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TEORIAS AUTODESTRUTIVAS - DEREK PARFIT (RESUMO)


 

O que se segue é um resumo da primeira parte do livro Reasons and Persons de Derek Parfit intitulada Self-defeating Theories . O objetivo é apresentar as teses do texto original de forma compactada, sem constituir uma resenha crítica. Assim, o resumo busca refletir as ideias dos autores originais, sintetizando suas principais teses. A leitura deste resumo não substitui a leitura do livro. Ele está estruturado nas seguintes partes:  

(1) Egoísmo Racional  

(2) Consequencialismo  

(3) Moralidade do Senso Comum  

Referência: PARFIT, D. Reasons and persons. Oxford: Clarendon Press, 1984.  

  

I. EGOÍSMO RACIONAL  

  

O Egoísmo Racional (ou Teoria do Autointeresse) é uma teoria sobre a racionalidade prática. Ela atribui a cada pessoa um único objetivo racional fundamental: alcançar os resultados que sejam melhores para si mesma, fazendo com que sua vida corra, para ela, da melhor maneira possível. Há três versões principais do Egoísmo Racional: (i) versão hedonista: segundo a qual o melhor para alguém é aquilo que lhe proporciona a maior felicidade; (ii) versão preferencialista: identifica o bem individual com a máxima realização dos desejos de uma pessoa ao longo da vida; (iii) teoria da lista objetiva: sustenta que certos bens e males são objetivamente bons ou ruins para nós, mesmo que não os desejemos ou não tentemos evitá-los.  

É útil, aqui, também distinguir entre fins últimos e fins instrumentais: alguns objetivos têm valor apenas como meios para outros, enquanto o fim último é aquele que possui valor em si mesmo. A tese central do Egoísmo Racional é que, para cada pessoa, existe um único fim último supremamente racional, que sua vida seja, para ela, a melhor possível.  

Suponha, contudo, que eu saiba que, se ajudar alguém, isso acabará sendo o melhor para mim. Posso, ainda assim, ajudar essa pessoa por amor, e não por autopreservação consciente. Descrever o que é agir de modo racionalmente egoísta não exige supor que o agente aja sempre com motivação autocentrada, mas apenas que nunca aja acreditando estar escolhendo o que é pior para si. Se isso é verdadeiro, é mais preciso chamá-lo não de “egoísta”, mas de nunca autonegador, isto é, alguém que jamais se priva voluntariamente de um benefício próprio. 

O Egoísmo Racional, contudo, pode ser indiretamente autodestrutivo. Isso ocorre quando, se uma pessoa nunca se autonega, essa disposição acaba sendo pior para ela do que seria possuir outra disposição psicológica. Mesmo que alguém consiga nunca agir contra o próprio interesse, o simples fato de possuir essa disposição pode, paradoxalmente, reduzir o bem que alcança. Em certos casos, seria melhor para o indivíduo ter uma disposição diferente, uma que, ocasionalmente, o levasse a agir contra o próprio interesse, mas cujos benefícios psicológicos, sociais e relacionais superassem os custos dessas ações pontualmente desvantajosas. 

Esse paradoxo se manifesta em todas as versões do Egoísmo Racional. Por exemplo, os hedonistas reconhecem há muito tempo que a busca direta pela felicidade tende a torná-la mais difícil de alcançar. Se o meu desejo mais forte é “ser feliz”, posso acabar menos feliz do que se tivesse outros desejos prioritários, como, por exemplo, desejar que outra pessoa seja feliz. Assim, posso alcançar mais felicidade quando não a busco diretamente. 

Parece óbvio que o Egoísmo Racional prescreve que devamos jamais nos autonegar. No entanto, o que ele realmente afirma é apenas que, para cada indivíduo, há um fim último racional: que sua vida vá, para ele, o melhor possível. Aplicado às ações, isso implica duas teses: (i) Cada pessoa tem mais razão para fazer aquilo que for melhor para si mesma; (ii) É irracional agir de modo que se acredite ser pior para si. 

