PRECISAMOS FALAR SOBRE PSICOFOBIA
Parece cada vez mais necessário falar de psicofobia, mas poucos já ouviram falar sobre o assunto. Racismo, homofobia, machismo e transfobia são, com razão, formas de preconceito e discriminação combatidos, pelo menos por pessoas esclarecidas. No entanto, mesmo nesse ambiente “anti-discriminação”, pouco se ouve sobre a luta contra a psicofobia. E a verdade é que provavelmente a psicofobia seja uma atitude naturalizada (para usar um termo husserliano) mesmo entre pessoas bastante progressistas. Mas o que é psicofobia? Por que precisamos tanto falar dela? Como identificá-la e combatê-la?
A psicofobia pode ser definida como qualquer atitude de preconceito ou discriminação contra pessoas com algum transtorno mental ou mesmo em relação a pessoas que, mesmo não possuindo um diagnóstico psiquiátrico, enfrentam problemas de natureza psicológica. Evidentemente que, admitindo o último caso, qualquer pessoa pode ser vítima desse tipo de discriminação, embora ela atinja de forma mais marcante aqueles que já têm de lidar com um “rótulo psiquiátrico”.
Assim como outras formas de discriminação, como a homofobia, o racismo e o machismo, a psicofobia é um fenômeno relacionado a uma exclusão histórica. No livro História da Loucura na Idade Clássica, o filósofo e historiador Michel Foucault traça a história da exclusão dos chamados “loucos”. A raiz dessa exclusão se encontra na alta Idade Média, quando os leprosários, após certa erradicação da doença, tornaram-se espaços em que se isolava e segregava pessoas com doenças venéreas, que passaram a manter associação com a loucura.
Essa exclusão medieval do louco ganhou novas significações com a modernidade, com a criação das casas de internação, nas quais os loucos eram isolados juntamente com os considerados “miseráveis”. Desse modelo, seguiu-se o surgimento dos Hospitais Gerais, que além de abrigar os loucos, hospedavam os desempregados. No Hospital, também eram internadas pessoas com doenças venéreas, esses indivíduos recebiam medidas corretivas quando se suponha terem contraído enfermidade devido à devassidão sexual. É a partir desse modelo de castigo que se construiu um tratamento para a loucura. Vê-se, assim, que historicamente a loucura é tida como motivo para isolamento social e punição.
O discurso médico-psiquiátrico proporcionou aos poucos um tratamento mais humanitário aos considerados “doentes mentais”, mas ainda herdando algumas medidas de isolamento e castigo das formas anteriores. De qualquer forma, desde que a loucura foi capturada pelo saber científico, construiu-se um certo humanitarismo no cuidado das pessoas com transtornos mentais. No entanto, a psicopatologização da loucura não deixa de ser problemática, estando associada a uma rotulação dos sujeitos e a uma excessiva medicalização da vida.
Progressos, no entanto, foram feitos graças à reforma psiquiátrica e à luta antimanicomial. Tais movimentos contribuíram para uma desconstrução do modelo do internamento e para uma proposta de reintegração das pessoas com transtornos mentais na sociedade. O Centros de Assistência Psicossocial (CAPS) são frutos dessa luta, eles encontram-se inseridos no interior da cidade e são espaços em que pessoas com transtornos mentais são acolhidas, mas não internadas. Todavia, isso nem sempre é uma realidade em todo CAPS, já que muitos de seus profissionais ainda reproduzem o modelo do internamento.
No entanto, assim como a abolição da escravidão não deu fim ao racismo e suas consequências, o humanitarismo psiquiátrico, a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial não significaram o fim da psicofobia. E do mesmo modo que o racismo se reinventa sob novas e sutis formas, a psicofobia se manifesta cada vez mais em formas muitas vezes não explicitamente perceptíveis. A situação é mais preocupante quando se considera que grande parte das pessoas nem sequer sabem o que é psicofobia e que ela existe.
A psicofobia pode se manifestar de muitas formas, uma delas diz respeito ao preconceito com os serviços de saúde mental. Boa parte das pessoas não fazem ideia da função da psicologia e da psiquiatria, enquanto muitas possuem imagens preconceituosas desses serviços. Há quem diga que não vai ao psicólogo porque psicólogo é “coisa de doido”. Poucos parecem possuir a compreensão, pois, de que cuidar da saúde mental é tão importante quanto cuidar da saúde física. Isso demonstra a necessidade de uma maior conscientização sobre a importância desses serviços.
