ROMANOS 9:5 CHAMA JESUS DE DEUS?
Romanos 9:5 tem sido citado como uma evidência de que já nos escritos mais antigos dos cristãos, Jesus é tratado como Deus e Homem. É dito que Cristo é homem “segundo a carne” e, ao que parece, “Deus bendito eternamente”. Veja o que diz o apóstolo Paulo: "Dos quais são os pais, e dos quais é Cristo segundo a carne, aquele que é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém!" Esse versículo, no entanto, tem sido alvo de controvérsia. Como o grego original não tinha pontuação, ele pode ser lido tanto como um aposto “Cristo segundo a carne, o qual é Deus bendito eternamente” (leitura A) quanto como uma doxologia assindética “Cristo segundo carne. Deus, que é sobre todos, seja bendito eternamente” (leitura B). Qual a tradução correta?
Para lidar com esse problema, quero
aqui primeiro introduzir uma hipótese minha com base em dois textos, 1
Coríntios 8:6 e Filipenses 2:6-7. Comecemos pelo primeiro texto: “Todavia para
nós há um só Deus [Theós], o Pai, de quem são todas as coisas e para quem
vivemos; e um só Senhor [Kyriós], Jesus Cristo, por meio de quem todas as
coisas existem e por meio de quem também nós existimos." Aqui temos duas
figuras distintas nessa confissão de fé, o Pai aquele de quem tudo procede e o Filho aquele por meio de quem tudo procede. Note que cada uma das pessoas tem um
título próprio, o Pai é Theós e o
Filho é Kyriós. Mas por que essa
distinção?
Para responder a isso, vejamos agora
o próximo texto: “Mantende em vós a mesma atitude mental que houve em Cristo
Jesus, o qual, embora existisse em forma divina, não deu consideração a uma
usurpação, a saber, que devesse ser igual a Deus [Theós]. Ao invés disso, ele se esvaziou assumindo a forma de
escravo, vindo a ser semelhança de homens. Mais do que isso, quando se achou na
semelhança de homem, humilhou-se, sendo obediente até a morte na cruz. Por esta
mesma razão, Deus [Theós] o exaltou
em uma posição superior e lhe deu um nome que está acima de todo outro, a fim
de que no nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão no céu, na terra e
debaixo da terra e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor [Kyriós], para a glória de Deus [Theós] o Pai”.
Novamente temos o padrão de Theós para Deus o Pai e Kyriós para o Filho. Kyriós, nas cartas de Paulo, seguindo a
LXX, é um sucedâneo do nome Jeová. Portanto, uma possível leitura é que o “nome”
que o Pai dá ao Filho, é seu próprio nome no Antigo Testamento, a saber Jeová (Kyriós). Ao que parece, a condição de
Jesus após a ressurreição é ainda mais superior que a pré-humana Antes de
assumir forma humana, ele só tem "forma divina" e ele "não usou
isso como desculpa para tentar ficar igual a Deus o Pai", mas
"assumiu forma humana", e é justamente por essa humildade, que após
esse período, ele foi exaltado por Deus Pai, e recebeu do Deus Pai o nome
"Jeová/Kyriós", nome que
está acima de qualquer outro nome. A atribuição do nome Jeová a Jesus
representa algo comum na literatura bíblica, que é quando um ser que não é Deus
pode ser chamado pelo nome de Deus por estar na função de ser seu representante
(Gênesis 16:7–13, 21:17, 22:11–18, 24:7, 24:40, 31:11, Êxodo 3:2, 14:19,
23:20–23, 32:34, Números 22:22–35, Juízes 2:1–4, 5:23, 6:11–24, 13:3–22, 1 Reis
19:5–7, 2 Reis 1:3, 1:15, 19:35, 1 Crônicas 21:15–30, Zacarias 1:11–14, 3:1–6,
12:8).
Já vemos aqui que Paulo tem uma
cristologia bem mais alta que os sinóticos, que nunca parecem retratar Jesus
como divino. A razão para isso, é que a teologia paulina se desenvolveu de
forma independente da teologia evangélica. Paulo se converteu a partir de uma
cristofania, de um Jesus que apareceu a ele com forma celestial. O Jesus que
Paulo conhecia era o Jesus celestial, não o Jesus humano. Paulo parte do Jesus
celestial para entender o Jesus humano. Os Evangelhos, por outro lado, partem
do Jesus humano para depois, gradualmente, poder elevá-lo a uma condição
divina.
