DISCUSSÃO CRÍTICO-FENOMENOLÓGICA DE QUATRO TESES TRADICIONAIS SOBRE O SER - HEIDEGGER (RESUMO)
O que se segue é um resumo da parte
I do livro Os Problemas Fundamentais da
Fenomenologia, que reproduz o texto de uma preleção proferida por Martin
Heidegger no semestre de verão de 1927. É importante colocar que este
resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem
paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor
original. O texto discute de maneira crítico-fenomenológica quatro teses sobre o
ser:
I.
A Tese de Kant: ser não é nenhum predicado real;
II. A Tese da Ontologia
Medieval que remonta a Aristóteles: à constituição de um ente pertence o
ser-o-que (essência) e o ser-simplesmente-dado (existência);
III. A Tese da
Ontologia Moderna: os modos fundamentais do ser são o ser da natureza (res extensa) e o ser do espírito (res cogitans);
IV. A Tese da Lógica: independentemente
de seu respectivo modo de ser, todo ente pode ser interpelado discursivamente
por meio do “é”; o ser da cópula.
TESE I – A TESE DE KANT: SER NÃO É
NENHUM PREDICADO REAL
A
tese kantiana de que ser não é nenhum predicado real se apresenta em oposição
ao chamado argumento ontológico a favor
da existência de Deus. Este
argumento procede da seguinte forma: (i)
de acordo com o seu conceito, Deus é o ente mais perfeito; (ii) ao conceito do ente mais perfeito pertence a existência; (iii) Logo, Deus existe. Kant não
discorda, nem de que Deus seja perfeito (i), nem de que Deus exista (iii), mas
sim de que a existência seja uma perfeição (ii).
Kant apresenta duas teses: (i) a existência não é um predicado ou
determinação de alguma coisa: ser não é manifestamente nenhum predicado
real, isto é, um conceito de algo que poderia ser adicionado ao conceito de
alguma coisa; (ii) existência significa
posição absoluta: ser é meramente posição de uma coisa ou de certas
determinações em si mesmas. Kant entende que a percepção é que fornece a matéria para o conceito, sendo o único
caráter da realidade efetiva. Nesse sentido, o caráter específico da posição
absoluta revela-se como percepção.
A palavra percepção, no entanto,
pode ser entendida de diferentes formas. Percepção pode querer dizer: (i) o perceber: no sentido do
comportamento percipiente; (ii) o
percebido: no sentido daquilo em
relação ao que o comportamento percipiente se comporta; (iii) o ter sido percebido: no sentido do ser percebido daquilo que
é percebido no comportamento percipiente. A percepção envolve um dirigir-se de maneira percipiente para aquilo que é percebido. Esse dirigir-se-para caracteriza a intencionalidade. A intencionalidade
envolve um intentio (o
comportamento-em-relação-a) e um intentum
(o em-relação-a-que do comportamento). No caso, temos a percepção (o intentio) e o percebido (o intentum).
O ter sido percebido pertence ao
comportamento intencional perceptivo. O perceber descobre algo simplesmente
dado e deixa ele vir ao encontro sob o modo de um descobrir determinado. A percepção retira o ente simplesmente dado
de seu encobrimento e o libera, para que ele possa se mostrar em si. O perceber
é um deixar vir ao encontro liberador do ente simplesmente dado. O ter sido
percebido funda-se na compreensão do ente simplesmente dado e a compreensão é
um comportamento do ser-aí. Nesse sentido, a discussão crítica da tese kantiana
conduz à necessidade de uma ontologia explícita do ser-aí.
TESE II – A TESE DA ONTOLOGIA
MEDIEVAL QUE REMONTA A ARISTÓTELES: À CONSTITUIÇÃO DE UM ENTE PERTENCEM O
SER-O-QUE (ESSÊNCIA) E O SER SIMPLESMENTE DADO (EXISTÊNCIA)
A
ontologia, desde Aristóteles, entende a distinção entre essência e existência
como dada, óbvia e autoevidente. No entanto, um problema surge quando se
considera o ser de Deus. Deus é entendido pela ontologia medieval como ente
cuja essência é a existência, isto é, em Deus não há diferença entre essência e
existência, nele essência e existência coincidem. Deus é entendido como o
primeiro e o mais primoroso ente, como o significado dos significados, como
aquele de quem todo ente que é efetivamente real deriva o seu ser.
No que diz respeito à relação entre
essência e existência, há na Escolástica duas teses: (i) no ente que é a partir de si mesmo, essência e existência são
metafisicamente um e o mesmo; (ii) em
todo ente que é por um outro, isto é, em todo ente criado, há uma distinção
ontológica entre essência e existência. Desse modo, enquanto em Deus, essência
e existência são o mesmo, nos entes criados há uma composição entre quidade
(essência) e modo-de-ser (existência).