Formas sutis de psicofobia ocorrem quando associamos a loucura com mau-caratismo. Isso tem raízes históricas, já que na Idade Clássica, a loucura foi associada com o crime. Vemos, por vezes, pessoas descreverem indivíduos de caráter duvidoso com expressões como: “Esse cara é louco!" ou “Ele é um doente mental!”, “Ele é um esquizofrênico!”. Podemos ainda perguntar o quanto nossa imagem do “louco” (e a esta altura podemos evitar essa palavra por causa de sua conotação negativa) ou da pessoa com transtorno mental é problemática e o quanto ela ainda está associada com a imagem do criminoso. Temos medo de pessoas criminosas, cremos que elas podem nos agredir, matar e roubar. E embora uma pequena parcela de pessoas com transtornos mentais possa acabar sendo agressiva em situações bem específicas, temos medo delas assim como tememos um criminoso.
Os próprios termos usados para descrever pessoas com transtornos mentais são tomados por nós em sentido negativo. Quando dizemos que alguém é “bipolar”, muitas das vezes estamos querendo falar mal da pessoa referida. A imagem que temos de uma pessoa com transtorno mental pode ser bastante enganosa. Pense: como você imagina uma pessoa com transtorno mental? Se te pedissem para imaginar um esquizofrênico, você imaginaria o que? Pensaria numa pessoa paranoica e perigosa que pode te agredir? Se sim, talvez te assuste se eu te informar que eu sou diagnosticado com esquizofrenia (e não se preocupe, não machucarei você). Todas as atitudes que eu citei aqui são formas de psicofobia.
Outro exemplo de psicofobia é aquele que resulta em práticas pautadas nas ideias de que pessoas com transtornos mentais devem ser isoladas em hospícios ou que não podem viver em sociedade. No campo da religião, muitas vezes o transtorno mental é visto como pecado, como exemplo, há religiosos que acham que depressão é falta de fé ou que um esquizofrênico está sendo atormentado por demônios. Isso não é de se espantar, já que outras formas de discriminação, como a homofobia, o racismo e o machismo, também foram e são justificados sob argumentos religiosos.
Às vezes pessoas muito progressistas são psicofóbicas - veja quantas pessoas falam que Bolsonaro é louco, esquizofrênico ou doente mental. Isso revela que estamos muito atrasados quando o assunto é psicofobia. Transtorno mental não é mau-caratismo, não é pecado, não é algo que torna a pessoa menos humana ou incapaz de viver em sociedade. É preciso conscientizar-se e que nunca se deve reforçar imagens estigmatizadas sobre pessoas com transtornos mentais. A psicofobia precisa ser combatida porque ela contribui para causar sofrimento àqueles que possuem algum diagnóstico de transtorno mental ou mesmo àqueles que, não possuindo um diagnóstico, enfrentam algum problema de natureza psicológica.
A verdade é que continuamos excluindo e isolando as pessoas com transtornos mentais ou problemas emocionais. Não é verdade que quando descobrimos que uma pessoa é “emocionalmente problemática”, concluímos que o melhor é se afastar? Alunos são excluídos de escolas por serem considerados “desajustados” e são logo rotulados com um diagnóstico psiquiátrico. Pessoas com transtornos relacionados a tiques nervosos podem ter dificuldades na interação e essa incompreensão pode levar ao isolamento da pessoa. Temos também, muitas das vezes, medo de nos relacionar com alguém com transtorno mental, como pode ser o caso de pessoas com autismo, e pensamos que a melhor atitude é não se relacionar. Outras vezes simplesmente deslegitimamos o diagnóstico de uma pessoa ou invalidamos sua existência.
O afastamento em relação a pessoas tidas como problemáticas pode se manifestar de diferentes formas. Às vezes alguém tem explosões incontroláveis de ira e isso leva pessoas a se afastarem. Outros são muito carentes, emocionalmente dependentes ou demandam muita atenção e isso pode fazer com que o outro se sinta sufocado. Pode-se pensar também em alguém que é mais inconstante emocionalmente, que muda de humor muito rapidamente e pode ser difícil para o outro o convívio com alguém assim. Podemos pensar ainda em alguém muito deprimido cuja companhia pode deixar o clima melancólico. Há muitas outras situações em que o fato de o outro possuir problemas emocionais ou psicológicos pode levar a um afastamento das pessoas ou a própria pessoa pode decidir se isolar pelo medo da exclusão.
