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A HISTÓRIA DAS NAÇÕES RUDES - ADAM FERGUSON

 

Adam Ferguson foi um dos principais representantes do Iluminismo Escocês e destacou-se por sua original abordagem filosófica da história O objetivo deste texto consiste em apresentar a análise de Ferguson na parte II de seu Ensaio sobre a História da Sociedade Civil.  Ferguson apresenta uma visão da história que busca compreender o desenvolvimento das sociedades humanas a partir de suas origens mais simples. Sua análise parte das chamadas “nações rudes”, isto é, povos nômades, caçadores e pastores, e chega até as sociedades comerciais modernas, mostrando que mesmo as civilizações mais sofisticadas tiveram inícios frágeis e precários. Para ele, a história revela uma continuidade essencial entre os povos “selvagens” e os civilizados, negando a ideia de uma ruptura radical entre natureza e cultura.

Um ponto fundamental da filosofia da história de Ferguson é a compreensão da “naturalidade” das disposições humanas. Ele argumenta que características como amizade, coragem, eloquência e sociabilidade não são produtos artificiais de instituições ou invenções sociais, mas pertencem originalmente à espécie humana, inclusive em seus estágios mais rudimentares. Essa visão se opõe à concepção de natureza humana como um “estado” fixo de isolamento e miséria, sustentando antes que a “natureza” humana deve ser entendida como um estágio inicial e dinâmico do processo histórico, ao invés de “estado natural” faz mais sentido falar de um “estágio selvagem”. A sociabilidade, portanto, não é um produto cultural secundário, mas uma propriedade constitutiva da condição humana desde suas formas mais elementares. Como diz Ferguson:

“Visto que enfermidades, vícios e qualidades respeitáveis pertencem à espécie humana em seu mais rude estado, tudo indica que o gosto pela sociedade, pela amizade e pelo afeto público, a penetração, a eloquência e a coragem seriam propriedades originais e não efeitos subsequentes de um dispositivo ou invenção qualquer.” (p.145)

Essa leitura da história é sistematizada por Ferguson na chamada teoria dos quatro estágios, que descreve o desenvolvimento progressivo das sociedades humanas por meio de quatro formas predominantes de organização: caça, pastoralismo, agricultura e comércio. Os dois primeiros estágios, caçadores e pastores, são considerados “rudes”, marcados pela ausência de propriedade privada estabelecida e pela quase inexistência de divisão do trabalho. Já os estágios de agricultura e comércio correspondem à civilização, pois envolvem a institucionalização da propriedade, especialmente a propriedade hereditária da terra, e a consolidação de estruturas sociais complexas, como a desigualdade e a especialização produtiva. Como diz Ferguson:

“Parece bastante evidente que a propriedade é uma questão de progresso. Ela demanda, entre outras particularidades que são efeito do tempo, um método para definir o que é posse. O desejo mesmo por ela procede da experiência, e a indústria, graças à qual ela é obtida ou aprimorada, requer um hábito de agir tendo em vista objetos remotos que se imponham à tendência presente pela preguiça ou pelo divertimento. Esse hábito se adquire lentamente, sendo, na realidade, o principal fator a diferenciar as nações em que as artes mecânicas e comerciais se encontram em um estágio avançado de desenvolvimento.” (p.129)

Para Ferguson, a propriedade não é um direito originário, mas sim uma construção histórica resultante do progresso social. Ela exige critérios definidos de posse, hábitos laborais voltados para fins futuros e o desenvolvimento de instituições que sustentem sua continuidade. Como ele afirma, o desejo pela propriedade surge da experiência, e a indústria necessária para adquiri-la ou aprimorá-la requer uma mudança no comportamento humano, com a superação da preguiça e do imediatismo em favor de uma racionalidade orientada para o longo prazo. Essa transformação ocorre lentamente e constitui, para Ferguson, um dos principais fatores de distinção entre as sociedades rudes e aquelas onde as artes mecânicas e o comércio atingiram altos níveis de desenvolvimento.

 

I. O SELVAGEM COMO ESPELHO DA CIVILIZAÇÃO

 

            Na primeira seção da parte II de seu Ensaio sobre a História da Sociedade Civil, Adam Ferguson propõe uma reflexão sobre os estágios mais primitivos da humanidade com base nas informações extraídas da Antiguidade. Seu objetivo é descrever o estado mais rude da sociedade humana não a partir de construções idealizadas, nem de caricaturas degradantes, mas com base em registros históricos e etnográficos que fornecem uma visão mais equilibrada das primeiras formas de vida social.

