O FEMINISMO NEGRO DE LÉLIA GONZALES
1. Introdução
O presente texto tem como tema central o pensamento de Lélia Gonzalez, intelectual, militante e feminista afro-latino-americana. Gonzalez dedicou-se intensamente tanto à produção acadêmica quanto à militância política, buscando sempre articular teoria e prática. Entre os conceitos centrais de sua análise destacam-se a amefricanidade, o racismo por denegação e as reflexões acerca do papel da mulher negra na sociedade brasileira, elementos que permeiam sua crítica social e política.
O
principal objetivo deste estudo consiste em discutir, a partir do pensamento de
Lélia Gonzalez, os seguintes temas centrais: a formação histórico-cultural do
Brasil e a categoria de amefricanidade, a noção de neurose cultural brasileira
e o racismo sob a perspectiva da psicanálise, bem como o mito da democracia
racial, suas origens, problemas e consequências para a sociedade brasileira. O
estudo parte, especialmente, de sua obra GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro,
Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan./jun. 1988.
O
texto é dividido nas seguintes partes:
2. Formação Histórico-Cultural do Brasil e
a Categoria de "Amefricanidade"
2.1.
Definição de "Amefricanidade"
2.2.
O Sujeito Negro e a Importância da Amefricanidade
3. A "Neurose Cultural"
Brasileira e o Racismo à Luz da Psicanálise
3.1.
Conceito de "Neurose Cultural"
3.2.
Psicanálise e Racismo
4. O Mito da Democracia Racial
4.1.
Definição e Origem do Mito
4.2.
Problemas e Consequências
5. Conclusão
2.
Formação histórico-cultural do Brasil e a categoria de
"amefricanidade"
2.1.
Definição de "amefricanidade"
A
"amefricanidade", ou "Améfrica Ladina", é um conceito
político-cultural desenvolvido por Lélia Gonzalez para reinterpretar a
identidade do Brasil e do continente americano: "Em contraposição aos
termos supracitados, eu proponho o de amefricanos ('Amefricans') para designar
a todos nós..." (p. 76). Esse termo foi criado como uma crítica à
denominação tradicional "América Latina", vista pela autora como eurocêntrica
e insuficiente para captar a complexidade das origens culturais da região. Para
Gonzalez, a identidade da América é essencialmente uma "América
Africana", e o uso da palavra "Ladina" funciona como um trocadilho,
remetendo ao "pretuguês" e ao caráter de astúcia dos escravizados
negros: "O Brasil (...) é uma América Africana cuja latinidade, por
inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sim, ter o seu nome assumido com
todas as letras: Améfrica Ladina..." (p. 69)
A amefricanidade é,
assim, uma categoria político-cultural cunhada por Lélia Gonzalez, que busca
resgatar a influência efetiva da formação histórico-cultural brasileira e
latino-americana, abarcando negros em diáspora e comunidades tradicionais
indígenas das Américas. Ela propõe um entendimento mais amplo da experiência
negra nas Américas, não se restringindo apenas à escravização, mas incluindo
também os povos indígenas que habitavam o continente antes da colonização.
A autora utiliza a noção
de amefricanidade como uma forma de tensionar a narrativa hegemônica da
constituição cultural do povo brasileiro e, consequentemente, sua identidade
nacional, que é vista como alicerçada na ideologia de branqueamento e na
democracia racial. O conceito busca confrontar a tentativa de estabelecimento
de uma identidade nacional brasileira a partir de processos homogeneizadores de
assimilação cultural, que suprimiram identidades negras e indígenas.
A ideia de amefricanidade
vai além das fronteiras do estado-nação, realocando as identidades negras e
indígenas em todo o continente americano. Ela é compreendida de maneira
imbricada à diáspora negra, que se manifesta em diferentes partes das Américas
através de culturas de resistência. Lélia Gonzalez também propõe o
"pretuguês" como a marca da africanização do português falado no Brasil,
evidenciando as trocas culturais e a agência dos sujeitos negros na formação da
língua brasileira. Ela argumenta que a oficialização do português como língua
brasileira significou o apagamento de diversas línguas africanas e indígenas. O
pretuguês é um lugar de luta, afirmação e resgate da contribuição negra e
indígena no país.