No que diz respeito ao problema da
diferença entre essência e existência, é possível distinguir três concepções
diferentes na Escolástica: (i) a
concepção de Tomás de Aquino: entende a distinção entre essência e
existência como uma distinção real; (ii)
a concepção de Duns Scotus: entende a distinção entre essência e existência
como uma distinção formal, uma diferença da modalidade; (iii) a concepção de Francisco Suárez: entende a diferença entre
essência e existência como uma distinção racional, uma diferença puramente
conceitual.
Na filosofia, a essência foi
designada por diferentes conceitos, podemos destacar: (i) forma (morphé): aquilo
a partir do qual algo se configura, a cunhagem formal; (ii) ideia (eidos): o
aspecto que o configurar empresta ao ser-produzido. Para a ontologia grega, a
cunhagem formal (morphé) funda-se no
aspecto (eidos), pois a con-forma-ção é produzida com vistas ao aspecto
antecipado da coisa a ser cunhada. Ainda se pode citar: (iii) gênero (génos): a
raiz da coisa, a proveniência da coisa; (iv)
natureza (phýses): aquilo a partir do qual a coisa é gerada ou
produzida, da natureza da coisa, emerge a coisa efetivamente real. Os produtos
da geração são os utensílios, a phýsis é um gerar-se experimentado a
partir de contextos utensiliares. Por fim, a essência também é designada na
ontologia como (v) ser (ousía): ousía em seu sentido pré-filosófico era uma palavra usada na
linguagem cotidiana para se referir um produto ou bem de posse à disposição do
ser-aí, um utensílio.
A ontologia ingênua e vulgar
interpreta o ser-aí a partir de conceitos como alma (psyché), razão (nous, logos) e vida (zoé, bíos). Isso significa que a
ontologia ingênua estava de alguma forma consciente do ser-aí, ainda que por
meio de uma compreensão vulgar e que ela sabia que o ser-aí era diferente, em
seu modo de ser, dos demais entes.
TESE III – A TESE DA ONTOLOGIA
MODERNA: OS MODOS FUNDAMENTAIS DO SER SÃO O SER DA NATUREZA (RES EXTENSA) E O SER DO ESPÍRITO (RES COGITANS)
A compreensão vulgar do ser-aí
possibilitou o surgimento de uma orientação primária pelo sujeito na filosofia
moderna. Kant pode ser citado como um filósofo que buscou investigar a
subjetividade do sujeito ou a essência da egoidade. Kant, ao fazer uma
ontologia da existência humana, distingue três elementos de determinação do
humano: a animalidade (vida), a humanidade (razão) e a pessoalidade (autoconsciência moral). A
(i) animalidade se refere ao eu-psicológico, à experiência
empírico-sensível; (ii) a humanidade se refere à razão pura, ao
eu-transcendental como o domínio das categorias a priori do entendimento, independentes da sensibilidade; (iii) a pessoalidade: refere-se ao eu-moral
em seu agir ético.
O
fundamental no que diz respeito à lei moral, em Kant, é a determinação dessa
lei pela vontade livre. A razão pura livre fornece a si mesma a sua lei moral,
submeter-se a essa lei é submeter-se a si mesmo como razão pura. No agir ético,
o humano cria a si mesmo e assume a si mesmo como único fim e jamais um meio. O
humano, em seu agir ético, é livre como autor de sua lei, criador de sua
própria natureza e como aquele que toma sua existência como fim de si mesmo.
Kant
faz uma diferenciação entre pessoa e
coisa como dois modos fundamentais
do ente. Nesse sentido, ele reflete a distinção cartesiana entre a res extensa, a substância extensa e
material da natureza e a res cogitans,
a substância espiritual pensante. A partir da distinção entre pessoa e coisa, surge
a diferenciação entre a causalidade da
natureza e a causalidade da
liberdade. A pessoa não é uma coisa, as pessoas são fins em si mesmas e
constituem uma comunidade de seres livres.
Desde
de Descartes, a diferença entre res
cogitans e res extensa foi
acentuada e transformada em fio condutor da problemática filosófica. Isso
revela um reconhecimento, ainda que na esfera da compreensão vulgar, da
diferença ontológica entre a constituição do ser do da natureza e a
constituição do ser do ser-aí.
À
constituição ontológica do ser-aí pertence o ser-no-mundo, a característica do ser-no-mundo como estrutura
fundamental do ser-aí deixa claro que todo comportar-se em relação ao ente
intramundano, isto é, todo comportamento intencional em relação ao ente, está
fundado na constituição fundamental do ser-no-mundo. À intencionalidade como comportamento em relação ao ente pertence uma
compreensão de ser do ente que está
em conexão com a compreensão de mundo.
