SEGUNDA MEDIATAÇÃO - RENÉ DESCARTES (RESENHA)

 

O objetivo deste texto consiste em apresentar as ideias desenvolvidas por Descartes na Segunda Meditação. Nas meditações, o filósofo observa que o primeiro passo para alcançar a verdade consiste em colocar sistematicamente em dúvida tudo aquilo que não se mostra como certeza indubitável. Primeiro, podemos colocar em dúvida as informações dos sentidos, na medida em que eles se mostram enganosos. Em segundo lugar, como não temos como saber se estamos sonhando, não podemos ter certeza da existência do mundo, nem do nosso corpo. Terceiro, visto que um gênio maligno poderia estar nos enganando sobre as verdades mais simples e certas, podemos colocar em dúvida até mesmo as verdades matemáticas. 

        A única certeza que não pode ser objeto de dúvida é a do "eu pensante", já que não posso duvidar que duvido. Esse eu na medida em que o próprio corpo foi suspenso pela dúvida, só pode ser compreendido enquanto "espírito". Todo nosso conhecimento sobre nós mesmos tem sua origem, não no corpo, mas no espírito. Descartes usa a dúvida, assim, como um caminho para chegar à certeza indubitável do cogito. Isso significa que a dúvida cumpre o papel de destruir a si mesma, a dúvida é o caminho para que se encontre o que não pode ser colocado em dúvida e que nos fornece, consequentemente, um solo firme para o conhecimento. 

   Descartes inicia a segunda meditação mostrando como seu espírito foi mergulhado em dúvidas. Ele não podia mais estar certo de que o mundo ao seu redor era real, não podia mais confiar em suas memórias, nem mesmo saber que possuía um corpo e mesmo a figura e extensão poderiam ser ficções criadas por sua mente. A princípio isso poderia gerar um profundo ceticismo, a dúvida parecia ter alcançado tudo e talvez não houvesse nada que não fora por ela contaminado: “O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo” (§2). 

Apesar desse aparente risco de que a dúvida tenha contaminado tudo, é preciso prosseguir com a investigação. Será que derrubada mesmo a certeza do corpo ainda resta alguma coisa que não tenha sido derribada? Significa o colocar em dúvida o corpo o fato de que não podemos estar certos nem de nosso próprio eu? Aqui fica evidente que se há alguém que duvida de tudo, a existência desse eu não pode estar em questão, mas dado que o corpo foi colocado em dúvida, segue-se que o “eu” não pode ser identificado com o corpo. Aqui fica claro o fracasso de qualquer concepção que queira reduzir o eu e a consciência ao corpo. Mesmo quando o corpo foi colocado em dúvida, o “eu” permanece inatingido. 

Ademais, mesmo a hipótese do gênio maligno depende de assumir a realidade do “eu”. Só pode haver um gênio que produz em mim toda sorte de ideias enganadoras e opiniões falsas se houver um eu que é enganado. A ideia de um “eu” aparece, nesse sentido, como uma ideia clara e distinta. Clareza e distinção não são questões subjetivistas, não é no sentido de que a ideia do eu “me parece” clara como se fosse uma espécie de “seeming”, na verdade, a clareza e distinção pertencem ao modo de apresentação da ideia. A ideia do eu se apresenta como clara e distinta. Isto é, clareza e distinção não têm a ver com a apreensão, visto que muitas pessoas podem achar ideias mais ou menos claras, mais ou menos distintas por razões relativas à cultura ou à sua subjetividade ou mesmo devido a um extravio do espírito. Clareza e distinção têm a ver com a “presentabilidade” da ideia, que é algo distinto de nossas inclinações ou atrações por uma ideia.   

Se a ideia de um eu aparece como algo distinto e claro, pode-se dela construir a proposição “eu sou, eu existo” (§3), a qual é preciso que conservemos diante de nós. Pelo modo como essa ideia se apresenta ao espírito, não se pode deixar de considerá-la como verdadeira. Apesar, no entanto, de ser claro que eu sou, ainda não é claro “o que eu sou”. Já ficou claro que “eu não posso ser meu corpo”, porque enquanto o corpo é dubitável, o “eu” não pode ser colocado em dúvida e não pode ser a mesma coisa aquilo que tem propriedades contraditórias, isto é, o eu não pode ser ao mesmo tempo dubitável e indubitável. Temos, pois, do eu uma ideia claramente distinta daquela que temos sobre os corpos. 

