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O DISPOSTIVO DE RACIALIDADE EM SUELI CARNEIRO

 

O objetivo deste texto consiste em apresentar a ideia de dispositivo de racialidade em Sueli Carneiro a partir do primeiro capítulo da obra: “Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser” da autora. O capítulo em questão, intitulado “Do Dispositivo” realiza uma investigação teórica sobre o dispositivo de racialidade na sociedade brasileira, entendendo-o como um mecanismo de poder e saber  que estrutura práticas sociais, epistemológicas e políticas. A análise fundamenta-se sobretudo no conceito foucaultiano de dispositivo e na teoria do Contrato Racial de Charles Mills, articulando-os para compreender como o racismo opera como engrenagem constitutiva da modernidade e, em particular, do Brasil. Este resumo aborda, portanto, os três tópicos centrais discutidos no capítulo: (i) o conceito de dispositivo em Michel Foucault; (ii) o dispositivo de racialidade e o contrato racial; (iii) o dispositivo de racialidade no Brasil.

 

I. O CONCEITO DE DISPOSITIVO EM MICHEL FOUCAULT

 

Em Michel Foucault, o conceito de dispositivo é central para compreender como o poder se organiza e se reproduz historicamente. Foucault define dispositivo como um conjunto heterogêneo de elementos, discursos, instituições, arquiteturas, leis, regulamentos, enunciados científicos, proposições filosóficas, práticas morais e filantrópicas, ou seja, o dispositivo é composto tanto pelo dito quanto pelo não-dito, pelos enunciados explícitos e pelos mecanismos silenciosos que sustentam a ordem social. Em suas palavras, o dispositivo é “a rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (Foucault, 1979, p. 244, apud Carneiro, 2023, p.27). A função do dispositivo é sempre estratégica, ou seja, responde a uma urgência histórica. A cada momento, emerge para lidar com problemas e tensões específicas, instaurando novas formas de racionalidade e de ordenação social. Assim, os dispositivos não são neutros: eles instituem relações de poder-saber, que constituem sujeitos e definem o que conta como verdade. Segundo Carneiro (2023, pp.27-28), ao retomar Foucault, podemos destacar três aspectos fundamentais:

1. Heterogeneidade: os dispositivos articulam elementos distintos (discursos, práticas, instituições etc.).

2. Função estratégica: seu papel é responder a uma urgência histórica, reorganizando forças sociais.

3. Práticas divisoras: todo dispositivo opera distinguindo o normal do anormal, o Eu do Outro, o Ser do Não-Ser, constituindo sujeitos através da exclusão e da negatividade.

Assim, a função central de um dispositivo é sempre estratégica: ele emerge em resposta a uma urgência histórica, assumindo o papel de reorganizar as forças sociais e instaurar novas formas de racionalidade e de ordenação. Nesse sentido, o dispositivo opera como uma engrenagem multilinear que articula três dimensões principais: (i) as linhas de saber, que regulam o visível e o enunciável, delimitando o campo do que pode ser visto e dito em uma determinada sociedade; (ii) as linhas de poder, ou de força, que organizam e sustentam esses saberes, ao mesmo tempo em que deles dependem; e (iii) as linhas de subjetivação, responsáveis pela produção dos sujeitos através de processos de assujeitamento, mas também pela abertura de possibilidades de resistência e fuga. Destacam-se em Foucault, em especial, o dispositivo de loucura e o de sexualidade.

Quanto à loucura, na modernidade, a loucura deixa de ser concebida como experiência sagrada ou desrazão e passa a ser medicalizada como doença mental. Surge, então, uma prática divisora: de um lado, o sujeito-forma do “doente mental”, fixado como alteridade negativa; de outro, o sujeito-forma do “homem normal”, que se afirma precisamente pela negação da loucura. O “normal” só se reconhece como tal ao dizer: “não sou louco” (Carneiro, 2023, pp. 28–29).