O Egoísmo Racional também precisa lidar com situações de incerteza, nas quais não podemos prever com segurança as consequências de nossas ações. Em contextos de risco, quando conhecemos as probabilidades de diferentes resultados, a teoria afirma que é racional agir de modo a maximizar o benefício esperado para si. O benefício esperado de uma ação é calculado somando-se os possíveis ganhos e subtraindo-se os possíveis custos, ponderando cada um pela probabilidade de sua ocorrência. 

Há, portanto, uma tensão no Egoísmo Racional. Como ele sustenta que cada pessoa possui um único fim último racional, segue-se que o desejo supremamente racional é o desejo de que esse fim se realize: isto é, que a própria vida corra o melhor possível para si mesma. De modo análogo, a disposição supremamente racional é a de alguém que nunca se autonega. Assim, mesmo que um agente aja movido por outros desejos, ele nunca agirá contra o desejo supremamente racional. 

Todavia, ao longo da vida, podemos modificar nossos motivos e desenvolver novos hábitos. Segundo o Egoísmo Racional, cada pessoa tem mais razão para causar em si mesma, ou preservar, o melhor conjunto possível de motivações, em termos de autointeresse. Muitas vezes, as pessoas sabem que seria melhor para elas mudar suas disposições, e é irracional não promover tal mudança quando reconhecem isso. 

Ao afirmar que uma disposição é supremamente racional, o Egoísmo Racional não está dizendo que devamos possui-la. Como todas as teorias sobre racionalidade, ele propõe um fim formal, ser racional e agir racionalmente, mas o distingue de seu fim substantivo, que é viver da melhor forma possível para si mesmo. Ser racional, portanto, não é um fim em si, mas um meio para esse fim. Para algumas pessoas, ser racional pode contribuir para que suas vidas sejam melhores; para outras, não. Para estas últimas, nunca se autonegar pode, paradoxalmente, tornar suas vidas piores. Assim, o Egoísmo Racional não as orienta a adotar essa disposição; ao contrário, se puderem, devem modificar suas motivações para permitirem algum grau de autonegação. 

Desse modo, o Egoísmo Racional pode ser indiretamente autodestrutivo: para certas pessoas, seguir rigorosamente a regra de jamais agir contra o próprio interesse acaba sendo contraproducente, pior para elas mesmas. Essa autodestrutividade, porém, é indireta, pois a teoria não falha em seus próprios termos: ela não ordena que adotemos disposições que nos prejudiquem. Pelo contrário, ela prescreve que mudemos tais disposições quando reconhecemos que elas nos tornam piores. No entanto, ainda que o Egoísmo Racional não seja logicamente contraditório, ele revela um paradoxo prático: agir sempre em busca do próprio bem pode resultar em menos bem para si mesmo. Em certos casos, pode ser racional agir de modo “irracional”, ou agir de maneira racionalmente irracional. 

Além de ser individualmente indiretamente autodestrutivo, o Egoísmo racional também pode ser coletivamente diretamente autodestrutivo. Uma teoria é diretamente coletivamente autodestrutiva quando é certo que, se todos nós a seguirmos com sucesso, causaremos com isso que nossos próprios objetivos definidos por essa teoria sejam pior alcançados do que se nenhum de nós a tivesse seguido. No caso do Egoísmo Racional isso pode ser ilustrado pelo chamado Dilema do Prisioneiro.  

O Dilema do Prisioneiro envolve dois agentes que foram presos e interrogados separadamente. Cada um tem duas opções: confessar (trair o outro) ou permanecer em silêncio (cooperar). Se ambos ficarem em silêncio, recebem uma pena leve. Se um confessa e o outro fica em silêncio, o que confessa é libertado e o outro recebe a pena máxima. Se ambos confessam, ambos recebem uma pena moderada. Nesse caso, cada agente raciocina que, independentemente do que o outro faça, será melhor para si mesmo escolher a ação autointeressada (por exemplo, confessar). Assim, o Egoísmo racional orienta cada um a fazer essa escolha. Contudo, se ambos agirem dessa forma, isto é, se ambos seguirem o Egoísmo racional com sucesso, o resultado final será pior para cada um do que se ambos tivessem agido de modo altruísta (mantendo o silêncio). 

