HISTÓRIA DA SEXUALIDADE II: O USO DOS PRAZERES (RESUMO)



       O que se segue é um resumo do livro História da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres do filósofo e historiador Michel Foucault. Neste segundo tomo desta importante obra, Foucault trata da maneira pela qual a atividade sexual foi problematizada pelos filósofos e pelos médicos, na cultura grega clássica, no Século IV a. C. mostrando que os gregos se interrogaram sobre o comportamento sexual como questão moral e procuraram definir a forma de moderação para tanto exigida.


INTRODUÇÃO
1. MODIFICAÇÕES

        O objetivo deste trabalho não era o de reconstruir uma história das condutas e das práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas, nem o de analisar as ideias científicas, religiosas ou filosóficas através das quais foram representadas essas práticas, mas de deter-se na noção recente de "sexualidade". O próprio termo "sexualidade" surgiu só no início do Século XIX, o uso da palavra foi estabelecido em relação ao desenvolvimento de diferentes campos de conhecimentos, à instauração de um conjunto de normas apoiadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas e às mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido às suas experiências. O projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto experiência em sua correlação com os campos de saber, os tipos de normatividade e as formas de subjetividade.
       No entanto, para compreender como o indivíduo moderno faz a experiência de si mesmo como sujeito de uma “sexualidade”, seria necessário entender a maneira pela qual o homem ocidental, ao longo dos séculos, foi levado a se reconhecer como sujeito de desejo. Assim, foi necessário fazer modificações no projeto de modo a empreender uma genealogia do homem de desejo, desde a Antiguidade clássica até os primeiros séculos do Cristianismo. Isso será feito em três partes: (1) Uso dos Prazeres: trata da maneira pela qual a atividade sexual foi problematizada pelos filósofos e pelos médicos, na cultura grega clássica, no Século IV a. C.; (2) O cuidado de si: problematiza os textos gregos e latinos dos dois primeiros séculos de nossa era; (3) Confissões da carne: trata da formação da doutrina e da pastoral da carne.

2. AS FORMAS DE PROBLEMATIZAÇÃO

       Acredita-se que a natureza do ato sexual, fidelidade monogâmica, relações homossexuais e a castidade tenham sido preocupações da moral cristã enquanto os antigos “pagãos” não teriam tido a mesma preocupação. Isso não é exato. Numa escala histórica pode-se acompanhar preocupações que marcaram a moral cristã, mas que já estavam claramente presentes no cerne do pensamento greco-romano. Pode-se perceber isso em quatro temas:
(i) A expressão de um medo: Os antigos temiam que o ato sexual desregrado pudesse produzir efeitos nocivos na vida do indivíduo.
(ii) Um modelo de comportamento: A fidelidade conjugal era ensinada por algumas correntes filosóficas e apreciado como manifestação de virtude.
(iii) A imagem de uma atitude desqualificada: Houve desde a Antiguidade um estereótipo negativo do homem “afeminado”.
(iv) Um exemplo de abstinência: Na Antiguidade pagã já existia a figura do herói virtuoso que renuncia ao prazer sexual.
      Entretanto, não se deve concluir a partir disso uma continuidade entre o paganismo e o Cristianismo, deve-se antes considerar que, bem cedo, na reflexão moral da Antiguidade, formou-se uma "quadritemática” em torno e a propósito da vida do corpo, da instituição do casamento, das relações entre homens e da existência de sabedoria e que essa quadritemática guardou, através do tempo, uma certa constância. É preciso questionar ao longo deste estudo por que esses quatro temas foram objetos de uma problematização intensa da prática sexual.


3. MORAL E PRÁTICA DE SI

       Por "moral" entende-se um conjunto de valores e regras, um código moral, quer sistematizado, quer difuso, que é proposto aos indivíduos e aos grupos por intermédio de diferentes aparelhos prescritivos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc. Porém, por "moral" entende-se também o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos.
       No entanto, existem diferentes formas pela qual se pode conduzir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código. Elas concernem ao que se poderia chamar determinação da substância ética, isto é, a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta moral.
       As diferentes formas de condução podem dizer respeito: (i) ao modo de sujeição, isto é, à maneira pela qual o indivíduo estabelece sua relação com essa regra e se reconhece como ligado à obrigação de pô-la em prática, (ii) às formas de elaboração do trabalho ético que se efetua sobre si mesmo para tentar se transformar a si mesmo em sujeito moral de sua própria conduta e (iii) à teleologia do sujeito moral na medida em que uma ação é moral pela sua inserção e pelo lugar que ocupa no conjunto de uma conduta que leva o indivíduo a um certo modo de ser característico do sujeito moral. Desse modo, para ser considerada "moral" uma ação não deve se reduzir a um ato ou a uma série de atos conformes a uma regra, lei ou valor, a ação moral é indissociável dessas formas de atividades sobre si.