Outro exemplo é o dispositivo da sexualidade, mobilizado sobretudo pela burguesia a partir do século XVIII. Nesse contexto, a sexualidade feminina foi medicalizada e psiquiatrizada, transformando o corpo da mulher em objeto de vigilância, correção e controle. O dispositivo não apenas produziu discursos sobre o sexo, mas também forjou um novo paradigma de humanidade, no qual o corpo burguês tornou-se ideal de vitalidade, higiene e raça. Assim, o dispositivo da sexualidade não se limitou a disciplinar corpos populares: antes, funcionou como estratégia de autoafirmação de classe. Como afirma a autora: “proponho pensar que o processo de autoafirmação de classe foi acompanhado, para além da constituição do dispositivo de sexualidade, pela emergência ou operação do dispositivo de racialidade, na qual a cor da pele irá adquirir um novo estatuto” (Carneiro, 2023, p. 30).

Em todos esses casos, observa-se o mesmo mecanismo: o dispositivo cria uma ontologia social, definindo quem é sujeito pleno e quem é o Outro, fixado como negativo, patológico ou inferior. Sua força não reside apenas na repressão, mas na produção de sujeitos, verdades e modos de vida. Essa concepção permite pensar a existência de um dispositivo de racialidade, que opera de modo análogo ao da sexualidade. Se o dispositivo da sexualidade construiu o corpo burguês como ideal de humanidade, o dispositivo de racialidade institui a brancura como norma de ser, relegando negros e demais não brancos à condição de “Outro negativo”.

 

II. O DISPOSITIVO DE RACIALIDADE E O CONTRATO RACIAL

 

A partir da noção foucaultiana de dispositivo, podemos compreender a racialidade como uma engrenagem fundamental de poder que organiza discursos, práticas e instituições em torno da cor da pele como critério de normalidade e humanidade. Se em Foucault a sexualidade foi o domínio privilegiado de análise dos mecanismos de poder, em Sueli Carneiro a racialidade aparece como dispositivo ainda mais abrangente, pois nela a brancura é elevada à condição de paradigma universal do Ser, enquanto os não brancos são inscritos na esfera do Não-Ser.

Carneiro mostra que o dispositivo da sexualidade, analisado por Foucault, já expressava uma estratégia de autoafirmação da burguesia. No século XVIII, essa classe atribuiu-se um corpo “próprio”: saudável, higienizado, endogâmico e vital. Esse corpo foi erigido como modelo de humanidade. Contudo, como observa a autora, há em Foucault um “não-dito”: a articulação dessa autoafirmação com a cor da pele (Carneiro, 2023, p. 31).

O dispositivo de racialidade dá esse passo adiante, faz da brancura o estatuto do humano. Como lembra Izildinha Nogueira (apud Carneiro, 2023, p. 31), a brancura passa a ser parâmetro de pureza, razão, cultura e civilização, enquanto o negro é inscrito em um paradigma de inferioridade. Para que o branco se afirme como “positivo”, o negro deve ser construído como “negativo”. Assim, o dispositivo de racialidade não apenas regula condutas, mas cria uma ontologia dual:

(i) o branco é o Eu, o sujeito pleno, a vitalidade;

(ii) o negro (e os demais não brancos) é o Outro, fixado na imobilidade, na morte, na negação.

            Pode-se ver aqui uma influência da ontologia heideggeriana no pensamento de Sueli Carneiro. Para Heidegger, o Dasein, o ente que nós mesmos somos, é privilegiado porque nele coincidem as dimensões ôntica e ontológica: ele não apenas existe, mas é capaz de interrogar o próprio ser, compreendendo-se em seu modo de ser. Carneiro, entretanto, mostra que o racismo rompe essa possibilidade ao reduzir o negro à sua dimensão puramente ôntica, aprisionando-o em determinidades particulares como cor, raça ou cultura, e negando-lhe a dimensão ontológica da universalidade humana.

