípios são insuficientes para determinar o que eu, um agente particular, devo fazer agora, numa situação específica. Sem um critério que particularize as obrigações, o agente moral corre o risco de se ver dividido entre múltiplas demandas, esmagado por obrigações ilimitadas ou paralisado por reivindicações concorrentes. Nesse contexto, o conceito de vocação surge como a instância que confere um caráter pessoal e situado à moralidade, designando a tarefa que se torna verdadeiramente “minha”. 

De acordo com uma concepção teísta de vocação, segundo a qual ela é uma atribuição individual no amor de Deus, cada pessoa recebe um chamado divino que lhe confia uma porção limitada de bens e responsabilidades. Essa concepção reconhece que, devido à finitude humana, não é possível promover todos os bens existentes. A vocação, portanto, funciona como um princípio de distribuição do amor divino, direcionando cada indivíduo para as tarefas que lhe competem. Ao mesmo tempo, ela impulsiona a ação, dando-lhe sentido e energia, e liberta o agente da pretensão impossível de atender a todas as exigências morais do universo. 

A vocação está também ligada à realização de possibilidades boas. Deus se agrada quando Suas criaturas realizam o potencial de bondade que lhes foi concedido. Diferentemente da obrigação, que frequentemente se orienta pela prevenção do mal (não matar, não roubar, não mentir), a vocação tem como foco a criação e promoção de bens positivos, como uma obra de arte, uma comunidade ou uma família. Nesse sentido, a vocação amplia a atualidade do bem, tornando o mundo mais rico em excelência e valor. 

Além de seu papel prático, a vocação é um elemento constitutivo da identidade pessoal. Ela não se apresenta como um dever frio, mas como uma expressão viva da totalidade do “eu”. Cumprir a própria vocação é, portanto, uma forma de integrar a vida pessoal ao amor ao Bem, tornando a existência um testemunho da bondade divina. Desse modo, a vocação confere sentido e propósito à vida, unificando os diversos aspectos da motivação humana sob o eixo do amor e da devoção. 

Por fim, a vocação é essencial para lidar com conflitos de valores. Quando deveres prima facie entram em colisão, a vocação oferece um princípio de orientação, ajudando o indivíduo a discernir quais são as suas obrigações prioritárias. Assim, embora os comandos divinos estabeleçam a estrutura da obrigação, é a vocação que contextualiza essa obrigação para cada pessoa concreta. A obrigação geral de ajudar o próximo, por exemplo, se concretiza de maneira distinta na vida de um médico e na de um professor, pois cada um possui uma forma particular de servir ao bem comum. 

 

V. POLÍTICA E O BEM 

 

O conceito de Bem, entendido como a excelência e a estrutura do amor a Deus, desempenha um papel importante na filosofia política, analisando como ele se relaciona com os ideais liberais de neutralidade, justiça e liberdade. À primeira vista, pode parecer haver uma tensão entre perfeccionismo (centralidade do Bem) e igualdade. No entanto, a centralidade do Bem pode ser conciliada com a necessidade de respeitar liberdades civis e diversidade cultural em sociedades pluralistas.  

Uma ética centrada no Bem pode gerar suspeitas de que o Estado imporia visões particulares de excelência ou virtude aos cidadãos. Para evitar esse risco, a intervenção estatal deve se restringir à distribuição justa de recursos econômicos, sem avaliar a excelência comparativa das atividades individuais, exceto quando tais atividades violam os direitos de terceiros. Nessa perspectiva, é importante distinguir justiça e equidade do bem-estar, enfatizando que a justiça distributiva deve respeitar os interesses e escolhas das pessoas, enquanto a promoção do bem-estar envolve preocupações de humanidade e solidariedade, guiadas pelo reconhecimento do que é bom para as pessoas, independentemente de suas preferências. 

Deve-se atribuir especial importância às liberdades civis, com destaque para a liberdade de consciência, que recebe prioridade sobre outras liberdades, inclusive econômicas. Essa prioridade da liberdade de consciência se fundamenta na moralidade do Bem: restringir a liberdade de consciência compromete o pleno exercício da personalidade moral, incluindo a capacidade de desenvolver um senso de justiça e uma concepção do bem. A defesa das liberdades civis se apoia na maldade de coagir a consciência de alguém, um fundamento intuitivo mais sólido do que argumentos baseados unicamente em vantagens sociais objetivas. 