Tradicionalmente, aquilo que nós somos foi compreendido pela clássica expressão aristotélica “o ser humano é um animal racional”, portanto, uma primeira hipótese investigativa é a de que aquilo que o ego é, seja entendido pela expressão “animal racional”. No entanto, como chegamos a conhecer que há um gênero que denominamos como animal e que somos parte de uma espécie no interior desse gênero que se define pela racionalidade? Evidentemente, conhecer que há um gênero que é o dos animais do qual meu eu faz parte demanda certos conhecimentos do sentido. Contudo, a essa altura da investigação não é possível recorrer a esse tipo de saber oriundo dos sentidos. Portanto, a natureza do “eu” não pode ser colocada nesses termos.

Se para conhecer a natureza do “eu” não é possível trabalhar em termos de animalidade nem corporeidade, então pode ser o caso que o que denominamos como “eu” deva ser pensado a partir da noção de alma. Se voltarmos novamente a como a alma foi pensada pela tradição, podemos ter em mente a clássica distinção entre alma vegetativa, alma animal e alma racional, e aqui podemos falar da alma que se alimenta, que sente e que pensa. Em algum sentido, a alma que possibilita que um ser se movimente, se alimente e tenha sensações só pode ser a alma enquanto unida ao corpo, daí que tradicionalmente se pensa a alma como forma da matéria, como no hilemorfismo. 

Visto que o corpo foi colocado em dúvida, a alma como capaz de receber afetações ou excitações provenientes do corpo ou a alma enquanto capaz de colocar o corpo em movimento, não pode ser àquela que sobrevive à dúvida. Mas que dizer do pensamento? Já do ponto de vista clássico, a alma racional ou intelectiva (nous) merece um estatuto privilegiado em relação à alma vegetativa e sensitiva. O pensamento nada tem a ver com o corpo e não depende do corpo para ser e nenhuma alma intelectiva pode surgir por meio de um processo biológico, diferente do que ocorre quando falamos da alma relativa às sensações, ao movimento e à alimentação. 

O pensamento possui uma autoluminosidade ou transparência própria que impede que ele possa ser em algum sentido reduzido ao corpo. Trata-se de um estado cognitivo de ordem elevada que apresenta um aspecto diáfono, translúcido ou lumenático e que diz respeito à pura fenomenalidade do próprio ego. Esse caráter diáfono revela a pureza do pensamento e sua completa diferença de tudo aquilo que é físico ou corpóreo, incluindo os próprios conteúdos experienciáveis. Assim, mesmo quando se esvazia a consciência de todo conteúdo qualitativo por ela experienciado, aqueles mesmos que foram colocados em dúvida, ainda permanecem essa luminosidade revelada no pensamento. O problema mais profundo da consciência não diz respeito só ao caso mais visível dos conteúdos qualitativos que são objetos de sua experiência, mas concerne à própria natureza transparente do pensamento puro mesmo quando vazio de conteúdo. 

Esse aspecto translúcido do pensamento mostra tanto porque o pensamento não pode ser reduzido ao corpo quanto por que ele não pode ser duvidado, ele é como a luz que tudo ilumina. É possível colocar em dúvida tudo aquilo que é iluminado por uma luz como externo a essa luz, mas não é possível duvidar da luz que tudo ilumina porque a própria dúvida só pode ser dúvida enquanto é uma forma que essa luz toma. Se a luz está sendo entendida como metáfora do pensamento, então aquilo que é sobretudo certo é que eu sou uma coisa que pensa, uma substância pensante, o que é o mesmo que queremos dizer quando falamos de “espírito”, “razão” ou “entendimento”. 