Assim, enquanto o branco é elevado à condição de ser pleno, fundamento da humanidade em sua totalidade, o negro é relegado ao estatuto de “não-ser”, um ser incompleto cuja humanidade é constantemente questionada. Nesse sentido, Carneiro revela que o racismo não é apenas um sistema de exclusão social ou política, mas uma operação ontológica que funda a própria experiência moderna de humanidade sobre a negação do Outro. A luta antirracista, nessa perspectiva, assume o caráter de uma luta pelo direito ao Ser, pela restituição da universalidade ontológica negada, tornando-se um esforço de descolonização não apenas material, mas também existencial.

É possível identificar nesse diagnóstico uma aproximação significativa com a psicanálise, sobretudo quando se considera o papel da brancura como Ideal de Ser para os Outros. Em termos psicanalíticos, esse ideal corresponde ao Ideal do Eu (Ideal Ich), uma instância psíquica que organiza desejos e identificações. Dentro de uma sociedade racista, tal ideal é construído a partir da branquitude, que se impõe como padrão de humanidade, beleza, moralidade e civilidade.

O sujeito negro, interpelado por esse modelo externo, é levado a rejeitar o próprio corpo, vivenciando um desejo paradoxal de embranquecer que, em última instância, equivale a um desejo de não-ser. Esse movimento subjetivo manifesta-se em práticas cotidianas e aparentemente banais, mas profundamente reveladoras: alisar os cabelos, utilizar maquiagens que afinem o nariz, clarear a pele ou adotar símbolos estéticos associados ao branco. Em todos esses casos, o corpo negro é tomado como signo da diferença e da negatividade e, por isso, precisa ser corrigido, apagado ou transformado para se aproximar do ideal normativo.

É nesse ponto que Carneiro (2023, pp. 33–38) dialoga com Charles Mills. O filósofo afro-americano argumenta que a modernidade política ocidental não pode ser compreendida apenas pelo Contrato Social (Hobbes, Locke, Rousseau, Kant), que pressupõe indivíduos livres e iguais. Há, na base dessa ordem, um contrato não nomeado: o Contrato Racial. Esse contrato é:

(i) Histórico e datável: nasce com o colonialismo e as expedições de conquista do século XV em diante;

(ii) Global: estabelece a divisão do mundo entre “homens” (europeus, brancos) e “nativos” (não brancos);

(iii) Político: organiza sistemas jurídicos, econômicos e sociais para garantir a supremacia branca;

(iv) Violento: os não brancos não são contratantes, mas objetos de subjugação; a violência racial é seu fundamento.

 

Para Mills, o racismo não é um preconceito individual, mas um sistema político estruturado que regula o acesso a direitos, oportunidades, riquezas e reconhecimento. Trata-se de uma ordem global que moldou o mundo moderno nos últimos 500 anos. O diálogo entre Foucault e Mills permite compreender a racialidade sob duas dimensões:

(i) Pelo viés foucaultiano, o dispositivo de racialidade é a rede de discursos e práticas (leis, instituições, ciências e representações) que produz o branco como norma e o negro como Outro. Ele opera ontologicamente, fixando identidades e hierarquias.

(ii) Pelo viés de Mills, o Contrato Racial evidencia a dimensão estrutural e política desse dispositivo, mostrando como a supremacia branca se institucionaliza globalmente sob a aparência de neutralidade do Contrato Social clássico.

Assim, o dispositivo de racialidade alimenta e é reforçado pelo Contrato Racial: enquanto o contrato estabelece juridicamente e politicamente a dominação, o dispositivo garante sua difusão por meio de saberes, moralidades, estéticas e narrativas nacionais. Tanto em Foucault quanto em Mills, a racialidade cumpre uma função estratégica: legitimar a exploração econômica, o colonialismo e a hegemonia ocidental. No Brasil, essa estratégia assume a forma peculiar do mito da democracia racial, sem jamais abandonar seu fundamento: a naturalização da brancura como parâmetro de humanidade.

