É A HOMOSSEXUALIDADE ANTINATURAL?

 



       É comum se argumentar contra a prática da homossexualidade com base no comando de Deus. A homossexualidade seria imoral porque Deus diz que ela é imoral. Qualquer pessoa que tenha apreço por uma moral objetiva ficaria descontente com esse tipo de argumento. Dizer que algo é imoral simplesmente porque Deus assim diz é o que se denomina como Teoria do Comando Divino, que se bem compreendida é uma forma de subjetivismo ético. A Teoria do Comando Divino comete a falácia de que se algo é um dever então esse algo deve ser um Comando, além de tornar a ética arbitrária, já que Deus poderia livremente tornar qualquer coisa certa ou errada. Caso, ao contrário, se diga que Deus baseia seus mandamentos em boas razões, então essas razões é que são o fundamento da moral, não os mandamentos de Deus.

       Historicamente, no entanto, a posição mais comum adotada por cristãos em Ética é a chamada Teoria da Lei Natural, que tem suas raízes no naturalismo clássico da Ética aristotélica. Segundo essa visão, a vida ética é aquela que consiste na realização mais excelente de nossa natureza a nível operacional. A Lei natural não depende da revelação particular de uma religião para ser conhecida, bastaria conhecermos o constituinte próximo dessa moral (a natureza humana) para que se possa encontrar um fundamento da moralidade.

      Assim, a construção de um sistema ético objetivo não depende de conhecermos o conteúdo revelacional de uma dada religião. Podemos conhecer verdades morais pelo bom uso da razão prática, por exemplo. As bases do raciocínio moral adequado está no próprio bom uso da razão natural. Por isso, a ética não depende da religião ou da revelação especial para chegar a verdades sobre o certo e o errado.

       Na verdade, pretendo defender que até um religioso faz bem em adotar como critério a moral baseada na razão natural. Como as religiões têm condicionantes históricos na formulação de seus preceitos morais, pode ser que uma posição moral sustentada por uma religião não esteja correta e com o critério racional de moral, um religioso pode conseguir distinguir o que na sua religião é uma norma ética do que é uma norma condicionada historicamente. Acredito que isso não é um problema porque geralmente as posições morais de uma religião não afetam seus dogmas. 

       Uma pessoa pode se comprometer com todos os dogmas de fé de uma religião, mas avaliar a parte dos preceitos morais dessa religião à luz de um critério ético objetivo fundamentado na razão natural. Pode ser que uma religião seja infalível em determinar artigos de fé, mas me parece que, como ética é questão de razão e não revelação, seria errado fundamentar a ética na definição de dogmas por uma religião. Pode-se, por exemplo, admitir a infabilidade do Magistério católico em matéria de dogmas de fé, mas essa infabilidade não pode ser advogada para matérias de Ética. Mesmo que as posições de um Magistério sobre Ética possam ser guias importantes, a Ética deve se fundamentar primariamente em boas razões. Ética não é questão de fé, mas de razão.

       Todavia, um argumento tradicional contra as práticas homossexuais baseia-se justamente na lei natural. Argumenta-se que os atos homossexuais contradizem a finalidade natural do sexo, que deve ser reservado ao contexto do matrimônio e que a cópula deve ter primariamente um fim reprodutivo. Consequentemente, os atos entre homens e homens (sodomia) seriam  contrários à finalidade operacional dos órgãos genitais. Argumenta-se, ainda, que o sagrado matrimônio é uma instituição natural que é o lugar apropriado do sexo procriativo e que disso se segue que uniões homossexuais devem ser condenadas.

       Precisamos, no entanto, perguntar: será mesmo que as práticas homossexuais são contrárias à Lei natural? Eu tendo a pensar que há muitas formas de defender que o ato sexual entre pessoas do mesmo sexo não contradiz a lei natural mesmo quando não envolve fim reprodutivo se ele for realizado com algum outro fim natural que também é próprio do ato sexual, como é o caso do fim de estabelecer uma intimidade recíproca de toque prazeroso e fortalecer os vínculos de amor. Vale lembrar que dificilmente alguém proibiria atos sexuais entre um homem e uma mulher estéril ou que já passaram da idade reprodutiva, justamente porque se reconhece que o sexo também cumpre uma função de fortalecimento de vínculos afetivos.

