BREVES REFLEXÕES EM BIOÉTICA



       O objetivo deste texto consiste em trazer algumas breves reflexões em bioética. Bioética é a área da Ética que discute sobre a moral envolvida em questões de vida e morte. Isso envolve questões como aborto, eutanásia voluntária/suicídio assistido e consumo de carne (morte de animais não-humanos para alimentação). Partindo do pressuposto de que a ética é objetiva, este texto pretende trazer algumas reflexões sobre certo e errado nessa área, sem pretender ser dogmático ou definitivo.


I. A QUESTÃO DO ABORTO


       Um argumento tradicional contra o aborto parte do príncipio de que o feto já é uma alma humana ou pessoa humana desde a concepção de modo que matá-lo violaria sua dignidade. Esse argumento geralmente adota a definição de pessoa enquanto uma substância racional (definição boeciana de pessoa) e assume a teoria da animação imediata, segundo o qual o feto é animado com uma alma racional de uma só vez no momento da concepção. O argumento mais comum contra o aborto é:

(1) O feto, desde a concepção, é uma pessoa no sentido de um substância racional.

(2) Matar uma pessoa (substância racional) inocente é sempre errado.

(3) Logo, é errado matar o feto (abortar).

       Pode-me questionar a segurança ou certeza das duas premissas.

       A primeira premissa não é certa porque é possível que o feto não seja uma substância racional desde a concepção se houver uma forma de defender uma animação tardia (ou seja, que a alma racional é infundida ou formada no feto em algum momento após a concepção). Isso demandaria uma teoria revisada da animação mediata para conciliar com a biologia moderna, mas desde que é uma possibilidade tentar formular uma teoria de animação tardia, a premissa 1 não é certa já que não podemos saber com certeza se o feto é uma substância racional desde a concepção. Inclusive, um desafio à teoria de que o feto é desde a concepção uma alma racional é o próprio caso de gêmeos, seria estranho um embrião já ter uma alma e depois se dividir e formar gêmeos.

       Uma teoria da animação mediata precisa lidar com as dificuldades de conciliação com a biologia moderna. Além disso, existe duas formas de animação tardia: (i) animação em etapas: que é dizer que primeiro se forma a alma vegetativa, depois a animal e depois é infundida a racional; (ii) animação tardia simples: o feto não tem alma em nenhum sentido a não ser que a recebe em um estágio avançado da gestação.

       Geralmente os desafios da animação tardia consistem em: (i) explicar o intervalo de descontinuidade: como um organismo humano gera um organismo não-humano que depois se torna humano – então é preciso explicar esse intervalo de “não-humanidade” (aqui eu acho que o criacionismo – teoria de que a alma é infundida e não gerada a partir dos gametas dos pais - pode lidar com isso mais fácil, porque a alma é criada diretamente por Deus e infundida no corpo – a posição oposta é chamada de traducionismo); (ii) problema da predisposição formativa: é preciso explicar como um organismo não-humano já está predisposto a se formar como humano sem que a forma humana esteja presente desde o princípio. Os que defendiam animação tardia no passado diziam que o sêmen tem uma potência formativa (vis formativa) que permitia esse predisposto. Fico pensando se na biologia moderna o DNA poderia cumprir essa função. Qualquer teoria sobre animação tardia precisa, pois, de reformulação, porque a teoria de animação mediata tradicional se dava em termos de uma biologia ultrapassada.

      A segunda premissa também não parece certa. Talvez haja casos em que matar um ser humano racional inocente seja moralmente permissível e que essa regra não seja absoluta. Um possível caso é o da eutanásia no caso de pacientes em sofrimento insuportável e irreversível, como irei defender a seguir. É estranho defender que a eutanásia é errada em casos em que uma pessoa tem uma doença que não tem cura e que lhe coloca em uma agonia insuportável. Se esse for o caso, isso significa que a regra sobre não matar uma pessoa inocente não é absoluta e pode admitir exceções, daí poderia haver casos de aborto que preencham certos critérios de exceção dependendo de outros valores que entrarem em conflito. Mas o que importa é só dizer que a regra sobre não matar um ser humano racional inocente ser absoluta ou sem exceções é algo questionável.

