Psicologia do Sobrenatural

 

       Este texto tem como objetivo  considerar uma psicologia do sobrenatural, que consiste em mostrar como alguns fenômenos tidos como sobrenaturais podem ser apenas fenômenos psicólogicos. É importante, contudo, fazer uma ressalva. Este texto não pretende negar a existência de fenômenos sobrenaturais. A possibilidade de eventos sobrenaturais é uma discussão de metafísica, não de psicologia. Do ponto de vista filosófico, não é possível descartar a priori a existência de eventos miraculosos, por exemplo. Alguns argumentaram que leis naturais são invioláveis, mas não é certo que isso seja assim, nem que eventos sobrenaturais tenham de necessariamente ser entendidos como violações de leis naturais. Talvez um milagre ocorra, por exemplo, quando uma agente sobrenatural age como uma causa adicional às causas naturais, ao invés de uma causa transgressora das leis naturais. Além do mais, leis naturais não são imutáveis como as leis da lógica.

       Outros argumentaram que, embora fenômenos sobrenaturais sejam metafisicamente possíveis, o testemunho a favor de um milagre nunca é digno de crédito. Hume é conhecido por seu argumento contrário à crença em milagres visto que o testemunho a favor de um milagre nunca pode ser maior do que as evidências científicas acumuladas a favor da uniformidade das leis naturais. Esse raciocínio pode ser abalado quando consideramos uma meta-indução pessimista que nos faz lembrar do caráter temporário e incerto das teorias científicas. Além disso, se as evidências a favor de um testemunho miraculoso forem muito robustas e avassaladoras, então crer nesse testemunho parece ser o que uma pessoa sábia faria.

       No entanto, Hume nos ajuda a olhar com um certo ceticismo em relação a alegações de milagres. Talvez seja mais correto dizer que uma pessoa sábia só aceita como sobrenatural um evento após analisar seriamente as evidências a favor e contra ele, bem como as possibilidades de outras interpretações naturais para esse fenômeno. Parece-me que há muito mais alegações de fenômenos sobrenaturais do que fenômenos sobrenaturais reais. Todos os dias milhares de pessoas recorrem a cartas para ler o futuro, consultam os mortos por meio de médiuns, assistem a práticas paranormais, veem fantasmas, têm sonhos proféticos e buscam a ajuda de astrólogos. Parece-me que a maior parte desse tipo de coisas se encaixe muito mais em um pensamento supersticioso do que como exemplos genuínos do sobrenatural.

        Consultas sobre o futuro, por exemplo, é algo que pode gerar ansiedades, funcionar como gatilhos e levar pessoas a tomar decisões ruins sobre assuntos muito importantes da suas vidas. Com base, por exemplo, em uma sinastria, alguém pode decidir não engajar em um namoro ou terminar um relacionamento. A fim de não se responsabilizar por suas próprias escolhas ou a fim de não lidar com suas ansiedades, alguém pode confiar suas decisões ao que vê nas cartas do tarot. Ao presenciar supostos milagres, alguém pode acabar acreditando em um líder perverso de uma seita. A psicologia pode nos ajudar a manter um ceticismo saudável diante de fenômenos desse tipo.

        Diante disso, é importante mencionar alguns viéses ou fenômenos psicólogicos que levam as pessoas a ver como sobrenatural eventos que não são necessariamente sobrenaturais:


1 PROFECIA AUTORREALIZADORA: ocorre quando a gente pensa que algo vai acontecer e inconscientemente começamos a agir para que isso aconteça. Por exemplo, uma pessoa que recebe uma profecia de que vai passar numa prova pode inconscientemente agir para que isso se torne realidade, como estudando mais para a prova. Se uma pessoa lê em uma carta do tarô que irá encontrar um namorado, ela pode inconscientemente agir para encontrar um, como tendo mais encontros. Se uma pessoa lê no horóscopo que seu dia será ruim, essa pessoa tenderá a se concentrar mais nas coisas negativas de seu dia. Assim, boa parte das profecias são as próprias causadoras de seu cumprimento. A profecia encarrega de tornar aquilo que ela prevê uma realidade. É preocupante quando uma profecia autorrealizadora ativa mecanismos de autossabotagem. Suponhamos que um vidente diga a uma pessoa que ela irá se separar do marido, a partir dessa profecia uma pessoa pode acabar sabotando o seu próprio relacionamento. Daí a importância de termos em mente que tentar prever o futuro pode tomar formas psicólogicas danosas. Muito mais saudável é lidar com nossas próprias ansiedades. Por vezes queremos ter garantias de como será nosso futuro, mas o futuro é mesmo incerto e é uma construção. Viver é fazer certas apostas sem ter certezas do que o futuro nos reserva.