       Como as pessoas homossexuais são atraídas somente pelo mesmo sexo como algo intrínsico ao ser delas, o fato de pessoas homossexuais realizarem o ato sexual com base nesse fim natural da intimidade, do toque e da troca de afetos não parece ser algo contra a natureza.  Não vejo, ainda, nenhum problema com a ideia de que o casamento é uma instituição natural que existe para fins reprodutivos. Mas isso não significa que as uniões homossexuais, mesmo que não sejam casamento no sentido natural do termo,  deixem de ser uniões legítimas. Os atos homossexuais mesmo sem fins reprodutivos podem continuar sendo naturais, pois cumprem o fim do toque recíproco e da intimidade que é o único tipo de união sexual para o qual homossexuais por suas próprias tendências naturais estão direcionados.

       Eu tenho a impressão que as pessoas em grande parte da história que condenaram atos homossexuais como antinaturais não tinham ainda clareza de quão constitutiva é a homossexualidade e o quanto ela é um traço intrínseco e inerente a uma pessoa. Depois, claro, quando se compreendeu melhor isso, começou-se a se falar que a própria natureza dessas pessoas era desordenada, o que me parece circular.

       Homossexuais têm uma tendência intrínsica à sua constituição de se voltarem para um tipo de intimidade homoerótica e a meu ver o uso dos genitais para realização desse fim de intimidade é um uso que realiza uma função também natural dos genitais. Assim, os atos homossexuais realizados por essas pessoas não são antinaturais, mas cumprem uma função natural do sexo para essas pessoas, que é a realização de um tipo de união íntima profunda e adequada à constituição dessas pessoas.

      Para os que se preocupam, por exemplo, com a posição cristã tradicional sobre esse assunto, vale dizer que reconhecer essa função natural dos atos homossexuais não contradiz nenhum dogma cristão. Embora a Igreja tenha historicamente condenado a sodomia, ainda não se tinha uma compreensão adequada de que o que se chamava de sodomia poderia ser, na verdade, a expressão de uma disposição íntima à constituição do ser de algumas pessoas. Como pretendo defender, a condenação da sodomia não implica em condenação das práticas homossexuais. 

      Consideremos, pois, mais de perto a distinção entre sodomia e atos homossexuais. A Igreja historicamente condenou  sodomia, mas foi só com a Modernidade que se pode falar de uma condenação da homossexualidade. Pretendo clarificar, assim, que condenar a sodomia não é o mesmo que condenar a homossexualidade. Eu tenho esperança de que a própria Igreja Católica e outras organizações cristãs venham com o tempo perceber o erro no raciocínio que fez a Igreja transformar a condenação da sodomia (que pode até ser correta) em condenação de atos homossexuais como antinaturais (que aí sim é um raciocínio incorreto). Minha intenção é defender que não há razões suficientemente fortes para condenar atos homossexuais como antinaturais.

       Como dito, a Ética baseada em boas razões, portanto, deve sempre estar acima da opinião de qualquer cultura ou religião e é a ética racional que nos permite julgar como um equívoco a tradução moderna da condenação da sodomia em condenação da homossexualidade.  Mas, apesar da minha crítica, é preciso dizer que eu respeito e entendo a posição cristã clássica que condena os atos homossexuais. Conheço grupos, padres, pastores e amigos cristãos que defendem que a Igreja deve revisar esse tópico, não acho que ele altere em nada qualquer dogma de fé, mas ao mesmo tempo eu admiro a posição mesmo clássica presente, por exemplo, no Catecismo católico de reafirmar o acolhimento e amor às pessoas homossexuais.

       Também é importante dizer que entendo a homossexualidade como uma disposição psicológica fortemente constitutiva do modo de ser de uma pessoa independente da gênese dessa constituição. Cada vez se torna mais claro para a psicologia que a disposição homossexual é um traço muito forte e inalterável (na maioria das vezes) de uma pessoa, independente de como se estabelece. Trata-se de um disposição que vai muito além de só uma questão sexual. É um traço bem marcante da pessoa como um todo. Ao invés de dizer que tais pessoas estão condenadas a nunca poderem expressar essa disposição tão constitutiva de seu ser, me parece muito mais adequado dizer que a realização da intimidade homoerótica é sim um fim natural adequado para o uso dos genitais nessas pessoas.

