AVALIAÇÃO CRÍTICA DOS ARGUMENTOS TRADICIONAIS A FAVOR DA EXISTÊNCIA DE DEUS
O objetivo deste artigo não é refutar a existência de Deus, mas avaliar criticamente os tradicionais argumentos a favor do teísmo e mostrar porque eles são insuficientes em provar que Deus existe. Para isso, os argumentos são reunidos em três tipos: (i) argumento ontológico: busca provar a existência de Deus de maneira analítica e a priori, partindo do próprio conceito de Deus; (ii) argumento cosmológico: busca mostrar que Deus existe a partir da atestação da impossibilidade de uma regressão infinita na série de causas do Universo; (iii) argumento teleológico: busca demonstrar, a partir da complexidade da vida e do Universo, que uma Inteligência projetista divina existe.
ARGUMENTO ONTOLÓGICO
René Descartes, na Quinta Meditação, diz que a existência é uma perfeição, logo, se Deus existe, sendo Deus infinitamente perfeito, é necessário que Ele exista. Este é um tipo de juízo que podemos chamar de “analítico”, pois se baseia no próprio conceito de Deus e de “a priori”, pois não se baseia na experiência. Este argumento remonta a Santo Anselmo. Anselmo argumenta que o maior Ser concebível deve existir necessariamente, senão se poderia conceber um maior que também existisse.
Um juízo analítico é aquele em que o predicado está contido no conceito. Quando alguém diz que a existência está contida no conceito de Deus, conclui-se daí que existência está sendo pensada como um predicado que é simplesmente decomposto de um conceito. O problema deste argumento é que a existência não é um predicado. Eu posso dizer que Deus “é” bom, justo, perfeito, onipotente, entre outros atributos que lhe são predicados. Mas dizer Deus “é”, não é predicar nada de Deus. Ou seja, o argumento ontológico falha ao tomar a existência como predicado. Além do mais, ser não pode ser uma perfeição, pois isso significaria que o ser é "melhor" do que o nada, isto é, que a existência é melhor do que a inexistência, mas o nada, nada é, de modo que é absurdo comparar algo com o nada.
É por isso que Immanuel Kant, na Crítica da Razão Pura, pontua que “ser” evidentemente não é um predicado real, é apenas a posição de uma coisa, é simplesmente a cópula de um juízo. Além disso, trabalhar com a noção de “ser” em relação a Deus pode ser por demais complicado. Se Deus pertence univocamente ao gênero "ser", então ele não é o maior Ser concebível. Pois se "ser" é uma categoria que inclui Deus e os outros entes do mundo, então "ser" precisa ser maior que o ente “Deus”, a não ser que admitamos uma concepção panteísta de Deus, como o faz a filosofia de Spinoza. Mas o teísmo clássico não admite o panteísmo.
Por outro lado, se “ser” não se aplica a Deus de maneira unívoca, então deve se aplicar a Ele de maneira “analógica”. Mas toda analogia implica um elemento comum, senão não é analogia e esse elemento comum precisa ser unívoco. Algo pode ser analógico no modo de predicação, mas não no conceito predicado. A predicação analógica cairia, assim, numa regressão infinita até um elemento unívoco. Logo, dada a necessidade de um elemento unívoco para que haja uma analogia, voltamos ao mesmo problema da univocidade.
Por fim, poder-se-ia argumentar então que “ser” se predica de Deus de maneira equívoca. Mas o que significaria uma predicação equívoca? Se não houver uma univocidade nos conceitos sobre Deus, não é possível haver nenhum tipo de certeza em nosso conhecimento sobre Deus. Mas mais do que isso, teríamos de dizer que Deus não existe, pois, "equívoco" significa aquilo que é a total negação de um conceito e a total negação do ser é o nada. Assim, poderíamos inverter o argumento ontológico. Se é possível que Deus não exista e a existência necessária faz parte do significado de "Deus", então segue-se que Deus não pode existir.
O filósofo cristão e fenomenólogo francês Michel Henry observa que o argumento de Anselmo sofre de uma autocontradição, ele pontua: "Provar algo é submeter esse algo a um conjunto de condições que devem ser satisfeitas, condições que em conjunto constituem a própria prova. De início, a prova aparece como mais alta que o que deve ser provado; ela se erige como um tribunal... No caso da existência de Deus, esta citação diante de um poder de validação maior que ele não só é estranho, mas entra imediatamente em contradição com a definição anselmiana de Deus segundo a qual não existe nada maior." (Eu Sou a Verdade, p.221).