       Ao falar da alma, eu tomei aqui como pressuposto a teoria hielomorfista, mas mesmo ela podia ser toda questionada. Mas a teoria heielomorfista é compatível com a animação mediata ou tardia, inclusive a animação tardia era a doutrina padrão. Com a biologia moderna, a animação mediata foi colocada em dúvida pela dificuldade de explicar a quebra de continuidade entre um organismo humano gerar um organismo não-humano que depois se torna humano. E o problema de explicar como o feto pode estar predisposto a se formar como um humano sem possuir forma humana desde o começo. Mas eu acho que essas são dificuldades que uma teoria de animação tardia enfrentaria. Mas uma reformulação da teoria ou uma revisão para acomodá-la à biologia moderna é possível a meu ver. O fato é que não me parece ser possível ser categórico ou definitivo sobre quando o feto passa a ter uma alma racional, mesmo assumindo o hielomorfismo.

       Uma discussão importante também é sobre qual a extensão do direito à vida. Essa é uma discussão diferente do debate sobre quando o feto passa a ter uma alma. Trata-se, na verdade, de um debate sobre quando o Estado e a sociedade têm o dever legal de conferir o direito à vida a uma pessoa. A posição que me atrai é que por direito à vida devemos entender “direito à vida de seres racionais conscientes”, o que significa que a extensão desse direito começa quando a pessoa se torna um ser consciente pela primeira vez até o momento que ela deixa de ser consciente para sempre (quando sofre morte cortical – que é quando se desliga aparelhos no hospital, por exemplo). Essa teoria atribui um valor especial à consciência no debate sobre o direito à vida e dignidade humana.

        Uma boa teoria sobre a moralidade do aborto evitaria respostas simplistas tais como “o aborto é sempre errado” ou “o aborto é sempre permissível”. Ao invés disso, me parece mais adequado encontrar critérios que definam em que contextos o aborto é moralmente permissível e quais contextos não. O argumento de algumas feministas de que a autonomia da mulher deve sempre prevalecer me parece incorreto. Em um assunto tão sério moralmente, seria imprudente afirmar que qualquer motivo que uma mulher tenha para abortar é uma razão suficiente para isso. Se o aborto for permissível o será só quando a mulher tiver razões morais decisivas e justificadas para tal.

       Assim, proponho os seguintes critérios:

     O aborto é moralmente permissível se e somente se preenche todas as seguintes características:

(1) é precoce, ou seja, acontece nos estágios iniciais da gestação, de preferência quando ainda não ocorreu uma individuação do embrião (duas semanas de gestação) ou o quanto antes possível (já que quanto mais tardio maior a chance de o feto já ter se desenvolvido a ponto de ser uma pessoa racional, se adotarmos o gradualismo ou uma animação mediata). É completamente condenável o aborto tardio (parece seguro estabelecer o primeiro trimestre de gestação como limite).

(2) o interesse da mãe em não prosseguir a gestação é suficientemente forte, razoável e justificável para se sobrepor a qualquer razão em manter a gestação (exemplo: quando manter a gestação implica problemas graves de saúde ou problemas psicológicos graves para a mãe); ou se o feto possui uma doença incompatível com a vida (exemplo: anencefalia) e, preferencialmente, se a mãe, ao poder abortá-lo precocemente pelas razões acima, pode tentar uma nova gestação livre desses problemas. É completamente condenável o aborto que não é feito com base em boas razões, ou seja, não é moralmente permissível que se aborte simplesmente porque não se quer continuar a gestação.

(3) O aborto pode ser realizado em condições seguras, por meio de um procedimento confortável e que não apresente perigo;

(4) A decisão para o aborto foi realizada de modo livre, esclarecido e bem informado, de preferência de modo assistido e com suporte crítico de uma equipe profissional de saúde, tendo sido consideradas seriamente outras alternativas.

 

II. EUTANÁSIA VOLUNTÁRIA / SUICÍDIO ASSISTIDO


       Dada a proximidade entre eutanásia voluntária e o suicídio assistido tratarei os dois como relacionados. Aqui devemos supor que o direito à vida é fundamental, mas não absoluto. Em Ética, sabemos que em certos contextos um princípio pode se sobrepor a outro. Assim, em alguns contextos o direito à vida pode se sobrepor ao direito à liberdade. Do mesmo modo, o princípio de dizer a verdade pode ser sobreposto por algum outro princípio que torne permissível mentir. Em outros contextos, pode ser correto até mesmo violar a vida de uma pessoa, como no caso da legítima defesa, da guerra justa entre outros.