 

 

II. CONSEQUENCIALISMO 

 

O Consequencialismo é um grupo de teorias que defende que os resultados do mundo sejam os melhores possíveis. Aplicada às ações, essa doutrina sustenta que cada agente deve fazer aquilo que levará ao melhor resultado e que agir acreditando que o resultado será pior é moralmente errado. Essa distinção permite diferenciar entre dois aspectos: (i) o que é objetivamente correto: o que de fato produziria o melhor resultado e; (ii) o que é subjetivamente correto: aquilo que o agente faz de acordo com suas crenças ou com o que ele deveria acreditar sobre as consequências de seus atos. 

Para lidar com situações de risco e incerteza, o Consequencialismo introduz a noção de benefício esperado a ação correta é aquela cujo resultado possui a maior expectativa de benefício, calculada pela soma dos possíveis benefícios ponderados por suas probabilidades, subtraídos dos possíveis males. A teoria, portanto, é abrangente: aplica-se não apenas a atos e resultados, mas também a desejos, crenças, disposições, emoções e qualquer outro elemento que possa afetar a qualidade dos resultados. Assim, os melhores motivos são aqueles que, se fossem universalmente possuídos, tornariam os resultados globais os melhores possíveis  

O Consequencialismo pode assumir diversas formas (utilitarista, igualitarista, pluralista etc.) mas todas compartilham a estrutura de orientar a moralidade a partir da maximização de estados de coisas bons, de modo neutro em relação ao agente. Assim, a posição do agente neutro adotada pelo Consequencialismo significa que todos os agentes têm o mesmo fim moral: promover o melhor resultado possível, independentemente de suas posições ou interesses pessoais. 

Contudo, o Consequencialismo pode ser indiretamente autodestrutivo. Trata-se de uma teoria “indiretamente coletivamente autodestrutiva” pois, se várias pessoas tentarem alcançar os fins prescritos por ela, esses próprios fins serão menos realizados. No caso do Consequencialismo, se todos os indivíduos fossem “pessoas puramente boas”, isto é, pessoas constantemente dispostas a agir apenas conforme o que produzisse o melhor resultado possível, o mundo poderia paradoxalmente se tornar pior. Isso ocorre porque muitos dos desejos e disposições que tornam a vida humana boa, como o amor, o apego, o prazer no trabalho ou os laços pessoais, tenderiam a ser suprimidos em nome da maximização imparcial do bem.  

A eliminação desses desejos reduziria enormemente a soma da felicidade, o que, ironicamente, tornaria os resultados piores. Assim, mesmo que cada ato isolado fosse objetivamente correto, o conjunto das disposições consequencialistas puras seria globalmente prejudicial. O defeito, portanto, não estaria nos atos, mas no tipo de caráter e motivação que o Consequencialismo exigiria. 

No entanto, embora o Consequencialismo seja indiretamente autodestrutivo, ele não é autocontraditório. A teoria continua coerente “em seus próprios termos”, pois, ao reconhecer que o mundo seria pior se todos fossem pessoas boas puras, ela mesma prescreve que não devemos tentar nos tornar tais agentes. O Consequencialismo, assim, pode ordenar que adotemos outros conjuntos de motivos, menos exigentes, mais humanos, caso isso produza melhores resultados. 

Contudo, mesmo com essa correção, o Consequencialismo permanece irrealisticamente exigente: é improvável, ou até causalmente impossível, que todos se tornem agentes perfeitamente voltados à maximização do bem. Mas isso não invalida a teoria; no máximo, mostra que a sua aplicação prática deve ser mediada por considerações sobre a psicologia humana e sobre o tipo de sociedade que promoveria os melhores efeitos possíveis. 