 

III. O DISPOSTIVO DE RACIALIDADE NO BRASIL

 

No Brasil, o dispositivo de racialidade assume características específicas, entrelaçadas à formação social, cultural e política do país. Ele se manifesta de modo particularmente evidente em duas frentes principais: (i) a produção de saber sobre o negro e (ii) a narrativa nacional do mito da democracia racial. A forma como o conhecimento sobre o negro é produzido revela o modo de operação do dispositivo de racialidade no campo epistêmico.

Durante muito tempo, o negro não foi reconhecido como sujeito de conhecimento, mas apenas como objeto de investigação. Um exemplo emblemático é a convocação feita por Sílvio Romero, intelectual do século XIX, para que os cientistas estudassem “a África em nossas cozinhas” (apud Carneiro, 2023, p. 46) antes que ela desaparecesse. Essa formulação evidencia: (i) a naturalização do negro como resíduo cultural fadado à extinção; (ii) o posicionamento do intelectual branco como sujeito universal do saber, capaz de interpretar e traduzir o negro; (iii) a marginalização da própria produção intelectual negra, sistematicamente invisibilizada.

Esse processo corresponde ao que Sueli Carneiro, inspirando-se em Boaventura de Sousa Santos, denomina “epistemicídio” (Carneiro, 2023, p. 49): a negação da validade dos saberes negros e indígenas, substituídos ou silenciados pela hegemonia epistêmica branca. Quando reconhecidos, intelectuais negros são frequentemente desqualificados como “militantes”, em contraste com o suposto rigor “científico” atribuído aos brancos. Assim, a ciência e a academia brasileiras reproduzem a clássica divisão Eu/Outro: o branco é o produtor legítimo de conhecimento; o negro, o objeto passivo de análise.

Outra dimensão central do dispositivo de racialidade no Brasil é a narrativa da democracia racial, consolidada sobretudo a partir da obra de Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala, 1933; apud Carneiro, 2023, pp. 49–59). Esse mito sustenta que a miscigenação teria originado uma sociedade harmoniosa, marcada pela cordialidade e pela ausência de conflitos raciais, em contraste com sociedades segregacionistas, como as dos Estados Unidos ou da África do Sul.

Contudo, essa narrativa cumpre funções estratégicas: (i) silencia o racismo, transformando sua admissão em uma espécie de tabu nacional, como se reconhecê-lo fosse “atentar contra a identidade brasileira”; (ii) reforça o branqueamento, pois a miscigenação, longe de representar igualdade, foi concebida como instrumento de “melhoramento racial”, na expectativa de embranquecer a população ao longo do tempo; (iii) fragmenta a identidade negra, ao instituir uma escala cromática (negro, mulato, moreno, pardo etc.) que dilui a solidariedade racial e dificulta a afirmação de uma identidade coletiva negra.

Dessa forma, a democracia racial funciona como um discurso fundador do Brasil moderno, cuja eficácia reside em mascarar as desigualdades estruturais. Ela cria uma autoimagem positiva do país, ao mesmo tempo em que oculta os mecanismos de exclusão. O dispositivo de racialidade, nesse contexto, não é apenas discursivo, mas também material. A dicotomia espacial Casa-Grande & Senzala, descrita por Freyre, persiste sob novas formas: de um lado, condomínios fechados, bairros de elite e mansões; de outro, favelas, periferias e cortiços. Essa geografia urbana atualiza a lógica colonial, reproduzindo desigualdades de acesso a serviços, segurança e qualidade de vida.

Por fim, o dispositivo de racialidade no Brasil articula-se ao conceito foucaultiano de biopoder (Carneiro, 2023, p. 58), que designa a gestão da vida e da morte das populações. A população negra, historicamente relegada aos estratos mais baixos, é submetida a maior vulnerabilidade diante da violência policial, do encarceramento em massa e da precariedade em saúde, educação e trabalho. Nesse quadro, a inclusão social de pessoas negras ocorre de maneira individualizada e, muitas vezes, condicionada à negação ou camuflagem da identidade racial. A massa da população negra, por sua vez, é administrada segundo a lógica do “deixar morrer”, marca essencial do racismo estrutural.


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Bruno dos Santos Queiroz

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