No que diz respeito à relação entre Igreja, Estado e cultura, é importante reconhecer o valor de uma sociedade moral e religiosamente homogênea, no entanto, é importante também privilegiar a pluralidade cultural, que permite a realização das potencialidades humanas e o desenvolvimento da autonomia pessoal. Embora haja perda de certos valores ao optar pelo pluralismo, o argumento para a proteção das liberdades civis deve se apoiar na proibição da coerção da consciência, e não em hierarquias objetivas de valor que poderiam justificar decisões constitucionais. 

Contudo, certas ações estatais para proteger e promover o Bem são legítimas, desde que não violem direitos fundamentais. O Estado deve assegurar oportunidades justas para que os cidadãos obtenham os meios necessários para perseguir seus fins legítimos. Além disso, o Estado tem legitimidade para atuar na preservação de bens não-econômicos, como o meio ambiente, distribuindo de forma justa os custos econômicos dessa proteção. A promoção do bem-estar e de valores essenciais, deve ser orientada pela humanidade e solidariedade, demonstrando que o Bem tem peso suficiente para justificar medidas políticas que assegurem a qualidade de vida e a integridade dos bens sociais e ambientais. 

 

VI. EPISTEMOLOGIA DO VALOR 

 

A reflexão sobre o valor exige uma distinção clara entre Metafísica e Epistemologia do valor. A Metafísica trata da natureza do valor e do que realmente corresponde às nossas asserções valorativas caso estas sejam verdadeiras, enquanto a Epistemologia lida com a natureza e os fundamentos das crenças valorativas. Em sua concepção, a Metafísica deve ser desenvolvida primeiro, uma vez que sua teoria do valor transcendente, baseada em Deus, implica que a estrutura da realidade não está vinculada de maneira demasiadamente estreita aos mecanismos pelos quais formamos nossas crenças.  

Assim, na ordem do ser, a natureza divina e os comandos de Deus possuem prioridade em relação à bondade e ao erro mundano. Entretanto, na ordem do conhecer, a Epistemologia requer que se possua uma gama considerável de crenças sobre o bem e o mal no mundo para que seja possível fundamentar teorias sobre o Bem e o Errado. A Teoria do Comando Divino não exige, contudo, conhecimento específico sobre Deus ou sobre os Seus comandos para que seja possível possuir conhecimento ético, de modo análogo à possibilidade de compreender as propriedades da água sem conhecer sua composição química. 

O desenvolvimento das crenças valorativas ocorre por meio de práticas doxásticas, entendidas como conjuntos integrados de hábitos de formação de crenças que geram crenças a partir de determinados inputs. Essas práticas, especialmente no domínio ético, envolvem tanto processos inferenciais, nos quais crenças são usadas como inputs, quanto processos não-inferenciais, que incluem emoções, sentimentos, inclinações e desejos. Nessa perspectiva, a emoção em si funciona como input, o que explica o papel adequado do sentido moral e da intuição no processo ético.  

As práticas doxásticas são essencialmente sociais, sendo transmitidas e ensinadas desde a infância, sobretudo pelos pais, e envolvem a aquisição de estoques de crenças valorativas que servem como base para novas inferências e decisões. Apesar de serem socialmente adquiridas, tais práticas não implicam conformidade cega, pois a ética exige que o indivíduo desenvolva autonomia, formando suas próprias crenças e criticando as opiniões recebidas, expressando assim uma postura crítica essencial à vida moral. A justificação para confiar nas práticas doxásticas valorativas reside no fato de que elas fazem parte de um sistema abrangente de formação de crenças que demonstra funcionar de modo confiável no mundo. 

A conexão entre a Metafísica teísta do valor e a Epistemologia do valor é explicada por meio da Revelação Geral. Esta oferece uma conexão causal e explicativa entre os fatos metafísicos sobre Deus e a fiabilidade das práticas doxásticas humanas. O conhecimento ético é considerado revelado porque os objetos desse conhecimento, como a bondade e o erro, são constituídos em última instância por fatos sobre Deus, e a ação de Deus garante que nossas práticas de formação de crenças nos conduzam às verdades relevantes.  

A Revelação Geral é chamada assim por se aplicar às práticas valorativas ordinárias de uma ampla variedade de culturas, sendo inclusiva e não exclusivista. Dessa forma, Deus se revela através da cultura, da convenção e da natureza humana, moldando a consciência ética sem depender de uma tradição particular. Em uma leitura eticamente defensável, a ética teológica deve raciocinar primariamente de ‘deve’ para ‘é’, ou seja, nossas convicções morais e visão do Bem devem guiar a compreensão sobre os propósitos divinos. 