A questão é que todos nós temos esses problemas em algum grau, mas para alguns isso pode ter um peso maior. O complicado é que à medida em que os outros se afastam, mais a autoestima da pessoa diminui e mais ela pode se sentir mal, piorando os sintomas justamente daquilo que faz os outros se afastarem. Isso é um ciclo vicioso complicado. Fico pesando que não sabemos conviver bem com pessoas com problemas emocionais, ou nos afastamos ou temos outras atitudes que pioram o quadro da pessoa. Só pensarmos em como culpabilizamos pessoas deprimidas, o quanto achamos que o outro em crise age assim porque "quer" ou o quanto acreditamos que a solução para os problemas do outro é "mágica" ("é só parar de ser assim").
Duas formas psicofóbicas de lidar com pessoas em crise emocional podem ser mencionadas:
(i) A culpabilização: uma pessoa em crise não agre voluntariamente, não está em crise porque quer, mas porque não está conseguindo agir de outro modo; pessoas com transtornos mentais ou mesmo uma pessoa sem diagnóstico num momento de crise, pode passar a impressão de que está agindo assim de propósito e, por consequência, ser incompreendida pelos outros. A verdade é que temos real controle sobre poucas das nossas ações e que nossas emoções não estão sob nosso controle direto. Dizer para uma pessoa deprimida coisas como “pare de ficar triste”, por exemplo, só servirá para aumentar a culpa que o indivíduo sente. Isso significa também que precisamos ser mais indulgentes em relação a pessoas com transtornos mentais ou em uma crise emocional, entendendo que aquilo que a pessoa fez ou as palavras que falou numa situação assim não foi de propósito.
(ii) O emprego de conselhos prescritivos: esse ponto guarda relação com o anterior; é porque achamos que pessoas com transtornos mentais ou pessoas em crises emocionais, são “culpadas”, é que acreditamos que elas podem controlar o que sentem. Daí que supomos poder dizer a alguém deprimido para não ficar triste. Por mais sincera que seja esta forma de solidarizar-se com o outro, seus efeitos são negativos. Conselhos prescritivos consistem em dizer à pessoa o que ela deveria ou não fazer ou sentir. Eles podem ter formas como: "Não fique triste"; "Não chore"; "Você tem de tudo para ser feliz, não deveria se sentir assim"; "Não fique assim, vai passar"; "Como você pode se sentir assim? Tem gente em situação muito pior que a sua"; "Deixe de frescura", etc. O primeiro motivo pelo qual tais conselhos são ruins, é que eles deslegitimam o sentimento da pessoa. Toda emoção é válida e pode funcionar como um sinal de como estamos. Não existe sentimento errado e permitir-se experimentar os próprios sentimentos, mesmo os de tristeza e depressão, é importante. O segundo motivo é que tais conselhos só aumentam o sofrimento. A pessoa deprimida geralmente se sente muito cobrada e culpada, seu problema não é que ela não queira melhorar, mas sim que não está conseguindo. Cobrá-la que melhore, afirmar coisas óbvias ou fazê-la se sentir culpada por ser incapaz de se sentir feliz certamente não fará a pessoa se perceber apoiada e ajudada. Em caso de não saber o que falar, é melhor apenas ouvir, acolher o sentimento do outro sem julgamentos e, se for o caso, orientar, com cuidado, a pessoa a buscar ajuda profissional.
Precisamos admitir que somos uma sociedade psicofóbica, aprendemos desde cedo a excluir os considerados "loucos" nos hospícios e não termos de lidar com eles, e hoje não sabemos como conviver com pessoas que possuem algum transtorno mental, ou mesmo dificuldade emocional. Só sabemos fazer o que sempre fizemos: excluir e isolar aqueles com os quais não sabemos conviver. Mas isso pode mudar, podemos começar por trabalhar em criar uma sociedade mais saudável e menos adoecedora. Sempre que lutamos contra opressões sociais, estamos de alguma forma lutando contra a psicofobia também. Quanto menos preconceituosa uma sociedade for, mais construímos um ambiente mais saudável e menos mentalmente adoecedor.
Cabe ainda desconstruir preconceitos, valorizar a psicologia e os serviços de saúde mental, superarmos atitudes que agravem o sofrimento psíquico (como ataques em redes sociais, por exemplo) e aprendermos a desenvolver uma atitude mais empática e humana. É preciso aprender a lidar e ajudar pessoas “emocionalmente problemáticas”, ao invés de acharmos que a solução é afastar-se ou isolá-las. É necessário desfazer-se de estigmas em torno dos diagnósticos de transtornos mentais, deixar de associar a "loucura" com a figura do criminoso e construir formas de acolhimento de pessoas em sofrimento psíquico. Parece-me que muita coisa ainda precisa ser feita, mas o ponto é que não podemos mais continuar naturalizando a psicofobia ou fingindo que ela não existe.
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