Surge então uma distinção entre duas versões da teoria: (i) Consequencialismo individual: afirma que cada pessoa deve agir de modo a tornar o resultado o melhor possível dado o comportamento real dos outros; (ii) o Consequencialismo coletivo: afirma que devemos agir de acordo com aquelas regras e disposições que, se todos as seguissem, tornariam o resultado melhor. Esta segunda versão é menos exigente, pois ajusta as obrigações morais ao cenário em que todos cooperam de forma coordenada, por exemplo, no caso da redistribuição de renda, não seria racional exigir que cada pessoa isoladamente doa quase toda a sua riqueza, mas sim fizesse apenas “sua parte” (doar o que cada um deveria doar se todos doassem), mesmo se os demais não o fizerem.  

Contudo, como considerado, mesmo sendo indiretamente autodestrutivo, o Consequencialismo não se destrói em seus próprios termos. Ele admite que certos comportamentos moralmente “errados” em sentido estrito podem ser, paradoxalmente, justificados quando resultam de conjuntos de motivos que, no todo, produzem os melhores resultados possíveis. Nesses casos, pode-se falar de “culpabilidade sem culpa”: o agente pode agir de modo que acredita ser errado, mas, dado o contexto das melhores disposições possíveis, não pode ser moralmente censurado. 

Há, ainda, algumas objeções clássicas à teoria consequencialista, como a de que ela violaria o princípio de que “dever implica poder”, ou de que uma moralidade aceitável não pode ordenar que façamos o que ela própria considera errado. No entanto, o Consequencialismo, ao incluir também os efeitos da culpa, da censura e das crenças morais em seus cálculos, pode até recomendar que alguns acreditem em teorias alternativas se isso produzir melhores resultados gerais. Nesse sentido, ele pode sim exigir que não acreditemos literalmente nele, sem, contudo, deixar de ser verdadeiro em seu próprio sistema. Chamamos posições assim de teorias autorretraidoras, teorias que se forem verdadeiras podem exigir que não acreditemos nela 

Embora possa ser indiretamente autodestrutivo, o Consequencialismo não pode ser diretamente autodestrutivo.  Diz-se que uma teoria é diretamente autodestrutiva quando, se todos a seguissem com sucesso, os próprios fins prescritos por ela seriam pior alcançados do que se ninguém a seguisse. Em outras palavras, ela se voltaria contra seus próprios objetivos quando posta em prática coletivamente. No entanto, isso não ocorre com o Consequencialismo. Seguir com sucesso a teoria Consequencialista significa realizar, dentre as ações possíveis, aquela que melhor promove os fins definidos pelo Consequencialismo, ou seja, as consequências mais valiosas segundo seus próprios critérios. Assim, se todos nós seguíssemos Consequencialismo com sucesso, o resultado seria, por definição, o melhor possível de acordo com os fins de Consequencialismo.  

Desse modo, não pode ser verdade que alcançar os melhores resultados exigiria não seguir o Consequencialismo, pois isso seria contraditório: se os melhores resultados são precisamente aqueles definidos pelo Consequencialismo, alcançá-los só pode significar que o Consequencialismo foi corretamente seguido. Portanto, o Consequencialismo não pode ser diretamente autodestrutivo, visto que o problema está apenas em que tentar segui-lo sem sucesso traz resultados piores. Além disso, o Consequencialismo não pode cair em problemas como o Dilema do Prisioneiro porque ele é neutro em relação aos agentes, dando a todos os agentes objetivos comuns. 

 

III. MORALIDADE DO SENSO COMUM  

 

A Moralidade do Senso Comum por ser frequentemente diretamente coletivamente autodestrutiva. No entanto, é possível identificar e corrigir falhas estruturais nas teorias morais tradicionais, propondo uma “moralidade do senso comum revisada” quando os princípios aceitos se mostram incoerentes ou contraproducentes. 