Assim, que Paulo tenha uma cristologia
alta já na década de 50d.C., não prova que os cristãos como um todo já tinham
uma teologia da divindade de Cristo formulada já no início da segunda metade do
primeiro século. Ao contrário, isso mostra a independência da teologia de Paulo
do movimento de Jesus. Paulo parece não ter tido muito contato com os
apóstolos, apenas uma breve visita e parece ele ter seguido seu rumo próprio,
inclusive divergindo da posição dos discípulos diretos de Jesus (Gálatas
1:18-20). Paulo também raramente fala de Jesus como humano. Por isso o
movimento de Paulo é o oposto nesse assunto ao do movimento dos discípulos de Jesus – Paulo conhece
o Jesus divino e é a partir dele que ele tenta entender o humano.
Se minha hipótese sobre o uso de Theós e Kyriós em Paulo estiver correta, então, todas as vezes que Paulo
usa Theós ele deve se referir a Deus
o Pai e todas as vezes que ele usa Kyriós,
a menos que ele esteja se referindo ao Antigo Testamento, ele deve estar
fazendo referência ao Filho. Quanto a Kyriós,
com exceção das citações do Antigo Testamento (LXX), Paulo parece se
referir a Cristo e mesmo nas citações da LXX muitas vezes a referência pode ser
que seja aplicada à Cristo. Há casos, no entanto, em que não é possível
determinar com certeza se Kyriós se
refere a Deus Pai ou a Cristo, são eles: 1 Coríntios 3:5; 7:25; 2 Coríntios 8:21;
1 Tessalonicenses 4:6; 5:23.
E quanto a Theós? Theós já é mais
consistente e claro, de fato, em todos os casos em que a tradução não é controversa,
Theós se refere a Deus Pai no
apóstolo Paulo. Há somente um caso controverso em que Theós poderia se aplicar a
Cristo, trata-se justamente de Romanos 9:5. O termo Theós é usado centenas de vezes por Paulo, sempre em referência ao
Pai. Assim, Romanos 9:5 caso se refira a Cristo seria uma surpreendente exceção
a um padrão que se repete consistentemente em Paulo.
Há duas razões principais para
traduzir Romanos 9:5 como referência a Cristo. A primeira e mais importante é a expressão
“ho on”, que é quem ocupa o lugar de sujeito da doxologia e que, mais
naturalmente, retomaria Cristo e seria desnecessária se a doxologia formasse um
período autônomo. A segunda razão seria a de que Paulo nunca faz uso de
doxologias assindéticas, isto é, fórmulas de louvor a Deus que aparecem sem
uma conjunção ligando-a à frase anterior. No entanto, essas duas razões devem
ser contrabalanceadas por outras razões que temos para preferir a tradução em
que a doxologia se refere a Deus Pai:
(1)
Todas as outras doxologias nas cartas de Paulo são dirigidas a Deus Pai e nunca
somente a Cristo (cf. Rm 1:25; 11:36; 2Co 1:3; 11:31; Gl 1:5; Fp 4:20).
(2)
Sempre que Paulo usa o termo theós, ele o emprega para se referir a Deus Pai,
não a Cristo, aliás, todos os demais casos em que Paulo usa theós em Romanos se
refere ao Pai (Rm 1:1, 1:7, 1:8, 1:24, 1:25; 2:16; 3:4, 3:6, 3:26, 3:29, 3:30;
4:2, 4:3, 4:6, 4:20, 4:24; 5:1, 5:2, 5:5, 5:8, 5:10, 5:11; 6:4, 6:10, 6:11,
6:13, 6:23; 7:4, 7:25; 8:3, 8:7, 8:9, 8:14, 8:16, 8:17, 8:21, 8:27, 8:31, 8:33,
8:39; 9:5, 9:6, 9:8, 9:14, 9:20, 9:26, 9:29; 10:1, 10:3, 10:9; 11:1, 11:2,
11:8, 11:22, 11:23, 11:33, 11:34, 11:36; 12:1, 12:2, 12:3, 12:16, 12:19; 13:1,
13:2, 13:4, 13:5, 13:6; 14:3, 14:4, 14:10, 14:11, 14:12, 14:13, 14:17, 14:18,
14:20; 15:5, 15:6, 15:7, 15:13, 15:15, 15:30, 15:32; 16:20, 16:26, 16:27)
(3)
Na mesma carta (Romanos), a fórmula εὐλογητὸς εἰς τοὺς αἰῶνας (eulogetòs eis
toùs aiōnas, “bendito para sempre”) é aplicada ao Pai (cf. Rm 1:25).