2 INTUIÇÃO HEURÍSTICA: existem vários estímulos que são processados por nós em nível inconsciente e nossa mente pode tirar conclusões a partir desses estímulos sem que saibamos como chegamos a essas conclusões. Exemplo, um bombeiro pode dizer “senti que a casa vai pegar fogo”. Caso se pergunte ao bombeiro como ele sabe disso, ele vai dizer “não sei, só senti”. Pode ser que na verdade o bombeiro por já trabalhar há muito tempo em incêndios seja capaz de perceber inconscientemente sinais de um incêndio que uma outra pessoa não perceberia, como algum gás vazando. Outro exemplo de intuição heurística ocorre quando uma pessoa sente que sabe que uma pessoa passou por um divórcio recente, mas essa informação foi inconscientemente assimilada quando, por exemplo, um vidente percebeu que há uma marca de sol de anel de aliança no dedo da pessoa. O fato de uma pessoa ter calos nas mãos pode indicar que ela trabalha com algo manual enquanto uma pessoa ter as unhas bem pintadas e trabalhadas pode indicar que ela trabalha com algo que não danifica tanto a mão, como ser secretária, pesquisadora ou atender em telemarketing. O fato de uma pessoa ter a pele queimada do sol pode indicar que ela trabalha no campo. Muita coisa podemos saber por esse tipo de assimilação inconsciente, até de forma surpreendente, como por ter chegado aos nossos ouvidos informações de conversas que não estávamos conscientes ou prestando atenção. Nossa mente consegue sozinha tirar conclusões de informações das quais não estamos conscientes. Assim, uma pessoa pode chegar a uma conclusão correta sem saber que passos sua mente tomou para chegar a essa conclusão. Que ela acertou a conclusão pode parecer surpreendente já que não sabe como chegou a ela.


3 SONHO COMO ENSAIO: nossos sonhos podem ser formas da nossa mente ensaiar como reagir em situações prováveis de acontecer. Assim, nossa mente pode criar cenários em sonhos a partir do mais provável de ocorrer tomando como base estímulos e padrões que nossa mente identifica inconscientemente. Então, seria natural que um sonho antecipasse um acontecimento. Pense o seguinte, nós temos cerca de quatro sonhos por noite. Existem bilhões de pessoas no mundo todas elas tendo 4 sonhos toda noite, uma pessoa pode ter cerca de 100 mil sonhos durante uma vida. Se esse é o caso todo ano temos bilhões de sonhos, isso significa que os sonhos caem na lei dos grandes números. Há tantos sonhos acontecendo que coincidências curiosas e impressionantes podem ocorrer. É como pensar em uma pessoa ganhar na Mega-Sena, é algo raro, mas dado que milhares de pessoas apostam, ou seja, há um grande número de apostadores, alguém irá ganhar. Além disso, o nosso próprio modo de lembrar sonhos faz eles parecerem predições. Geralmente não lembramos a maior parte do que sonhamos. Tendemos a lembrar de um sonho quando um evento do dia funciona como um gatilho para nossa memória. Assim, se sonhamos com um sapo, tendemos a lembrar desse sonho se vermos um sapo durante o dia após o sonho. Se sonhamos com um acidente de carro, tendemos a lembrar desse sonho ao ver a notícia de um acidente de carro na TV. Aqueles sonhos que não se conectam a algo do nosso dia tendemos simplesmente a esquecer. Isso faz com que grande parte dos nossos sonhos pareça uma previsão, porque é justamente quando um sonho bate com algo que ocorre no nosso dia que tendemos a lembrá-lo. Além disso, tendemos a manipular inconscientemente a memória do nosso sonho, reinterpretando-a de modo a se encaixar melhor em um evento que acreditamos ser uma previsão e ignoramos aquelas partes do sonho que não se adequam ao que acreditamos que ele previu.


4 FILTRO MENTAL: a gente costuma ignorar informações que contradizem nossas conclusões. Assim, por exemplo, uma pessoa pode achar que há algo de especial em alguém ligar para ela quando ela estava pensando na pessoa que ligou. No entanto, ela ignora todas as vezes que uma pessoa ligou e ela não estava pensando nela e ignora também todas as vezes que ela estava pensando em alguém e essa pessoa não ligou. Ao receber uma descrição do seu mapa astral, a pessoa pode ter entrado em contato com diversas informações sobre sua personalidade. Um mapa astral analisa uma quantidade quase infindável de aspectos, há diversos planetas, existem os decanatos, os trígonos, as quadraturas, o ascendente, o meio do céu etc. São tantos aspectos que uma pessoa ao receber um mapa completo, entrará em contato com uma lista enorme que pretende descrever sua personalidade. Nessa lista, a pessoa pode encontrar diversas informações que batem mais ou menos com seu jeito de ser. Aquelas que batem, podem parecer surpreendentes enquanto a pessoa tenderá a ignorar aquelas descrições que não combinam tanto com ela.