Assim, para Henry, assumir a tarefa de provar a existência de Deus significaria submeter Deus a um critério anterior e superior a ele mesmo e isso se chocaria com a própria definição de Deus como aquilo em relação ao qual não há nada maior. Isso que o argumento toma implicitamente como maior que Deus é a Razão, que prescreve os critérios de evidência de existência. Assim, o argumento anselmiano comete a contradição de subordinar o maior ser concebível a um critério de evidência que precisaria ser maior do que ele, um critério que, para Henry, é estranho à essência divina, cuja verdade é a da vida, não a da razão do mundo.
ARGUMENTO COSMOLÓGICO
O teólogo tomista Norman Geisler coloca este argumento de diferentes formas. Em sua Teologia Sistemática, ele faz uma distinção entre dois tipos de argumentos cosmológicos, o horizontal e o vertical. Ele pontua de forma resumida:
“O Argumento Cosmológico Horizontal ou Kalam diz: (1) Tudo o que teve um começo, teve também uma causa eficiente. (2) O Universo teve um começo. (3) Portanto o Universo teve uma causa eficiente.
Outro argumento a favor do teísmo é o Argumento Cosmológico Modal/Vertical ou a partir da Contingência, ele se relaciona com o Princípio da Razão Suficiente de Leibniz: (PRS), segundo o qual existem dois tipos de coisas: (i) coisas necessárias: existem necessariamente e por sua própria natureza (e.g. números); (ii) coisas contingentes: existem porque foram causadas, sua existência depende de uma causa (e.g. Universo). O argumento é assim: (1) O Universo não existe por necessidade de sua própria natureza, sendo acidental, contingencial. (2) A existência de algo contingente exige uma explicação para sua existência em uma causa necessária, pois como questiona Leibniz: Por que há algo em vez de nada? (3) Logo, existe um Ser Necessário que é a Causa do Universo. Outra forma de expor este argumento seria: (1) Tudo o que é contingente tem uma causa. (2) O Universo é contingente. (3) Portanto o Universo tem uma causa.
Outro argumento que pode ser apresentado é o Argumento Cosmológico Vertical a partir da Mudança, o argumento é assim: (1) Tudo o que muda passa de um estado de potência para um estado de atualidade. (2) Mas nenhuma potencialidade é capaz de se atualizar a si própria. (3) Logo precisa haver algo que é Pura Atualidade.”
Este tipo de argumento cai nas antinomias do tempo-espaço e da causalidade apresentados por Immanuel Kant em sua Crítica da Razão Pura. Uma antítese em relação ao argumento de que o mundo e o tempo tiveram um começo, é colocado da seguinte forma: “conforme a antítese, se o mundo começou a existir, teria de haver um tempo no qual o mundo não existia, um tempo vazio. Nada pode passar a existir num tempo vazio, porque nenhuma parte de tempo em si pode fornecer de preferência às outras partes, condições para a existência do mundo. Assim, o mundo não pode ter um começo e também precisa ser infinito, sem limites.” Uma antítese quanto à causalidade é colocada assim: “todo começo pressupõe uma causa anterior. A causalidade é o fio condutor de todas as regras e não se pode pensar em um acontecimento livre da causalidade e das leis naturais.” Isto é, uma causa primeira precisaria fazer parte da série de causas e não pode fugir de suas regras. Um começo só pode existir já pressupondo o tempo, logo a causa do mundo precisaria ser temporal.
Podemos, a partir de tudo isso, apresentar três falhas do argumento cosmológico:
(i) ele extrapola o domínio da causalidade: ao que parece o mundo físico ou natural é constituído por uma teia de causas e efeitos, a questão é: com que base concluímos que esse tipo de relação deve valer também para além do mundo físico, que ela se aplique também a um Espírito puro que teria criado o mundo? Aqui também aparece o problema conhecido como explanatory gap, isto é, como um ser completamente imaterial poderia ser a causa de um Universo material?