A ideia de criticar a
identificação de uma América Latina perpassa por compreender que a identidade
latino-americana possui um profundo alicerce colonial. Por América, se faz
referência ao colonizador italiano Américo Vespúcio enquanto o termo “latina” é
uma referência às línguas românicas. Em ambos os casos, enfatiza-se a origem
europeia da denominação dada ao continente.
Falar, por outro lado, de Améfrica é relembrar as raízes africanas de
nosso povo, enquanto o termo ladino evoca tanto a referência à escravização
quanto à resistência por meio da astúcia dos pretos diante da colonização.
O termo “Améfrica Ladina”
possibilita a recuperação da memória como resposta ao epistemicídio, isto é, ao
apagamento dos saberes negros e indígenas. O aniquilamento da memória é uma
estratégia eficaz do colonialismo para manter a submissão, daí a importância de
uma rememoração emancipatória. Trata-se, ainda, de resgatar nossa
ancestralidade, não só retomando a herança africana, mas também reconhecendo a
ancestralidade pindorâmica (indígena) nas Américas.
A amefricanidade é, dessa
forma, uma proposta como um caminho para uma reconfiguração ontológica de
sujeitos em Améfrica Ladina, ou seja, a reconstrução da existência e
subjetividade de indivíduos cuja identidade foi apagada pelo aniquilamento racial.
Isso implica em assumir a autoria das próprias narrativas e erguer a voz contra
o discurso universalista ocidental que apagou outros saberes (epistemicídio). É
necessário fazer irromper na lógica do discurso, os saberes subalternos,
reafirmando o lugar de fala de vozes anteriormente sujeitadas, fazendo-se
ouvir, não só o conhecimento hegemônico, mas também os dizeres que partem da
vivência de pessoas concretas.
A vivência apare,
portanto, como um ponto de partida epistemológico. A escrevivência se dá, nesse
contexto, como uma forma de fornecer uma cartografia da própria experiência em
que há espaço, no campo discursivo legítimo, para que o sujeito expresse suas
próprias dores e deslocamentos raciais para desenvolver sua reflexão. A
vivência torna-se parte indissociável do fazer acadêmico, rompendo com a
objetividade eurocêntrica, que tende a condenar o relato da subjetividade como
“experiência anedótica” a ser desconsiderada como sem validade. E, nesse
contexto, os textos de Lélia Gonzales podem ser vistos como uma forma de escrevivência.
A amefricanidade é, dessa
forma, uma ferramenta crítica que desafia a narrativa hegemônica da formação da
identidade nacional brasileira, que se baseia na ideologia do branqueamento e
na falácia da democracia racial. Ela denuncia o racismo disfarçado ("à
brasileira"), que, ao contrário do racismo aberto, nega sua existência,
mas opera na perpetuação da subordinação de pessoas negras e indígenas. Por
isso, a autora critica o mito da democracia racial, como presente em Gilberto
Freyre, em que se retrata a sociedade brasileira misceginada como diversa e
harmônica, o que tende a ocultar os conflitos profundos do tecido social
brasileiro.
A amefricanidade,
conforme proposto por Lélia Gonzalez, é, também, inerentemente interseccional,
abordando a experiência de sujeitos que não são apenas negros, mas também
mulheres e, frequentemente, de ascendência indígena. Enquanto o feminismo
branco tradicionalmente discursou e lutou pela emancipação da mulher pensada
como aquela que era dona de casa, mas agora pode adentrar o mercado de
trabalho, Gonzales nos faz pensar também da mulher da senzala, da mulher que é
empregada doméstica, da mulher que é babá, isto é, da mulher preta à custa da
qual, muitas das vezes, a emancipação da mulher branca foi conquistada.
Amefricanidade é, assim,
mais do que um conceito identitário, é uma proposta de (re)existência que
afirma os saberes subalternizados, reivindica o protagonismo das mulheres
negras e indígenas e propõe uma nova forma de ser-no-mundo, enraizada na
memória, na diversidade e na justiça histórica. Trata-se de um convite à
ruptura com as lógicas universalistas e excludentes, e à construção de um
pensamento verdadeiramente situado, plural e descolonizado.
2.2.