       Mesmo o princípio “nunca se deve matar uma pessoa inocente” parece admitir exceções. Quando precisamos, por exemplo, separar bebês siameses coma a única forma de garantir que um sobreviva, isso parece ser correto mesmo que leve à morte a um deles. Considere agora o caso de uma pessoa que está em agonia, ela está em sofrimento insuportável. Esse sofrimento é causado por uma doença que não tem cura e que é crônica. Essa pessoa tem razões morais fortes para não querer continuar sofrendo. Não há outra forma de satisfazer essas razões que não seja a eutanásia voluntária ou suicídio assistido.

      Aqui nós temos um caso em que razões morais fortes que uma pessoa tem (de não sofrer uma agonia insuportável e incurável) entram em conflito com o direito à vida. Parece-me que essas razões são suficientemente fortes para se sobrepor a esse direito. Mas isso significa que o suicídio assistido e a eutanásia voluntária só são moralmente permissíveis quando as razões morais que uma pessoa têm para preferir a morte são mais fortes do que as razões para não violar sua vida. Nesse caso, novamente é preciso estabelecer critérios de quando a eutanásia é moralmente permissível. Esses critérios poderiam ser:

       A eutanásia voluntária e o suicídio assistido são moralmente permissíveis se e somente se atende aos seguintes critérios:

(1) voluntariedade: há um pedido voluntário do paciente, sendo esse pedido livre e esclarecido;

(2) relação médico-paciente: há uma relação vigente efetiva entre a equipe medica e o paciente, ou seja, o paciente se encontra em acompanhamento médico contínuo;

(3) decisão conjunta: a decisão foi tomada conjuntamente entre o paciente e a equipe médica que o acompanha;

(4) apoio crítico: há um ambiente com uma equipe multiprofissional incluindo enfermeiros e psicólogos, bem como familiares e amigos quando for o caso, que dão suporte crítico à decisão do paciente;

(5) durabilidade de manifestação de interesse: o paciente manifestou de forma duradoura, consistente e repetidas vezes a preferência pelo suicídio assistido/eutanásia;

(6) sofrimento insuportável incurável: o sofrimento experimentado pelo paciente é, crônico, insuportável e irreversível, ou seja, o paciente está em profunda e contínua agonia;

(7) consideração de alternativas: não há outras soluções disponíveis em termos de tratamento ou formas de amenizar o sofrimento de modo que ele se torne suportável ou as tentativas de tratamento são tão maléficas, invasivas e com pouca chance de efetividade que seu custo torna melhor evitá-las.

(8) método confortável de pôr fim à vida: há a possibilidade de um método confortável para a eutanásia/suicídio assistido como a aplicação de um remédio indolor em um contexto confortável.

 

III A QUESTÃO DO CONSUMO DE CARNE


       Quando consideramos a questão do consumo de carne devemos reconhecer que esse é um assunto complexo que é difícil dar uma resposta e que é uma questão aberta ao debate. Dado isso, este texto pretende apenas trazer algumas reflexões, que podem estar equivocadas, mas que podem apresentar uma compreensão possível sobre o assunto. Em um primeiro momento, parece não haver nada por si só errado em se alimentar de animais. A meu ver, são dois os principais problemas que poderiam tornar essa alimentação moralmente problemática: (i) o sofrimento causado aos animais; (ii) a violação de certos interesses dos animais.

       Quanto ao sofrimento animal, poderia ser defendido que não é errado se alimentar de animais se a situação deles em relação ao sofrimento é melhor do que se não nos alimentarmos deles. Por exemplo, um animal na natureza tem uma vida sofrida, precisa viver lutando pela sobrevivência e morre de forma dolorosa sendo despedaçado por um predador. Por outro lado, um animal criado pelos humanos pode ter ao seu aceso alimento com facilidade, viver em campo aberto ou em frigoríficos humanitários e então ser morto de forma indolor. Assim, o animal teria uma vida de muito menos sofrimento graças à sua criação pelos humanos.