(ii) a causalidade não necessariamente pertence à realidade em si: não sabemos se realmente a causalidade pertence à realidade em si, ou se ela faz parte de como a nossa percepção configura a realidade. Sabemos pelos estudos da Gestalt que nossa percepção configura a realidade em relações de sentido. O que nos garantiria que a causalidade não é senão um princípio da nossa percepção? David Hume, por exemplo, propôs que a causalidade é uma relação associativa operada pela imaginação, nesse sentido, a causalidade aparece como uma associação entre ideias que se assenta na afetividade, isto é, no sentimento de continuidade e invariabilidade que se produz em nós a partir do hábito.
(iii) um ato que causasse a existência do mundo deveria pressupor o tempo: se o mundo começou a existir, teria de haver um tempo no qual o mundo não existia, assim, a causa do mundo precisaria ser temporal. Mas o teísmo propõe que Deus é atemporal (eterno). Um ser que tivesse causado o mundo precisaria começar a agir a fim de criar o mundo, para começar a agir ele precisaria estar subordinado ao tempo, logo a causa do mundo não pode ser um Deus atemporal.
Ainda poderíamos questionar a visão linear do tempo, dependendo de como o tempo opera, uma regressão infinita pode ser possível sem que caiamos no problema do Hotel de Hilbert. Basicamente o paradoxo de Hilbert nos pede para imaginar um hotel com infinitos quartos, todos estão ocupados e aparece mais um cliente querendo uma vaga. Como há infinitos quartos, bastaria pedir que cada ocupante de um quarto mudasse para o seguinte deixando o primeiro vago. O infinito se torna, então, um absurdo, mesmo com todos os quartos ocupados parece haver ainda infinitas vagas. Esse absurdo da regressão infinita pensada na linearidade do tempo impediria que o “hoje” chegasse, pois se o passado antes de nós é infinito, então, para que o agora existisse, o tempo precisaria percorrer o infinito.
Esses argumentos teístas contra uma regressão infinita no tempo só fazem sentido se a concepção linear de tempo estiver correta. Mas e se o tempo for circular, um eterno retorno, então pode sim logicamente haver um tempo infinito no passado e no futuro e não poderá haver um "começo". Uma ilustração é mostrada pelo paradoxo de Bootstrap, que aparece na série Dark da Netflix. Esse paradoxo revela a complexidade da temporalidade e mostra como algo poderia surgir de maneira acausal. O paradoxo nos pede para imaginar um viajante no tempo. Imagine que alguém no futuro que conhece computadores fosse no passado e levasse as instruções para Allan Turing sobre como criar o computador. Assim, uma informação ou objeto que voltasse no tempo deixaria de ter uma origem como acontece com a máquina do tempo de Dark.
O analista suíço Carl Gustav Jung propôs uma teoria segundo a qual eventos acausais acontecem, é o que ele denominou de “sincronicidade”. De acordo com Jung, o pensamento ocidental descobriu na natureza um fenômeno chamada "causalidade". Observou-se que determinados eventos tendem a ser sucedidos por outros, que sempre que um evento A ocorre, ele é sucedido por um evento B. Por exemplo, sempre que se coloca uma panela de água sobre a chama do fogão, a água entra em ebulição. Mesmo sem conseguirem explicar como esta conexão se daria ou como dois eventos de naturezas tão diferentes poderiam estar conectados, estabeleceu-se o princípio de causa e efeito.
Já os orientais, observando a natureza, descobriram um outro fenômeno interessante: por vezes, um evento A mantém relações de significado com um evento B. Por exemplo, um homem pode sonhar com a morte de um parente e, em seguida, este parente acabar falecendo de fato. Não se tratava de um evento causando o outro, mas de uma "coincidência significativa". A esse fenômeno, Jung deu o nome de "sincronicidade". Sabemos que o evento A e o evento B estão conectados, embora não possamos saber como explicar como se dá esta ligação.
A sincronicidade não tem nada de místico ou sobrenatural, ela é tão natural quanto a causalidade. Um exemplo interessante de sincronicidade ocorre quando um relógio para de funcionar no exato momento da morte do seu dono. Outro exemplo consiste nas incríveis coincidências entre a personalidade de uma pessoa e seu mapa astrológico ou entre uma necessidade de orientação psíquica e os resultados das cartas do tarô. Assim como racionalmente não é possível explicar completamente como se dá a causalidade, também o mesmo vale para a sincronicidade. No entanto, ela não deve ser vista como um fenômeno sobrenatural, mas sim como um princípio do mundo natural tão legítimo quanto a causalidade. Parece, assim, ser possível conceber acontecimentos sem causas.