       É verdade que os genitais têm uma função reprodutiva, mas não acho que seja uma função exclusiva ou necessária. Os genitais têm uma função também de realizar um tipo de intimidade profunda entre duas pessoas, daí que como eu disse não proibimos atos sexuais a estéreis ou pessoas além da idade reprodutiva. Reconhecemos que o ato sexual também tem uma função natural relacionada a um vínculo de intimidade. Visto que um vínculo de intimidade homoerótica é o único tipo de vínculo erótico que uma pessoa homossexual está disposicionalmente orientada para, o uso dos genitais para essas pessoas cumpre um fim natural próprio que é a realização desse tipo de intimidade, que a meu ver é um fim natural adequado ao uso dos órgãos genitais. Nesse caso, dizer que práticas homossexuais são antinaturais seria parecido com dizer que usar a mão para dar tchau é antinatural porque a função natural da mão é pegar coisas; ou que mascar chicletes, fumar ou beijar são errados porque a função natural da boca é comer. Alguns talvez ainda digam que a ejaculação só pode ocorrer para fins procriativos, mas é importante ter em mente que a ejaculação é um subproduto do ato sexual e não aquilo que é visado como fim pelo ato.

      Ao invés de falar de órgãos genitais, seria interessante falar de uma teleologia das zonas erogenas do corpo. Daí fica mais claro que os órgãos genitais são só parte das zonas erógenas do corpo e aí sim a gente pode lembrar de uma função das zonas erógenas (não só genitais), que consiste em realizar o fim de uma intimidade de toque e afeto, e aí fica claro porque a estimulação dessas zonas ainda está cumprindo uma função natural e até fisiológica dentro da teleologia das funções dos órgãos do corpo mesmo quando não estamos falando de procriação.

       Voltando à questão da sodomia, alguns podem insistir que a Igreja sempre condenou a homossexualidade. Eu diria que isso não é verdade, a condenação histórica da Igreja é à sodomia, mas acredito que se bem compreendida, homossexualidade não é sodomia. Atos homossexuais são expressões de uma disposição psicológica inerente a uma pessoa. Isso é diferente de sodomia, que seria um comportamento desviante que pessoas praticariam em contradição à natureza. A sodomia é um comportamento passível a qualquer pessoa independente da orientação sexual enquanto práticas homossexuais são expressão de uma disposição psicológica exclusiva a pessoas com essa orientação. 

       O erro histórico cometido por alguns, a meu ver, foi transformar a condenação da sodomia em condenação de atos homossexuais. Homossexuais ao que tudo indica são pessoas que constitutivamente têm uma disposição direcionada ao mesmo sexo, uma disposição que é básica e inalterável (ainda na linha das pesquisas). Se isso é bem entendido, então quando uma pessoa homossexual pratica atos homossexuais na verdade só está realizando um tipo de intimidade para a qual ela se encontra disposicionalmente orientada. Nesse caso o uso dos órgãos genitais ou a estimulação das zonas erógenas do ânus apenas são colocados ao serviço da realização de um tipo de vínculo de intimidade para o qual a disposição básica e inalterável dessas pessoas as direcionam. O próprio fato do ânus ser uma zona erógena deveria nos fazer pensar que ele também possui a função natural de experimentar prazer sexual.

       Prosseguindo sobre a distinção entre sodomia e homossexualidade, sodomia é um termo que a partir mais ou menos do sécIV passou a designar atos sexuais não reprodutivos, poderia incluir a bestialidade, a masturbação, o sexo anal etc. e a princípio não se referia exclusivamente a atos homossexuais. A sodomia era geralmente vista como um comportamento passível a qualquer pessoa. Desse modo, a grande diferença de sodomia para atos homossexuais, é que atos homossexuais são aqueles que são expressão de uma disposição psicológica inerente a um tipo de pessoa, que são as pessoas homossexuais. Por isso, atos homossexuais não são o mesmo que sodomia.