       Em segundo lugar, quanto aos interesses, poderia ser argumentado que os animais (e isso valeria só para os que são autoconscientes) têm interesse de viver e que matá-los para comer contradiz esse interesse. Por outro lado, muitos animais nem mesmo existiriam se não fosse a sua criação para consumo humano e poderíamos perguntar hipoteticamente se esses animais prefeririam viver na natureza ou serem criados de forma humanitária e morrerem de modo indolor. Me parece que em condições ideais, portanto, não é imoral se alimentar de animais. Isso porque a exploração benigna dos animais seria melhor para esses animais do que se eles existissem na natureza ou se eles nem sequer existissem.

       A verdade, no entanto, é que isso não é o que ocorre de fato na maior parte das vezes. A partir da constatação disso, as pessoas podem escolher três caminhos: (i) parar completamente de comer carne nas condições atuais; (ii) diminuir o consumo de carne ou (iii) defender a ideia de que precisamos focar, não em lutar contra o consumo de carne em si, mas por lutar por reformas na maneira como criamos os animais. Me parece que as três soluções são moralmente interessantes. Todas elas enfrentam seus próprios problemas e quem defende a criação de animais para consumo, pode ter que defender que alguma razão não permite extrapolar tal raciocínio para a criação de humanos para criação, como o fato de que o ser humano é um animal racional no sentido de possuir uma racionalidade discursiva que lhe confere algum status privilegiado em relação aos animais brutos. Não me parece especismo considerar os humanos superiores aos animais brutos se a razão disse não é o simples fato de o ser humano ser da espécie biológica homo sapiens, mas sim a razão metafísica de sermos substâncias racionais.

       O defensor da permissibilidade do consumo de carne pode observar, ainda, que em muitas situações na sociedade capitalista, entendemos que focar nossas críticas no consumo é focar no alvo errado e que se levarmos isso às últimas consequências, teríamos que evitar consumir a maioria do que consumimos, pois é difícil pensar em algo produzido no Capitalismo que não o seja de modo problemático. Talvez, então, alguém possa defender que é moralmente permissível comer carne, mas que deveríamos lutar por uma reforma humanitária dos frigoríficos. Além disso, tal pessoa poderia também defender que o foco em soluções individuais com baixa probabilidade de serem aderidas pela sociedade como um todo não são tão efetivas quanto focar em reformas estruturais. Tal pessoa pode, então, apoiar políticas que visem melhorar as condições de criação dos animais ou ser a favor de avanços tecnológicos, como a carne sintética artificialmente criada, como o caminho para uma futura substituição do consumo de carne. Além disso, ela pode defender o mesmo em relação ao combate das mudanças climáticas, entendendo ser preciso a defesa de meios sustentáveis de exploração dos animais.

       Uma outra saída seria se tornar flexiteriano ou demi-vegeteriano. Nesse caso, a pessoa pode escolher reduzir o consumo de carne. Para tanto, ela pode escolher se alimentar só de animais sencientes, mas não de animais autoconscientes. Ou pode escolher se alimentar só de carne de animais criados em pasto livre, mas não daqueles criados em confinamento. Outra opção seria comer carne apenas em alguns dias da semana ou em algumas das refeições.

       Uma terceira saída pode ser o vegetarianismo ou o veganismo. Uma pessoa pode escolher cessar completamente o consumo de carne. Nesse caso, como eu disse que as três soluções me parecem moralmente permissíveis, o vegetarianismo e o veganismo poderiam ser considerados atos de superrogação. Isso significa que não seria moralmente obrigatório que todos parassem de consumir carne completamente, mas ainda assim seria altamente louvável essa decisão e tal atitude poderia ser incentivada.

       Podemos concluir, pois, que o melhor caminho seria se pudéssemos reformar a maneira como criamos os animais. Defender uma exploração benigna dos animais consiste em dar a eles uma vida mais feliz e satisfatória do que se eles existissem na natureza ou não existissem. Por outro lado, enquanto esse tipo de reforma não ocorre, as pessoas podem decidir: (i) continuar consumindo carne, mas lutar pela reforma da maneira como criamos os animais; (ii) diminuir o consumo de carne adotando o flexiterianismo; (iii) evitar completamente o consumo de carne, adotando o vegetarianismo ou veganismo.

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