ARGUMENTO TELEOLÓGICO
Este argumento, hoje, aparece principalmente na forma do argumento do Design Inteligente e é geralmente apresentado na forma de analogias mecanicistas. Por exemplo, se me encontro em um aeroporto e me deparo com um avião em toda sua complexidade, parece óbvio concluir que aquele avião foi projetado por uma mente inteligente. O mesmo ocorre com o Universo e a vida, que apresentam uma complexidade especificada muito grande e aparentam terem sido projetados.
Sobre esse tipo de analogia, o filósofo Richard M. Gale observou: “Este argumento é um nado-morto porque a sua premissa analógica é destruída pela gritante desanalogia entre uma máquina e o universo; ao passo que uma máquina tem uma função, o universo como um todo não pode ter tal coisa. Esta desanalogia deve-se ao fato de uma máquina ter de operar num dado ambiente, ao passo que o universo não pode fazer tal coisa, uma vez que é a totalidade do que há.” (O Insucesso dos Argumentos Teístas Clássicos, In: Um Mundo Sem Deus. Ensaios sobre o Ateísmo, organizado por Michael Martin).
Quando se trata da complexidade da vida, o argumento teleológico já foi refutado pela moderna Teoria da Evolução. Segundo essa teoria, a complexidade da vida não pode ser explicada pelo acaso, a pura aleatoriedade seria incapaz de produzir espécies complexas como as que conhecemos. Assim, a explicação para a vida é uma seleção não-aleatória, que os biólogos chamam de Seleção Natural. De acordo com o biólogo britânico Richard Dawkins: “É esmagadoramente improvável que os seres vivos complexos tenham surgindo por acaso. O processo evolutivo não é conduzido, nem pelo acaso, nem por um Designer inteligente, mas pela Seleção Natural. A sequência integral dos passos cumulativos da evolução não constitui absolutamente um processo aleatório, considerando a complexidade do produto final em comparação com o ponto de partida original, O processo cumulativo é dirigido pela sobrevivência não aleatória.” (Relojoeiro Cego).
Outra forma em que o argumento teleológico aparece é no chamado princípio antrópico. De acordo com esse princípio, parece que todo o Universo em suas mínimas constantes foi minuciosamente planejado para criar um ambiente adequado para a vida humana. O princípio antrópico é baseado na ideia de que as constantes físicas aparentemente perfeitamente finas e ajustadas são evidência de um projeto inteligente para o universo ou que o universo foi criado de tal forma que a existência humana fosse possível.
Em parte, novamente a Seleção Natural nos ajuda a entender que não foi o Universo que desde sempre se adequou à vida, mas a vida que se adequou a este Universo. Mas o argumento falha se for verdade que as constantes do universo nunca tiveram a possibilidade de variar. Por exemplo, se medirmos a circunferência de qualquer círculo real ou imaginável, não importa seu tamanho, e dividirmos pelo seu diâmetro, o resultado será invariavelmente 3,14..., o chamado número π. Assim, pode ser que as constantes físicas sejam de fato invariáveis, que nunca tenha havido a possibilidade de que elas fossem diferentes do que são e, nesse caso, fica anulada a ideia de que tais constantes precisassem ser determinadas por um ser inteligente a fim de garantir a existência da vida humana.
Além disso, mesmo admitindo que as constantes pudessem ser outras, pode ser que a mudança numa constante específica impedisse a vida, mas e se pensarmos em larga escala, se pensarmos que diversas constantes poderiam ter sido outras, que o universo pudesse ter outras possibilidades de configuração, uma outra história, será que não poderia ser o caso de outro layout para o universo permitir a vida? Por fim, o princípio antrópico parece estar baseado na visão antropocêntrica de que nós somos o objetivo da existência de todas as coisas, no entanto, podemos lembrar que sem as atuais constantes físicas também não haveriam as rochas, será que por causa disso vamos concluir que existe um "princípio lítio"?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta avaliação crítica geral dos principais argumentos tradicionais a favor do Deus teísta nos faz pensar de que eles são insuficientes para provar que Deus existe. Nem o argumento ontológico, nem o cosmológico e o teleológico conseguem provar a existência do Deus teísta. Isso não significa necessariamente que o Deus teísta não exista, mas sim que do ponto de vista racional, a existência de Deus não está provada e que a crença nele permanece, assim, como uma questão de fé.
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