Complementando a Revelação Geral, a Revelação Especial explica o desenvolvimento histórico e cultural da ética, reconhecendo que a formação ética é em grande medida empírica. O conhecimento de valor não é totalmente a priori, exigindo experiência direta e coletiva das formas de vida social para compreender o que é bom. O Bem em si pode se revelar especialmente em eventos históricos ou na vida de figuras exemplares que manifestam possibilidades de bondade que, de outro modo, não poderiam ser conhecidas, como é o caso de Jesus ou Gandhi.  

A diversidade de revelações não implica contradição direta, pois diferentes tradições podem revelar bens distintos, mas todos genuinamente bons à sua maneira, refletindo aspectos do Bem transcendente. A Teoria do Comando Divino, nesse contexto, permite certa relativização no domínio da obrigação, mas mantém invariável o domínio da excelência e do bom. Por exemplo, embora a escravidão seja sempre má, a obrigação de não praticá-la pode não ter sido comunicada universalmente em todas as épocas. Ademais, a ideia de revelação progressiva, segundo a qual o desenvolvimento cultural e histórico da humanidade serve como veículo de revelação ou orientação divina, permite integrar a construção humana e direção transcendente no progresso ético. 

Nesse contexto, a fé moral é necessária para a moralidade, independentemente de uma visão teísta, sendo uma postura que envolve acreditar em algo que uma pessoa racional poderia seriamente duvidar ou recusar a acreditar. A virtude da fé reside em manter-se no meio-termo entre os vícios da credulidade e da incredulidade. A fé moral se manifesta, em primeiro lugar, na relação com a própria moralidade à qual o agente adere.  

A validade da moralidade é, nesse caso, um tema filosófico persistente e desafiador, cuja reflexão frequentemente envolve circularidade, pois a justificação depende das próprias práticas éticas. Em culturas pluralistas, os agentes percebem que há pessoas inteligentes e razoáveis que discordam de suas convicções, reconhecendo que suas crenças podem estar erradas em algum sentido. Apesar dessa exposição à dúvida racional, é essencial manter fortes convicções sobre o bem e o mal, e é justamente nesse ponto que surge a necessidade da fé moral. Trata-se de uma postura volitiva: o agente compromete-se com a visão ética que adota, mantendo um grau de compromisso com crenças centrais que vai além da força da evidência ou dos argumentos que as sustentam. Considerar a moralidade apenas como uma possibilidade incerta ou “jogar seguro”, por exemplo atribuindo uma chance de que a moralidade seja uma ilusão, equivale a abandonar a vida moral, pois a ética exige uma fé que ultrapassa o que pode ser estabelecido pela razão. 

A fé moral também se manifesta nos fins morais, ligados aos objetivos que a moralidade propõe, muitas vezes mais concretos e pessoalmente desafiadores. É moralmente relevante acreditar que a vida de outras pessoas vale a pena ser vivida, demonstrando essa fé ao persistir teimosamente na esperança e nos projetos de vida alheios. Julgamentos de que a vida de alguém “não vale mais a pena” são, portanto, moralmente perigosos. Do mesmo modo, é necessário acreditar que viver moralmente é bom ou, ao menos, propenso a ser bom para os outros; caso contrário, surge um conflito que ameaça a própria estrutura da moralidade, que depende do incentivo mútuo à vida ética.  

A fé moral também exige acreditar que a vida moral é possível, pois não se pode buscar um fim que se acredita totalmente inatingível. Dessa forma, o esforço moral depende da confiança de que a ação ética pode realmente produzir efeitos bons e significativos. Além disso, é necessário ter fé na possibilidade de um bem comum, ou seja, acreditar que os bens das diferentes pessoas não são tão irreconciliáveis que torne incoerente buscar o bem de todos simultaneamente. Resistir à tentação de enxergar a busca do bem como um “jogo de soma zero” é, portanto, parte essencial da fé moral.  

Finalmente, a fé moral deve resistir ao confronto com o mal, isto é, com o sofrimento, a ignorância e a culpa, que desafiam a crença na possibilidade de fins morais, de modo semelhante ao desafio que o problema do mal representa para a fé em Deus. Nesse contexto, a fé moral se configura como uma postura de perseverança ética, permitindo que a moralidade seja vivida e praticada mesmo diante da dúvida, da adversidade e da imperfeição humana. 


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Bruno dos Santos Queiroz

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