Que somos um espírito ou uma mente que pensa é uma verdade que se apresenta a nós de modo claro. Nada poderia ser mais absurdo do que negar que somos realmente uma coisa que pensa, ou dizer que nossa consciência não é real. Isso não quer dizer que Descartes esteja dizendo que somos um fantasma na máquina. Nosso espírito o próprio filósofo observa que não deve ser concebido como uma espécie de marinheiro pilotando um navio. A realidade nossa como substâncias pensantes, pois, nada tem a ver com essa visão caricata, antes é algo que se impõe como uma verdade mais certa do que qualquer saber sobre o mundo físico. Daí que seria completamente irracional explicar a consciência a partir da ideia que temos dos corpos e fica patente o absurdo, quando levamos seriamente em conta a luminosidade do pensamento. Dizer que a consciência surge daquilo que é figura, extensão e movimento é um absurdo, antes é a consciência por conter certas ideias que nos permite configurar o mundo que chamamos físico como um mundo figurável e extenso. 

Se as coisas dubitáveis, como as corpóreas, aparecem em um primeiro momento mais claras que a ideia do próprio eu, é porque nosso espírito geralmente se extravia, sendo excitado por tantas ideias adventícias oriundas do corpo. É em razão desse extravio que aquelas ideias mais claras com as quais nascemos ficam como que sedimentadas e veladas para nós. Daí que é preciso realizar um processo de retração ou purificação pelo qual vamos como que limpando nossa mente das ideias elusivas a fim de manter diante de nós aquelas que de fato se mostram mais verdadeiras. 

Podemos, no entanto, partir de nossas ideias dos corpos, que tomamos inicialmente como mais claras, e por meio da retração podemos executar um processo de purificação dessas ideias. Se considerarmos os corpos, veremos que eles possuem muitas qualidades que são acidentais e que não podem constituir sua verdadeira substância. Descartes usa o exemplo da cera, se observamos bem, nenhuma das características da cera que dependem de nosso tato (como sua textura), de nossa visão (como sua cor), de nosso olfato (como seu cheiro) etc., podem ser compreendidos como a substância própria da cera, tanto porque tais propriedades a cera tem só na medida em que se mostra aos nossos sentidos tanto porque a cera não deixa de ser o que ela é por mudanças que sofre nessas propriedades.  Resta, pois, que aquilo que é a substância da cera nada pode ter a ver com essas qualidades que se mostram aos meus sentidos e que se costuma denominar como “qualidades secundárias”. Se usarmos a própria variação imaginativa, ou seja, se imaginarmos o que na cera permanece apesar das diferentes possibilidades e alterações de propriedades que ela pode assumir, veremos que o que não se altera não é algo que vemos, sentimos ou cheiramos. Na verdade, é uma ideia em nossa mente que permite identificar a substância da cera e dos corpos, e essa é a ideia da extensão. 

O mundo dos corpos fica claro, por esse método, que não é o mundo das qualidades. Não há no mundo físico calor, textura, cheiro, gosto ou cores, porque tudo isso só existe em minhas sensações. O mundo corpóreo só pode ser pensado em si mesmo a partir de noções quantificáveis oriundas da geometria e da matemática. Fica claro também, assim, porque é impossível que a consciência possa surgir desse mundo, um mundo de corpos extensos sem as qualidades que atribuímos aos sentidos não pode ser aquele que dá origem à consciência e toda a riqueza de sua experiência qualitativa. A substância pensante não pode ser do mesmo tipo nem emergir a partir da substância extensa. Mas vale notar que embora o mundo físico seja aquele dos corpos extensos, a própria extensão não é um corpo, mas é a ideia pela qual compreendemos todos os corpos. É o mundo físico que depende, nesse sentido, da ideia para ser pensado. 

A Segunda Meditação traz à tona a descoberta do cogito como real e irredutível. O cogito não pode ser colocado em dúvida nem pode ser reduzido aquilo que é físico. Essa, me parece, é uma descoberta que permanece verdadeira apesar das muitas tentativas de tentar negar a realidade da consciência ou de explicá-la em termos fisicalistas. Qualquer teoria que tente eliminar a consciência, negar a sua realidade ou reduzi-la a algo físico terá a marca de uma fraqueza insuperável, pois terá começado por não reconhecer o fato do qual temos a maior certeza. 

 

REFERÊNCIA: 

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes. 2000. 


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