O sujeito negro e a importância da amefricanidade na construção do Brasil
É importante considerar que o sujeito “negro”, assim como o
“branco”, é uma construção moderna, engendrada no seio das relações de produção
do capitalismo mercantilista, com o propósito de estabelecer uma relação de
assimetria entre dois grupos sociais. A segmentação da sociedade em termos de
cor da pele e características fenotípicas negroides é, portanto, um fenômeno
contingente. Embora características fenotípicas sejam comumente tomadas como
elementos que diferenciam negros e brancos, é a relação social de opressão e
colonialismo que produz a segmentação entre essas categorias. Nesse sentido, a categoria “negro” não é um
dado fenotípico natural ou inquestionável, mas uma construção social engendrada
em discursos de dominação. A constituição social da categoria do sujeito negro
esteve vinculada a objetivos de colonização e exclusão: "Nesse contexto,
todos os brasileiros (e não apenas os 'pretos' e os 'pardos' do IBGE) são
ladinoamefricanos." (p. 69)
Assim, junto à noção de negritude, a amefricanidade é um conceito central no pensamento
de Lélia Gonzalez, revelando-se fundamental para compreender a formação histórica
e cultural do Brasil. A amefricanidade é a força que resgata a presença
africana como elemento constitutivo da identidade brasileira, contestando o
processo de “racismo por denegação” que nega essas raízes e invisibiliza essa
contribuição essencial. Assim, compreender o sujeito negro como uma construção
social não apenas denuncia a dimensão colonial do racismo, mas também reforça a
importância da amefricanidade para a reconstrução de uma identidade nacional
plural, que reconheça e valorize as influências africanas, indígenas e mestiças
no Brasil.
Dessa
forma, a crítica antirracista precisa problematizar a própria constituição das
categorias raciais, reconhecendo-as como produtos históricos e sociais que
refletem relações assimétricas de poder, e abraçar a amefricanidade como um
caminho para a afirmação da diversidade e o combate às estruturas de opressão
que ainda permeiam a sociedade brasileira:
Já na
época escravista, ela [a Amefricanidade] se fazia presente, na elaboração de
estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas
de organização social livre, cuja expressão concreta se encontra nos quilombos,
palenques, mocambos, maroon societies. (p. 79)
3. A "neurose cultural"
brasileira e o racismo à luz da psicanálise
3.1. Conceito de "neurose
cultural"
Para Lélia Gonzalez, a
"neurose cultural" brasileira é uma condição coletiva em que a
sociedade, de forma inconsciente, nega suas origens africanas e indígenas. Essa
negação se manifesta como um sintoma cultural, refletido no racismo "à
brasileira". Assim, a sociedade sofre de uma espécie de falha identitária,
preferindo reprimir sua herança negra e indígena e idealizar uma brancura que,
na prática, não lhe pertence.
3.2. Uso dos conceitos
psicanalíticos para explicar o racismo
Gonzalez recorre a conceitos da
psicanálise, especialmente dos pensadores Sigmund Freud e Jacques Lacan, para
explicar a sutileza e dissimulação do racismo no Brasil. Ao invés de tratá-lo
somente como uma prática social visível e explícita, ela o interpreta como um
fenômeno que opera no inconsciente cultural coletivo. A psicanálise possibilita
demonstrar como o racismo foi internalizado, perpetuando-se por meio de
mecanismos de defesa coletiva, o que dificulta sua identificação e combate.
3.3. Exemplificação de um
conceito psicanalítico (negação)
Um conceito fundamental
utilizado por Gonzáles a partir da psicanálise freudo-lacaniana é a
“denegação”: "O racismo disfarçado ou, como eu o classifico, o racismo por
denegação." (p. 72). A denegação, na psicanálise, pode ter dois sentidos:
(i) denegação neurótica (Verneinung): consiste em um mecanismo de
defesa neurótico pelo qual o sujeito rejeita conscientemente um pensamento ou
fato, apesar de, no inconsciente, reconhecê-lo; (ii) denegação perversa (Verleugnung):
consiste no mecanismo básico da perversão em que em que o sujeito, ao
reconhecer a castração simbólica, desloca sua representação para outro objeto,
afirmando inconscientemente sua existência no fenômeno do “aceita para
desmentir” (annehmen um zu verleugnen),
que consiste em aceitar para negar inconscientemente essa realidade.
Provavelmente,
Lélia Gonzalez utiliza o termo no sentido da denegação neurótica, já que se
refere ao verbete sobre Verneinung em
La Planche para definir o conceito. Trata-se de um caso semelhante ao de um
homossexual reprimido que, ao ser questionado por elogiar alguém do mesmo sexo,
insiste em negar: “Eu acho ele bonito, mas eu não sou gay”. Nesse exemplo, há
reconhecimento implícito e negação explícita, o que mantém o conflito psíquico.