(4)
Em doxologia semelhante em Paulo, a expressão “Deus seja bendito” refere-se
claramente ao Pai (2 Coríntios 1:3)
(5) Em
outra doxologia semelhante, Paulo usa a fórmula “seja bendito para sempre”
também em relação ao Pai - 2 Coríntios
11:31
(6)
A separação entre ὁ Χριστὸς (ho Christós, “o Cristo”) e ὁ ὢν (ho ōn, “aquele
que é”) por meio da expressão τὸ κατὰ σάρκα (tò katà sárka, “segundo a carne”) cria uma pausa que permite que “aquele que é” não se refira a Cristo, mas sim a Deus Pai.
(7)
A expressão "segundo a carne" parece fechar o assunto do tópico dos
privilégios dos judeus. O que explica uma doxologia logo depois disso para
fechar o assunto.
Diante disso, vemos que as duas
possibilidades de tradução precisam apelar para usos incomuns. Os defensores da
leitura A precisam afirmar que esse texto é a única exceção em que Paulo usa o
substantivo theós para se referir a
Cristo e que essa é a única doxologia dirigida somente a Cristo e não ao Pai em Paulo.
Os defensores da leitura B, por outro lado, precisam afirmar que esse é o único
caso em que Paulo usa uma doxologia assindética com ho on como sujeito. Quando um embate desse ocorre, cabe o ônus de
cada posição explicar ou tentar apresentar hipóteses que justifiquem o uso
incomum.
Qual justificativa possuem os
defensores da leitura B para a exceção? Uma possível explicação para essa exceção
é a seguinte:
“Em
geral, é claro que o uso do particípio com o artigo como sujeito de uma frase
independente, em vez de ser algo excepcional no Novo Testamento, é muito mais
comum do que o seu uso como atributivo. Nem é de estranhar; pois ὁ ὢν significa
propriamente não “que é”, mas “aquele que é”. A força do artigo não se perde…
Não
há, portanto, nada, nem no significado próprio de ὁ ὢν, nem no seu uso, que
torne mais fácil ou natural referi-lo a ὁ χριστός do que entendê-lo como introduzindo
uma frase independente.
Segue-se
observar que há circunstâncias que tornam fácil esta última construção e que distinguem
a passagem de quase todas as outras em que ὁ ὢν, ou um particípio com o artigo,
é usado como atributivo. Em todas as outras ocorrências no Novo Testamento
deste uso de ὁ ὢν ou οἱ ὄντες no nominativo, com a única exceção da inserção
parentética em 2 Coríntios 11:31, ele imediatamente segue
o substantivo ao qual se refere. O mesmo é geralmente verdade para outros
exemplos do particípio com o artigo. (Os casos mais fortes de exceção que notei
são João 7:50 e 2 João 7.)
Mas
aqui ὁ ὢν está separado de ὁ χριστός por τὸ κατὰ σάρκα, que, na leitura, deve
ser seguido por uma pausa — pausa que é aumentada pela ênfase especial dada ao
κατὰ σάρκα pelo artigo τὸ; além disso, a frase precedente está gramaticalmente
completa em si mesma e não exige nada mais do ponto de vista lógico; pois foi
apenas 'quanto à carne' que Cristo era dos judeus.
Por
outro lado, como vimos, a enumeração das bênçãos que imediatamente precede,
coroada pela inestimável bênção da vinda de Cristo, sugere naturalmente uma
atribuição de louvor e ação de graças a Deus como o Ser que governa sobre
todos; ao mesmo tempo, uma doxologia também é sugerida pelo ἀμήν no fim da
frase. Sob todos os pontos de vista, portanto, a construção doxológica parece
fácil e natural. A omissão do verbo ἐστί ou εἴη em tais casos está simplesmente
de acordo com a regra. A construção numerada como 6 acima também
é perfeitamente fácil e natural gramaticalmente (veja 2 Coríntios 1:20, 7:15,
etc.).
A
naturalidade de uma pausa após σάρκα é ainda indicada pelo fato de que
encontramos um ponto após essa palavra em todos os nossos manuscritos mais
antigos que trazem pontuação no caso — a saber, A, B, C, L — e em pelo menos
oito cursivos, embora os cursivos tenham sido raramente examinados quanto à
pontuação.