       Vale lembrar ainda que a gente tem também fortes evidências da psicologia de que uma pessoa com disposição homossexual no geral não consegue ter uma vida satisfatoriamente feliz se viver tentando renunciar às expressões dessa disposição. Homossexuais, a maioria, não têm um dom para o celibato, por exemplo, nem podem encontrar uma vida sexual satisfatória no sexo heterossexual. Se a ética deve nos mover a uma vida de florescimento (eudaimonia), então negar aos homossexuais a vivência de sua sexualidade, é fechar, ao menos para a maior parte deles, de antemão a possibilidade de uma vida de florescimento. Agora, se a vivência homossexual para essas pessoas está a serviço de uma vida de florescimento então condenar os atos homossexuais dessas pessoas como antinaturais seria um contrassenso, pois o florescimento é o fim maior para o qual existimos e para o qual devemos ordenar todos os demais fins.

       A questão do florescimento (eudaimonia) como o fim maior de nossa vida ajuda-nos mais uma vez a perceber que homossexualidade não é sodomia. Retomando, sodomia seria o uso dos órgãos genitais em contradição com sua função natural, que seria um uso irracional desses órgãos. Como, repito, os atos homossexuais no caso de pessoas com uma disposição homossexual inerente e inalterável serve à função de promover o vínculo de afeto e erotismo para o qual essa disposição orienta essas pessoas e que concorrem para uma vida de florescimento (eudaimonia) dessas pessoas, então o uso dos órgãos genitais por essas pessoas para esse fim não é sodomia. Essa necessidade humana de florescimento também ilustra porque não podemos prescrever a todos os homossexuais o celibato. O celibato é um dom, se um homossexual tem o dom para o celibato tenho certeza que tal pessoa pode viver uma vida de florescimento cumprindo esse dom. Infelizmente, não é verdade que todos os homossexuais têm um dom para o celibato. Mas temos dados muito consistentes em psicologia de que condenar as práticas homossexuais de pessoas com essa disposição e sem dom ao celibato tem sim importantes correlatos com índices de depressão e suicídio. Seria interessante, eu dizer, contudo, que admiro e acho louvável que homossexuais que têm o dom do celibato decidam por viver o celibato e cultivar o autodomínio de seus desejos.

        Também é importante salientar que a defesa das práticas homossexuais além de não ser uma defesa da sodomia, também não é uma defesa da luxúria nem é uma oposição à vida de castidade. Não há dúvidas que uma vida sexual imprudente e irresponsável é imoral e que devemos cultivar a virtude da castidade, que nada é mais do que é uma disposição para uma vida sexual moderada e prudente.

       Vale lembrar que há diversas pesquisas que apontam para um componente biológico significativo na constituição da disposição homossexual e me parece que há de fato um componente biológico forte nesse sentido, embora meu argumento não dependa de nenhuma tese sobre a gênese da disposição homossexual para ser verdadeiro. De todo modo, temos boas bases em pesquisas para dizer que a homossexualidade tem um componente biológico forte e que é uma característica inalterável, senão para todos, para a maioria dos homossexuais. Se há esse componente biológico forte, então argumentos com base na fisiologia de que a homossexualidade é antinatural simplesmente não procedem.

      Para concluir, o que este texto livre e,  reconheço, um tanto repetitivo, pretendeu mostrar é que uma pessoa pode adotar a Teoria da Lei Natural e manter que atos homossexuais não contradizem essa lei. Argumentei, ainda, que a Ética deve se basear na razão natural e que ela deve ser a régua para podermos distinguir nos preceitos morais de uma religião o que é uma posição moral objetiva do que é uma posição moral condicionada historicamente, até porque eu acho que a condenação da homossexualidade não é relevante em nada para a verdade dos dogmas de qualquer religião.

       É claro que alguém pode só abandonar a teoria da lei natural, mas para alguém que está fortemente convencido do naturalismo clássico, da teoria da lei natural, não precisa necessariamente concluir daí que a homossexualidade é antinatural. O que eu tentei mostrar, portanto, é que da teoria da lei natural não se segue necessariamente a condenação da prática da homossexualidade.  Alguém pode, ainda, concordar  plenamente com a condenação da sodomia, da luxúria, defender a castidade, afirmar que o matrimônio heterossexual é uma instituição natural e que dentro desse matrimônio o sexo heterossexual tem uma importante função reprodutiva, sem ter que concluir daí a condenação das práticas homossexuais quando servem ao fim que expliquei.

       

 


Comentários

Postagens mais visitadas