De modo análogo, o racismo por denegação mantém a tensão entre o reconhecimento
da cultura negra e a negação da igualdade social e do protagonismo dos negros.
No entanto, os
comentadores de Lélia Gonzáles, contudo, perceberam que a denegação perversa pode
ilustrar de modo ainda mais patente o tipo de racismo existente no Brasil. De
forma análoga ao mecanismo psicanalítico do desmentido (Verleugnung), o racismo
por denegação opera-se quando a sociedade brasileira reconhece e usufrui de
elementos da cultura negra, mas nega simultaneamente o racismo estrutural que
mantém a desigualdade e a exclusão social dos negros. Nesse processo, a
valorização fetichista da “bunda da mulher
negra” substitui o reconhecimento verdadeiro do racismo, assim como o fetiche
perverso é uma forma de desmentir a castração simbólica:
A
bunda (...), objeto parcial por excelência da nossa cultura... Recorrendo ao 'Aurélio',
pode-se constatar que essa palavra inscreve-se no vocabulário de uma língua
africana, o quimbundo (mbunda), que muito influenciou os nossos falares... Pelo
menos no que se refere ao Brasil, que se atente não só para toda uma literatura
(Jorge Amado, por exemplo) como para as manifestações das fantasias sexuais
brasileiras. Elas se concentram no objeto parcial por excelência da nossa
cultura: a bunda. (pp. 70-71)
4. O mito da democracia racial
4.1. Definição e origem do mito
O
"mito da democracia racial" é uma ideologia que, segundo Lélia
Gonzalez, oculta o racismo estrutural presente na sociedade brasileira. Essa
crença sustenta que, devido à miscigenação e à suposta convivência harmoniosa
entre as raças, o preconceito racial não existiria no Brasil. O mito foi
popularizado por intelectuais como Gilberto Freyre na década de 1930, que postulavam
que a mistura racial teria gerado um país fraterno e livre de barreiras
raciais. No entanto, essa construção ideológica, embora negue a existência do
racismo, acaba por legitimar a desigualdade e a invisibilidade da população
negra no país: "O racismo 'à brasileira' se volta justamente contra
aqueles que são o testemunho vivo da mesma (os negros), ao mesmo tempo que diz
não o fazer ('democracia racial' brasileira)." (p. 69)
4.2. Problemas e consequências do
mito da democracia racial
Lélia Gonzalez argumenta que,
longe de simbolizar harmonia, a miscigenação foi em grande parte fruto da
violência sexual contra mulheres negras e indígenas. A romantização desse
processo esconde uma história marcada por estupros e exploração sexual que
fundamentaram a formação da sociedade brasileira. Ao propagar a ideia de um
"paraíso racial", o mito da democracia racial impede o debate e o
combate efetivo às desigualdades e ao racismo.
Além disso, a autora destaca que
o mito, ao universalizar os valores da cultura ocidental, nega a herança e a
contribuição da cultura negra, relegando-a a um papel secundário ou a mero
"folclore". Essa ideologia promove o apagamento da população negra,
seja pela miscigenação compulsória, pelo assassinato de homens negros e
indígenas ou pelo incentivo à migração de brancos. Como resultado, o racismo à
brasileira torna-se uma "neurose cultural", na qual a sociedade nega
sua própria negritude e finge não ser racista.
Historicamente,
a presença parda na sociedade brasileira está ligada a esse processo de
miscigenação cuja origem não foi consensual, mas marcada pela violência sexual
de senhores brancos contra mulheres negras escravizadas. Embora não sofram, em
regra, os mesmos níveis de discriminação que pessoas negras retintas, pardos
também herdam desigualdades estruturais enraizadas no período escravista. A
própria política de embranquecimento, implementada no pós-abolição, estimulou a
formação de uma população miscigenada, vista como etapa intermediária rumo ao
ideal de “clareamento” racial. Assim, a identidade parda carrega uma dupla
herança: a violência sexual como instrumento de dominação e a exclusão racial,
ainda que em gradações distintas da vivida pelos negros de pele mais escura: "Uma
ideologia de libertação deve encontrar sua experiência em nós mesmos; ela não
pode ser externa ao nós e imposta por outros que não os próprios; deve ser
derivada da nossa experiência histórica e cultural particular." (p. 78)
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