A Moralidade do Senso Comum é uma teoria relativa ao agente, isto é, atribui obrigações diferentes a diferentes pessoas conforme suas relações e papéis. Cada indivíduo tem obrigações especiais para com aqueles com quem possui vínculos particulares, como filhos, pais, pacientes ou alunos, e tais obrigações tendem a ter prioridade sobre deveres gerais em relação a estranhos. Contudo, a Moralidade do Senso Comum se torna diretamente coletivamente autodestrutiva em certos contextos que pode ser denominado de Dilemas de ação-coletiva, casos em que o resultado moralmente melhor depende de que todos ajam cooperativamente, e não apenas de que cada agente aja isoladamente de acordo com seus próprios deveres. 

A Moralidade do Senso Comum é autodestrutiva porque se cada agente a segue com sucesso quando realiza a ação que, dentre as possíveis, melhor alcança seus fins morais dados por ela isso levaria a um fracasso coletivo.  Em certos dilemas, é certo que, se todos seguirem a moralidade do senso comum com sucesso, os fins morais dados por ela de cada um serão pior alcançados do que se ninguém o tivesse seguido.  

Isso é ilustrado pelo Experimento Mental dos Pescadores. Nele cada pai pode raciocinar que aumentar ligeiramente sua própria pesca será melhor para seus filhos, sem causar dano perceptível. Contudo, se todos fizerem o mesmo, o estoque de peixes colapsa, e todas as crianças acabam em pior situação. Assim, ao cumprir seu dever individual segundo a moralidade do senso comum (priorizar o bem dos próprios filhos), o resultado coletivo é a frustração desse mesmo objetivo. Esse tipo de falha não é meramente formal (não é o caso de a teoria nos mandar fazer o que sabemos ser errado), mas substantiva: a teoria leva, quando bem seguida, à frustração de seus próprios objetivos morais. A moralidade do senso comum, portanto, é estruturalmente defeituosa, pois, uma boa teoria moral, por definição, deve funcionar no nível coletivo. 

Além disso, a Teoria da Moralidade do Senso Comum incorre no erro de ignorar o efeito agregado de múltiplas ações pequenas que, em conjunto, produzem resultados desastrosos. Isso pode ser ilustrado pelo Experimento Imaginário dos Torturadores Inofensivos. Imagine mil torturadores.  Cada um deles controla uma máquina conectada a uma pessoa. Cada máquina tem 1.000 botões, um para cada torturador. Quando um torturador aperta o botão, aumenta muito ligeiramente a dor sentida por todas as vítimas, uma diferença tão pequena que ninguém percebe. Mas se todos os mil apertam seus botões, a dor total aumenta tanto que as vítimas são horrivelmente torturadas. O caso expõe uma falha estrutural da moralidade do senso comum e das teorias morais estritamente individualistas (que julgam cada ato isoladamente). 

Há cinco erros matemáticos que surgem desse foco excessivo no indivíduo e que ignora a lógica dos coletivos, são eles:  

(i) Visão da parcela do total: avalia a contribuição moral de uma pessoa dividindo o benefício total igualmente entre todos os envolvidos, por exemplo: “Salvamos 100 vidas, então minha parte foi salvar 20”. Tal perspectiva é um erro porque a moralidade deve ser sobre as consequências de uma ação específica, se uma ação foi redundante (as outras 4 pessoas já salvariam as 100 vidas sem o agente), sua contribuição real é zero. Aderir a essa visão o impediria de ir salvar outras 10 vidas em outro lugar, onde sua ação faria uma diferença real. 

(ii) Ignorância dos efeitos de atos coletivos: Julga um ato apenas por suas consequências diretas e isoladas, ignorando que ele faz parte de um conjunto de atos que, em conjunto, produzem um resultado. Isso leva a absurdos em casos de sobredeterminação. No exemplo dos dois assassinos, se cada um atirou um tiro fatal simultaneamente, a análise isolada diria que nenhum causou mal (pois a vítima morreria de qualquer maneira). A conclusão seria que nenhum agiu mal, o que é claramente falso. 