Entre os povos analisados por Ferguson estão os iroqueses, nativos da América do Norte, que oferecem um exemplo emblemático daquilo que ele chama de “nações rudes”. O filósofo não se limita a destacar os defeitos dessas sociedades, como seria comum em autores de viés eurocêntrico ou iluminista radical. Ao contrário, ele reconhece uma complexidade moral e psíquica nos chamados "selvagens", notando que sua personalidade, ainda que não moldada por instituições políticas ou pela civilização, era profundamente marcada por intensidade, vaidade, coragem e espírito. Como escreve:

“Quem, por mera conjectura, suporia que o selvagem nu seria um trapaceiro e um jogador: que seria orgulhoso e vaidoso, sem distinção de título e fortuna? E que sua principal preocupação seria adornar sua pessoa e encontrar diversão... No entanto, ninguém seria tão ousado a ponto de afirmar que ele, da mesma forma, em qualquer caso, nos superaria em talentos e virtudes; que ele teria uma penetração, uma força de imaginação e elocução, um ardor de espírito, uma afeição e coragem que as artes, a disciplina e a política de poucas nações seriam capazes de aprimorar” (p.121).

Ferguson vê nesses relatos indícios de que os sentimentos morais, a inclinação à sociabilidade, e até certas virtudes cívicas e militares, não são produtos tardios da civilização, mas qualidades naturais da espécie humana, presentes já nos estágios mais rudimentares da organização social. As descrições que os romanos fazem de seus ancestrais confirmam essa tese: mesmo em contextos de extrema rusticidade, exaltam-se valores como o amor à pátria, o desprezo pelas riquezas materiais, e a resistência frente às adversidades. Nas palavras do autor:

“Os romanos, a quem devemos em especial os relatos sobre os nossos antepassados, reconheceram, na rusticidade de seus próprios ancestrais, um sistema de virtudes que talvez seja professado indistintamente por todas as nações simples: desprezo por riquezas, amor pela pátria, tenacidade para enfrentar dificuldades, perigos e fatigas” (p.124).

Para Ferguson, os relatos históricos mais fiéis à realidade humana primitiva são os da Antiguidade clássica, em especial dos gregos e romanos, que ainda sabiam reconhecer nos povos bárbaros ou estrangeiros uma expressão válida da condição humana. Ao contrário, os historiadores medievais, sobretudo os monges, não foram capazes de captar a riqueza do espírito humano em sua diversidade, limitando-se a cronologias e genealogias desprovidas de reflexão sobre as paixões e os costumes. A modernidade, por sua vez, corre o risco de perder o vínculo com o “gênio nacional”, isto é, com o espírito profundo que animava os povos antigos, ao adotar como referências tradições eruditas exóticas ou distantes.

Nesse sentido, Ferguson propõe que os povos modernos devem olhar para os chamados “selvagens” como um espelho de suas próprias origens. O que hoje se considera atraso ou barbarismo pode, na verdade, representar um estágio anterior da civilização, compartilhado por todos os povos em algum momento de sua história. Essa reflexão é expressa com clareza na seguinte passagem:

“Pode ser que os romanos tenham encontrado uma imagem dos seus ancestrais nas representações que fizeram dos nossos. E se algum dia um clã árabe se tornar uma nação civilizada ou uma nação americana se livrar do veneno inoculado pelos comerciantes da Europa, é possível que os relatos e as descrições de viajantes que temos sobre eles forneçam a esse povo a melhor explicação das suas origens. Na sua condição presente contemplamos, como se fosse num espelho, as feições dos nossos progenitores, e delas devemos extrair as nossas conclusões sobre a influência de situações nas quais, temos razão para acreditar, nossos pais foram postos.” (p.127)

Outro aspecto importante da análise de Ferguson é a crítica à visão moderna de nobreza e distinção social. No passado, até mesmo os mais nobres, como Lucrécia e Cincinato, mantinham hábitos rústicos e trabalho braçal, arando a terra ou servindo seus iguais. A distinção de classe não implicava luxo ou ostentação, mas antes a posse de virtudes cívicas e o compromisso com a comunidade. A verdadeira dignidade, portanto, não era incompatível com a simplicidade de vida, e a rusticidade podia conviver com a grandeza moral.