5 IDENTIFICAÇÃO DE PADRÕES: nossa mente tende a ver padrões e conexões onde eles não existem. Então muito das coincidências são só nossa mente querendo achar padrões porque nossa ela não suporta a ideia de dados isolados sem conexão. Por exemplo, existe a pareidolia que nos faz ver rostos onde eles não existem. Também podemos encontrar conexões entre eventos que não tem nenhuma relação causal entre si. Como mostrou os estudos da Gestalt, automaticamente nossa percepção busca dar sentido aos dados que recebe. Muitas das conexões que vemos são como ilusões de óticas que mesmo que saibamos que são ilusão ainda assim insistem em parecer reais. Podemos, assim, estabelecer conexões entre dois eventos que não estão realmente conectados. Posso achar que se tive uma semana de azar foi porque quebrei um espelho ou passei debaixo de uma escada. Depois de fazer um trabalho de amarração na quimbanda, alguém pode interpretar que o fato de sua ex ter voltado com ele foi causado por esse trabalho. Uma pessoa pode achar que sua oração foi a causa de ter alcançado o que pediu ou que o motivo de estar enfrentando uma crise financeira é resultado de não ter pagado o dízimo para a igreja. Alguém também pode pensar que a razão pela qual foi curado de uma doença foi o ritual de uma benzedeira ou de um curandeiro, quando na verdade sua cura é melhor explicada por razões naturais.


6 EFEITO FORER: Ocorre quando uma informação vaga é ouvida como se fosse uma informação específica impressionante. É o caso de expressões como “você está vivendo um momento em que precisa tomar uma decisão importante sobre algo que está inseguro”, “você está vivenciando um conflito interno que tem te preocupado muito”, “você é uma pessoa mais introvertida quando está com pessoas que não conhece, mas é mais extrovertida quando está com pessoas que você já conhece”, “você tem algumas ideias e pensamentos brilhantes, mas às vezes acaba não os expressando com medo do que as pessoas possam achar”, “alguns planos seus não vão para frente porque você ainda não fechou alguns ciclos”, “você tem uma cicatriz no joelho esquerdo” etc. Geralmente essas informações vagas são tidas como impressionantes porque o que a pessoa ouve é algo específico sobre a vida dela. Assim, quando um vidente fala “você precisa fechar ciclos do passado para se abrir a novas possibilidades”, alguém pode ouvir isso como “verdade, eu preciso superar meu ex para que meu novo namoro dê certo”,  e tal leitura, que inicialmente era vaga, é recebida como impressionante. O problema é que à medida em que uma pessoa balança a cabeça e manifesta concordância com essas falas, um vidente, por exemplo, com boa intuição saberá tornar essas afirmações ainda mais específicas e impressionantes, o que chamamos de leitura fria. Ele poderá “jogar verdes”, arriscando declarações mais específicas e mesmo que erre poderá contornar o erro. Por exemplo, um vidente, ao ver que uma pessoa tem a pele queimada do sol, pode concluir que ela trabalha no campo e assim jogar o verde “estou vendo você em um campo”, caso a pessoa mostre discordância no olhar ou no mover da cabeça, bastará metaforizar a declaração: “este campo simboliza a vida e é como se você se sentisse perdido em um campo”.