(iii) Ignorância das probabilidades muito baixas: Desconsiderar probabilidades muito baixas como moralmente irrelevantes. Ignora o conceito de valor esperado. Uma chance de 1 em 1 milhão de causar um desastre que mate 1 milhão de pessoas tem um "custo esperado" de 1 vida. Desprezar isso é atuar de forma irracional e perigosa em larga escala. 

(iv) Ignorância dos efeitos muito pequenos: Considerar que um efeito trivial ou pequeno sobre uma pessoa é moralmente insignificante e, portanto, pode ser ignorado. Quando um ato afeta um número muito grande de pessoas, a soma total desses efeitos triviais pode ser um benefício ou um dano colossal. Considere o Experimento Mental dos Pescadores, se em um rio que tem uma quantidade limitada de peixes que cada pessoa deve pescar, mas cada um decide pescar um pouco mais, isso tem um efeito negativo trivial nos outros, mas se todos fizerem isso, o rio é destruído e todos perdem. 

(v) Ignorância dos Efeitos Imperceptíveis: Acreditar que, se um ato não torna ninguém perceptivelmente pior, ele não pode ser errado por causa desses efeitos. Esse erro leva a conclusões moralmente monstruosas. No exemplo dos Torturadores Inofensivos, cada aperto no botão causa uma dor imperceptível, mas milhares deles causar uma dor excruciante. Se aceitarmos o erro, nenhum torturador individual cometeu um ato errado, o que é absurdo. 

     Isso mostra a necessidade de revisar a Moralidade do Senso Comum. Essa revisão pode ser feita em dois níveis interligados:

(i) nível ideal coletivo: a moralidade revisada estabelece que, quando a versão tradicional se mostra autodestrutiva, a conduta correta para cada um é aquela que, se adotada por todos, realizaria da melhor forma os fins morais de cada pessoa;

(ii) nível da ação individual condicional: o cerne prático da sua moralidade revisada reside na introdução de um princípio de cooperação condicional, que estabelece que a obrigação de um indivíduo de adotar a conduta coletiva ideal surge apenas quando ele acredita que um número suficiente de outras pessoas também o fará. 

Esta cláusula de condicionalidade é o mecanismo que torna a moralidade revisada praticável. Ela transforma a obrigação abstrata do "nós" em um dever concreto para o "eu". Um cidadão não é moralmente obrigado a abandonar seu carro e usar o transporte público se for o único a fazê-lo num mar de congestionamento; seu sacrifício seria simbólico e inócuo. No entanto, sua obrigação moral é acionada no momento em que percebe que uma massa crítica de outros cidadãos já aderiu a essa mudança. Nesse ponto, persistir na conduta individualista original significa beneficiar-se injustamente do esforço alheio, tornando-se um "caronista" do projeto moral coletivo. A mesma lógica se aplica aos deveres especiais, como o de cuidar da família: a obrigação de moderar a prioridade absoluta dada aos nossos surge quando, e somente quando, acreditamos que outros em situações semelhantes também o farão, de modo a produzir um resultado coletivamente superior. 

Em sua versão revisada, a Moralidade do Senso Comum pode entrar em acordo com o Consequencialismo, permitindo uma Teoria Moral Unificada. Essa seria uma teoria cujo objetivo final é consequencialista (promover um bom estado de coisas de forma agente-neutra), mas que é realizada por meio de agentes cujas motivações centrais são as da moralidade do senso comum (agente-relativas), e que são guiados por princípios de ação híbridos. Estes princípios preservam a autonomia dos projetos pessoais na maioria dos casos, mas ativam um "modo de cooperação" de inspiração consequencialista sempre que a ação não-coordenada ameaçar frustrar os próprios valores que a teoria busca promover. 


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Bruno dos Santos Queiroz

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