Por fim, Ferguson reconhece o valor das tradições míticas como fontes históricas indiretas. Embora fantasiosas, essas narrativas expressam o “gênio nacional” e ajudam a compreender a mentalidade das épocas que as criaram. O mito, nesse sentido, não é mera invenção, mas uma chave para acessar os valores e afetos de um povo em seus primeiros estágios históricos. Com essa abordagem, Adam Ferguson constrói uma filosofia da história que valoriza os estágios iniciais da vida humana não como meras fases inferiores, mas como momentos formativos da moralidade, da sociabilidade e das instituições futuras.

 

II. A VIDA DAS NAÇÕES RUDES ANTES DA PROPRIEDADE

 

            Na seção II da parte II do Ensaio sobre a História da Sociedade Civil, Adam Ferguson, através da análise de povos indígenas americanos, tribos africanas, asiáticas e europeias em estágios iniciais de desenvolvimento, busca compreender os fundamentos morais e sociais das comunidades humanas que ainda não haviam instituído plenamente a propriedade privada. Para ele, tais sociedades não devem ser lidas como meramente atrasadas, mas como expressões autênticas de um tipo particular de organização social, regida por princípios como a liberdade, a igualdade e a honra.

A subsistência nas nações rudes baseava-se principalmente na caça, pesca, coleta e, em alguns casos, em formas rudimentares de agricultura e pastoreio. A propriedade, nesses contextos, é quase inexistente no sentido moderno: embora utensílios e armas pertençam a indivíduos, os recursos fundamentais, como terras e alimentos, são partilhados em comum. Ferguson resume essa estrutura nos seguintes termos:

“Das nações que habitam essas ou outras partes menos cultivadas da Terra, algumas confiam, para a sua subsistência, principalmente na caça, na pesca ou em produtos naturais do solo; dão pouca atenção à propriedade e mal têm alguma subordinação ou governo. Outras, que tomaram posse dos frutos da terra e dependem do pasto para a provisão, sabem o que é ser pobre ou rico. [...] Essa distinção cria, necessariamente, uma substancial diferença de caráter e fornece dois títulos, sob os quais pode ser considerada a história humana em seu estado mais rude: o de selvagem, que não conhece ainda a propriedade, e o de bárbaro, para quem a propriedade, embora não seja garantida por leis, é um dos principais objetos de seu cuidado e desejo.” (pp.128-129)

Ferguson distingue, assim, dois grandes tipos de sociedades rudes: o selvagem, que vive em liberdade sem propriedade, e o bárbaro, que começa a organizar-se em torno da posse de bens e da estratificação social, ainda que sem leis formais. A forma de organização das sociedades selvagens é marcadamente comunitária. O campo pertence à tribo e tanto a produção quanto a divisão do trabalho seguem princípios coletivos. Homens caçam juntos, mulheres cultivam juntas. No entanto, a divisão sexual do trabalho é rígida e desigual: aos homens cabem as atividades ligadas à guerra e à política, enquanto as mulheres são relegadas às tarefas “sórdidas e mercenárias”, expressão que denota uma estrutura patriarcal profunda, ainda que não institucionalizada por hierarquias fixas.

Essa ausência de hierarquia estável é uma das marcas da liberdade nas nações rudes. A liderança é funcional e momentânea, baseada na excelência em tarefas específicas, como coragem na guerra, eloquência nos conselhos ou sabedoria em disputas. Fora desses contextos, o líder volta à condição de igual. As decisões são tomadas por meio de assembleias e conselhos, baseadas no consenso, na tradição oral e no respeito mútuo. A justiça, por sua vez, é comunitária e restaurativa: crimes como assassinatos não são punidos por um Estado, mas compensados por reparações simbólicas e acordos entre famílias, evitando ciclos de vingança por meio de mediação social e afetiva.

As estruturas políticas dessas comunidades são flexíveis e orgânicas. Famílias se reúnem em tribos, tribos formam cantões, e esses se aliam temporariamente para empreender ações comuns, como a defesa do território ou a guerra. Não há uma estrutura permanente de governo nem uma burocracia centralizada. A autoridade se dilui nos laços de parentesco, na honra pessoal e no prestígio social adquirido.