TESE
IV – A TESE DA LÓGICA: INDEPENDENTE DE SEU RESPECTIVO MODO DE SER, TODO ENTE
PODE SER INTERPELADO DISCURSIVAMENTE POR MEIO DO “É”; O SER DA CÓPULA
Aristóteles
concebeu o ser no sentido do “é” do enunciado no pensamento que liga, o ser é
entendido como um conceito de ligação. O “é”, nesse sentido, significa uma
síntese e a síntese é na cópula, que o entendimento realiza como unificador, e
esse “é” não é um ente entre outros entes, mas um ente que é, por assim dizer,
um estado do pensamento.
Thomas
Hobbes, por sua vez, compreende que o “é” constitui o componente simples de
uma proposição. O “é” funciona como um sinal psíquico por meio do qual o orador
indica que ele compreende o fato de o nome
posterior (predicado) denominar a mesma coisa que o nome anterior (sujeito). O nome anterior pode ser compreendido como
nome concreto, que designa a coisa mesma
e o nome posterior é o nome abstrato, que
designa o fundamento presente na coisa subjacente do nome concreto. Os nomes
abstratos expressam o ser-o-que, a quidade e eles só podem se dar graças ao “é”
da cópula. A cópula indica o fundamento da junção de diversos nomes para a
mesma coisa. Uma proposição é considerada verdadeira,
quando a conjunção dos nomes, sujeito e predicado, se liga à mesma coisa e falsa, quando os nomes conjugadas se
referem a coisas diferentes. Todas as proposições enunciam o ser-o-que de modo
que o “é” significa o mesmo que essência.
John
Stuart Mill entende que na proposição, um predicado é dito de um sujeito de
maneira afirmativa ou negativa. Nesse caso, é preciso que haja um sinal dessa
predicação, a função predicativa é exercida pelo termo “é”, quando se trata de
uma afirmação, e pelos termos “não é”, no caso de uma negação. Mill distingue
dois tipos de proposições: (i) as proposições
essenciais ou literais: são as
proposições analíticas ou efetivas, as definições; (ii) as proposições acidentais: são as proposições sintéticas. A
proposição enquanto proposição efetiva enuncia algo sobre um existente de modo
que o “é” designa a existência.
Herman
Lotze, por outro lado, propôs a doutrina
do juízo duplo ao tratar do ser da cópula. Lotze entende que uma cópula
negativa é impossível, pois uma negação não é um modo de ligação. Nesse caso, o
juízo negativo seria, na verdade, um juízo que dependeria de um juízo positivo.
Assim, haveria um juízo duplo, à base de um juízo negativo residiria sempre um
juízo positivo. “S não é P” teria como base o juízo anterior “é falso que S é
P”, mesmo o juízo positivo seria duplo: “S é P” teria como base o juízo “é
verdade que S é P”. Todo juízo é, por assim dizer, duplo. O ser significaria o
ser verdadeiro ou falso enunciado na ideia secundária de todo juízo.
Assim, a partir da discussão do “é”
da cópula surge a questão da verdade.
Entendemos que a verdade proposicional é um sentido secundário de verdade que
depende de um fenômeno mais originário da verdade: o desvelamento. O enunciado pressupõe o desvelamento do ente. O
desvelamento do ente simplesmente dado é a descoberta,
o desvelamento do ser-aí é o descerramento. Ser verdadeiro significa
desvelamento. O ser-aí existe na verdade, isto é, no desvelamento de si mesmo e
do ente com o qual ele se relaciona.
Não existe verdade sem o ser-aí,
pois só o ser-aí é ser-descobridor. Desse modo, não se pode falar em algo como
“verdades eternas”. Até entendemos que a crença em verdades eternas seja uma
forma de reação ao relativismo e ceticismo e, de fato, devemos nos opor ao
relativismo. Mas não podemos, segundo o sentido originário de verdade, falar em
verdades eternas. Verdade é desvelamento, o desvelamento do ser-aí é o
descerramento, o desvelamento dos demais entes é a descoberta. Assim, em
relação às coisas do mundo, verdade é descoberta. Isso significa que antes que
o ser-aí descobrisse que 2+2 era igual a 4, ou que Aristóteles descobrisse as
leis da lógica, ou que Newton descobrisse a gravidade, nem 2+2=4, nem a lógica,
nem a gravidade eram verdadeiras, elas não eram verdadeiras antes de terem sido
descobertas, mas sua própria descoberta é que as fizeram verdadeiras. Nesse
caso, só há verdade enquanto há um ser-aí descobridor. Talvez se fale da
possibilidade de um ser-aí eterno, mas isso não pode ser provado. Portanto, se
a verdade só existe na medida em que há um ser-aí descobridor e se não existe
algo como um ser-aí eterno, não existem verdades eternas.
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