7 DESASSOCIAÇÃO NÃO-PATOLÓGICA: a desassociação é um fenômeno comum no Transtorno de Múltiplas Personalidades, em que uma persona (um personagem) assume o lugar do ego consciente. Esse transtorno é de difícil compreensão e gera polêmicas na literatura. Há estudos que indicam casos em que uma personalidade pode alterar até mesmos os estados fisiológicos de uma pessoa. Assim, quando uma personalidade com diabetes assume o controle da mente de uma pessoa, sua glicose no sangue pode aumentar. O sonho de uma pessoa com esse transtorno pode ser um cenário em que cada personalidade exerce um papel e ao acordar cada pessoa conta o sonho a partir da perspectiva que ocupava no sonho. Mas a desassociação pode ocorrer de forma não-patológica, em alguns casos, como no teatro, um ator pode incorporar de tal forma um personagem que pode entrar em um estado de desassociação. Uma pessoa em uma igreja neopentecostal pode ter assimilado características do “personagem do demônio” (como falar com voz rouca e de maneira curvada) e em um estado hipnótico ou alterado da consciência reproduz características desse personagem. Esse tipo de desassociação pode explicar talvez pelo menos alguns casos de mediunidade, especialmente quando consideramos a incorporação de “personagens” com características esteriotipadas, como é o caso de “preto-velhos”, “pomba-giras” etc. Quando sonhamos, nosso mente é capaz de criar e interpretar personagens, formando cenários, falas e movimentos para eles. Assim, na desassociação ocorre algo semelhante a esse fenômeno onírico, mas enquanto estamos acordados. Isso não significa que não existam incorporações genuínas, mas devemos sempre considerar a possibilidade de explicação psicólogica desses fenômenos. É importante frisar o termo “não-patológica” , esse tipo de desassociação é análogo ao que ocorre no transtorno desassociativo de identidade, mas não é algo psicopatológico nem é um sintoma de que a pessoa tenha algum transtorno. Se uma desassociação ocorre em contextos religiosos apenas ou no teatro sem alterar a condição psicológica normal da pessoa no cotidiano, não se trata de um transtorno.

8 AÇÃO IDEOMOTORA: Somos capazes de agir sem estar conscientes do que estamos fazendo. Nossa mente é capaz de fazer coisas como escrever, mover mesas e desenhar mesmo sem estarmos conscientes disso. Um exemplo disso é o fenômeno chamando escrita automática, que ocorre quando produzimos um texto sem estarmos conscientes do que estamos escrevendo. Supostos livros ditados por espíritos e cartas psicografadas são explicados por esse fenômeno. Outro caso comum ocorre quando mesas ou copos são movidas por supostos espíritos quando na verdade são as próprias pessoas que estão inconscientemente movendo a mesa ou o copo. Como fazem isso de modo automático e inconsciente, as pessoas atribuem ao sobrenatural algo que elas mesmas são as causas. Nesse contexto da relação de como a mente controla o nosso corpo mesmo quando estamos inconscientes, é importante lembrar que nosso próprio corpo vivido é uma construção de nossa mente. Nossa mente usa informações vindas dos sentidos e de nosso senso de espaço para criar uma imagem de onde estamos localizados e de nossa própria representação corporal. Quando algo falha nesse tipo de construção de imagem corporal ou quando estamos em um estado alterado da consciência, podemos ter aquelas curiosas experiência de que estamos fora do nosso corpo, flutuando sobre nosso corpo e fazendo viagens sobre os cômodos de nosso casa ou os corredores de um hospital. Certamente a relação entre nossa mente e o nosso corpo é uma das questões mais complexas e intrigantes da filosofia e é importante ter em mente que nosso corpo pode ter ações mesmo quando estamos inconscientes delas e que o que vemos como nosso corpo localizado em um lugar e habitado por nós é uma representação construída pela nossa mente. A ação ideomotora também está por trás de supostas pessoas capazes de ler a mente. Quando pensamos em algo, fazemos com que a parte do corpo relacionada a esse pensamento seja automaticamente e inconscientemente ativada. Ao recitar um poema mentalmente nossa língua pode se mover levemente, ao imaginar uma cena nossos olhos se movem etc. Muitos mágicos conseguem descobrir onde uma pessoa escondeu um objeto por sentir a tensão em sua mão a direcionar o mágico inconscientemente para onde o objeto está. Nós somos mentes corporificadas e expressamos no corpo os nossos pensamentos.

         Outros fenômenos psicólogicos poderiam ter sido mencionados para mostrar nossa tendência em acreditar como sobrenaturais coisas que na verdade não o são. Todos temos nossos viéses de confirmação, nossas memórias falsas, viéses de autosserviço, a tendência de aceitarmos facilmente certas bajulações e nosso condicionamento ao comportamento e crenças supersticiosas. Nada nesse texto tem como objetivo negar que possa haver fenômeno sobrenaturais e milagres genuínos, mas devemos ser criteriosos antes de assumir a sobrenaturalidade de um fenômeno que a princípio não conseguimos explicar. Boa parte das pessoas fazem uso de técnicas psicólogicas que partem de mexer com esses viéses psicólogicos, embora muitos o fazem de modo inconsciente e acreditaram com sinceridade no caráter sobrenatural do que fazem. Outros, no entanto, conhecem bem essas técnicas e viéses, usando-os de modo intencional para enganar as pessoas. Esses últimos são os que denominamos como charlatões. Para quem quiser se aprofundar nesse assunto poderá ler o livro Paranormalidade: por que vemos o que não existe, do professor Richard Wiseman.


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