A honra, aliás, é uma das virtudes centrais nessas culturas. Ela não está associada ao poder ou à riqueza, mas à fortaleza, tanto física quanto moral. Curiosamente, valoriza-se mais a astúcia da emboscada do que a bravura em combate aberto. Morrer em batalha não é honroso; muito mais respeito é dado àquele que resiste à tortura com firmeza ou que adota um prisioneiro como parte da família, demonstrando grandeza de espírito. Isso revela uma ética complexa e refinada, mesmo em contextos sociais rudimentares.

 

III. ORGANIZAÇÃO DA PROPRIEDADE ENTRE OS POVOS BÁRBAROS

 

A partir do surgimento das primeiras impressões de propriedade e do interesse individual, Adam Ferguson descreve um momento decisivo na transição das nações rudes para formas mais próximas da sociedade civilizada. Segundo ele, “o gênero humano adquire indústria por muitos e lentos degraus” (p.149), indicando que o progresso humano não ocorre por saltos, mas por um acúmulo gradual de experiências e transformações nos costumes.

Esse progresso começa com a superação da aversão ao trabalho rotineiro, característica das sociedades mais simples. Ferguson observa que o ser humano, em sua forma rude, tende a evitar atividades desprovidas de emoção ou paixão. No entanto, o desejo de prover para os filhos e garantir estabilidade gera o impulso para acumular bens, produzir excedentes e buscar a posse da terra. Assim, a propriedade nasce não apenas da necessidade prática, mas também de um cuidado moral com o futuro e com a continuidade da linhagem familiar.

Nesse processo, a indústria, entendida como trabalho produtivo, metódico e orientado por metas, passa a ser cultivada. Ela não é espontânea, mas se desenvolve lentamente, à medida que os indivíduos aprendem a refrear impulsos imediatos e a medir seus atos em termos de interesse pessoal. O pastoreio e a agricultura tornam-se os pilares dessa nova fase, especialmente em regiões cujas condições de solo e clima favorecem essas práticas.

Apesar desses avanços, muitas marcas do estado rude persistem. O gosto pela guerra, a admiração pela força física e o desprezo pelas restrições permanecem como traços culturais significativos. Com a intensificação das desigualdades, os laços comunitários se enfraquecem, e o poder tende a se concentrar na figura dos chefes, geralmente os mais ricos, ou os mais hábeis em combate. Estes líderes deixam de ser apenas companheiros e se transformam em figuras veneradas, acumulando os despojos das guerras e transmitindo prestígio por herança.

A pilhagem, longe de ser vista como simples desordem, é descrita como um meio legítimo de sobrevivência e enriquecimento. Ferguson não hesita em lembrar que os próprios ancestrais dos europeus modernos vieram de tribos que invadiram o Império Romano e depois o Oriente, impulsionadas por esse espírito guerreiro e aventureiro.

Mesmo assim, em meio à rudeza, o autor identifica sinais promissores de organização política: conselhos tribais, amor pela igualdade e práticas de deliberação coletiva revelam um potencial para a formação de repúblicas rústicas. A resistência em instituir um magistrado único, ou seja, em aceitar uma autoridade permanente, mostra tanto a independência dos homens simples quanto o obstáculo à construção de estruturas mais centralizadas.

Com o tempo, a distinção de posses se converte na base de uma subordinação duradoura. A guerra, que antes era instável e desorganizada, fortalece a coesão entre grupos e prepara o terreno para a formação de Estados mais complexos. É nesse ponto que Ferguson observa o surgimento do despotismo, uma forma política que, para ele, representa uma traição à liberdade original, pois transforma o povo em propriedade do soberano.

Ainda assim, Ferguson rejeita a noção de que os tempos bárbaros foram miseráveis. Pelo contrário, afirma que havia neles segurança, honra, amizade e respeito mútuo. As pessoas e suas propriedades eram protegidas não por leis formais, mas por laços afetivos e morais Por fim, o autor sustenta que, apesar de imprudentes e sujeitos ao pânico, as nações rudes do Ocidente possuíam um espírito vigoroso, com potencial real para formar repúblicas livres e independentes, desde que encontrassem condições políticas e sociais favoráveis para isso.

REFERÊNCIA: 

FERGUSON, Adam. Ensaio sobre a história da sociedade civil / Instituições de filosofia moral / Adam Ferguson; traduzido por Pedro Paulo Pimenta, Eveline Campos Hauck. — São Paulo: Editora Unesp Digital, 2019.

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Bruno dos Santos Queiroz

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