Tem-se
argumentado que, se o autor não tivesse a intenção de que ὁ ὢν fosse referido a
Cristo, ele teria adotado outra construção para sua frase, que não estaria
exposta a tal mal-entendido. Mas este argumento é um bumerangue: ‘Se Paulo
tivesse achado adequado desviar-se de seu costume, até então invariável, e
falar de Cristo como Deus, teria feito isso com um propósito sério e deliberado
de afirmar a divindade de Cristo. E, nesse caso, teria usado palavras que
ninguém pudesse interpretar de outra forma.
Em
um caso semelhante, João 1:1, encontramos uma linguagem que exclui toda dúvida.
E, neste caso, as palavras ὃς ἐστίν, como em 1:25, teriam dado igual certeza…
Além
disso, aqui Paulo está tratando de um assunto totalmente diferente — a situação
presente dos judeus. E me parece muito mais provável que ele se desviasse de
seu modo comum de expressão e escrevesse, uma vez, “Deus seja bendito” em vez
de “a Deus seja a glória”, do que, em uma passagem que não se refere
especificamente à natureza de Cristo, afirmasse — o que ele em nenhum outro
lugar declara explicitamente — que Cristo é Deus, e afirmasse isso em uma
linguagem que tanto pode significar isso quanto algo completamente diferente.’”
(ABBOT, Ezra. The authorship of the fourth Gospel and
other critical essays: selected from the published papers of the late Ezra
Abbot. Boston:
G. H. Ellis, 1888)
Assim, a explicação da exceção é a
de que não se trata de uma “exceção” arbitrária, mas um caso especial em que o particípio
com artigo não é atributivo por causa da pausa sintática criada por τὸ κατὰ
σάρκα, da completude gramatical da frase anterior, e da função do trecho como
transição para uma fórmula de louvor. Abaixo apresento as traduções da Bíblia
que traduzem Romanos 9:5 como uma doxologia assindética:
New Life Version
— “Os primeiros pregadores vieram desta família. O próprio Cristo nasceu segundo
a carne desta família e Ele está acima de todas as coisas. Que Deus seja
honrado e agradecido para sempre. Que assim seja.”
The Riverside New
Testament — “e dos quais, por descendência física, veio o
Cristo. Deus, que é sobre todos, seja bendito por todas as eras! Amém.”
Revised Standard Version
— “e da sua raça, segundo a carne, é o Cristo. Deus, que é sobre todos, seja
bendito para sempre. Amém.”
New Revised Standard
Version — “e da sua raça, segundo a carne, é o Cristo. Deus,
que é sobre todos, seja bendito para sempre. Amém.”
The New English Bible
— “e deles, na descendência natural, procedeu o Messias. Que Deus, o supremo
sobre todos, seja bendito para sempre! Amém.”
Tradução do Novo Mundo
— “e de quem procedeu Cristo segundo a carne: Deus, que é sobre todos, seja
bendito para sempre. Amém.”
Today’s English Version
— “e Cristo, como ser humano, pertence à sua raça. Que Deus, que governa sobre todos,
seja louvado para sempre! Amém.”
The New American Bible
— “e deles veio o Messias (falo de suas origens humanas). Bendito para sempre
seja Deus, que é sobre todos! Amém.”
Bíblia Sagrada (Editora
Vozes) — “e deles é o Cristo segundo a carne. O Deus que
está acima de tudo seja bendito pelos séculos! Amém.”
Contemporary English
Version — “Eles têm aqueles famosos antepassados, que também
foram os antepassados de Cristo. Oro para que Deus, que governa sobre todos, seja
louvado para sempre! Amém.”
Parece-me, portanto, que tanto a
tradução de Romanos 9:5 como um aposto que qualifica Cristo como Deus quanto
como doxologia assindética aplicada a Deus o Pai são possíveis. Vamos supor, no
entanto, que Romanos 9:5 seja uma referência a Cristo, refutaria isso a minha
hipótese sobre o uso de Kyriós e Theós em Paulo? Bem, na verdade não.
Minha hipótese só precisaria ser qualificada para dizer que, salvo casos
excepcionais, Paulo entende Theós como
o título apropriado de Deus o Pai e Kyriós
como o título apropriado de Cristo.
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