I. A PROBLEMATIZAÇÃO MORAL DOS PRAZERES

      Pode-se considerar quatro noções que frequentemente se encontram nos gregos na reflexão sobre a moral sexual:
1. Aphrodisia: A partir desta noção pode-se apreender o que, no comportamento sexual, era reconhecido como "substância ética". Os aphrodisia são "as obras", "os atos de Afrodite". Os aphrodisia são atos, gestos, contatos, que proporcionam uma certa forma de prazer. De forma geral, a atividade sexual é percebida pelos gregos como natural e indispensável.
2. Chrésis: Esta noção permite aprender o tipo de sujeição ao qual a prática dos prazeres sexuais deveria submeter-se para ser moralmente valorizada. A chrésis é o “uso dos prazeres”, é o cuidado com uma tripla estratégia: (i) a estratégia da necessidade: satisfação dos desejos em conformidade com a natureza; (ii) estratégia do momento: determinar o momento oportuno para satisfação dos desejos; e (iii) estratégia do status: a modulação arte do prazer tendo em consideração aquele que a usa segundo seu status.
3. Enkrateia: Esta noção define a atitude que se deve ter a respeito de si mesmo para constituir-se como sujeito moral. Enkrateia se refere ao “bom uso dos prazeres”. A enkrateia se caracteriza sobretudo por uma forma ativa de domínio de si que permite resistir ou lutar e garantir sua dominação no terreno dos desejos e dos prazeres, é uma atitude de combate em relação aos prazeres, é uma batalha interna, um exercício de domínio de si.
4. Sōphrosunē: Esta noção caracteriza o sujeito moral em sua realização. A sōphrosunē é o estado que se tende a alcançar pelo exercício do domínio e pelo comedimento na prática dos prazeres, este estado é caracterizado como uma liberdade. Ser livre em relação aos prazeres é não estar a seu serviço, é não ser seu escravo, na sua forma plena e positiva a liberdade é poder que se exerce sobre si e sobre os outros.
       A partir daqui a conduta sexual será tratada considerando: (i) a Dietética: a relação com o próprio corpo; (ii) a Econômica: a questão do casamento e (iii) a Erótica: o uso dos prazeres com os rapazes, isto é, com o mesmo sexo.

II. DIETÉTICA

       A "dieta", o regime, é uma categoria fundamental através da qual pode-se pensar a conduta humana; ela caracteriza a maneira pela qual se conduz a própria existência, e permite fixar um conjunto de regras para a conduta.  Definiu-se com o tempo que o domínio de um regime deve compreender os exercícios, os alimentos, as bebidas, os sonos e as relações sexuais. Nestes diferentes campos, o regime tem que estabelecer uma medida. Os regimes podem cometer excessos de modo que seu objetivo é tornar a vida útil e feliz nos limites que lhe foram fixados. A dietética é uma técnica de existência que não se contenta em transmitir os conselhos de um médico para um indivíduo que iria aplicá-los passivamente, o regime enquanto arte de viver é toda uma maneira de se constituir como um sujeito que tem por seu corpo o cuidado justo, necessário e suficiente.
      A dietética problematiza a prática sexual, não como um conjunto de aios a serem diferenciados segundo suas formas e o valor de cada um, mas como uma "atividade" que se deve deixar fluir ou frear de acordo com referências cronológicas. Não se trata de fixar, uniformemente e para todos, os "dias úteis" do prazer sexual; mas de calcular da melhor maneira os mementos oportunos e as frequências que convêm.
       A necessidade de recorrer a um regime cuidadoso, e dar à prática sexual uma atenção vigilante, é justificada por duas séries de razões em que se manifestam, quanto aos efeitos dessa atividade, uma certa inquietação: (i) as consequências do ato sexual para o corpo do indivíduo no sentido de que dependendo do uso que se faz do próprio corpo pode originar doenças e; (ii) o cuidado com a progenitura, pois, ao admitir-se que a natureza organizou a conjunção dos sexos para assegurar a descendência dos indivíduos e a sobrevivência da espécie, reconhece-se que essa descendência é frágil e que é perigoso, para o indivíduo, obter seu prazer ao acaso.        
       No entanto, se o uso dos prazeres constitui um problema na relação do indivíduo com seu próprio corpo e para a definição de seu regime físico, a razão não está simplesmente no fato de que se suspeite de que esse uso possa ser a origem de certas doenças ou de que se receie suas consequências sobre a progenitura. Existe uma inquietação que recai sobre o próprio ato sexual, essa inquietação gira em torno de três focos:
(i) A própria forma do ato sexual:  A reflexão médica e filosófica descreve o ato sexual como capaz de ameaçar, devido à sua violência.
(ii) O custo que o ato sexual provoca: na medida em que, ao expulsar seu sêmen o indivíduo se priva de elementos que são de grande valia para a sua própria existência.
(iii) a morte à qual está ligado:  O ato sexual também se liga à morte no próprio princípio da reprodução, na medida em que coloca como finalidade da procriação paliar o desaparecimento dos seres vivos e dar à espécie, tomada no seu conjunto, a eternidade que não pode ser concedida a cada indivíduo. Assim, a atividade sexual se inscreve no amplo horizonte da morte e da vida, ela se torna necessária porque o indivíduo é destinado a morrer e para que, de certa maneira, ele escape à morte.

III. ECONÔMICA

       A definição daquilo que era permitido, proibido e imposto aos esposos pela instituição do casamento, em matéria de prática sexual, era bastante simples e bastante claramente dissimétrica. Toda a atividade sexual das mulheres enquanto esposas deveria se situar no interior da relação conjugal tendo seu marido como parceiro exclusivo. Elas se encontravam sob o seu poder; é a ele que devem dar filhos que serão seus herdeiros e cidadãos. Ao homem, no entanto, não pesava a obrigação de ter sua mulher como parceira exclusiva de modo que o adultério como uma infração que uma mulher poderia cometer é o status matrimonial da mulher, jamais o do homem, que permite definir uma relação como adultério de modo que o princípio de “fidelidade recíproca” não existia entre os gregos. No entanto, alguns textos exigem da parte do homem pelo menos uma certa forma de moderação sexual.

IV. ERÓTICA

       A noção de homossexualidade não é muito adequada para entender o uso dos prazeres na relação com os rapazes. Os gregos não opunham, como duas escolhas excludentes, como dois tipos de comportamento radicalmente diferentes, o amor ao seu próprio sexo ao amor pelo sexo oposto. Costuma-se ligar estreitamente o amor grego pelos rapazes à prática da educação e ao ensino filosófico, no entanto, mesmo antes de serem levadas em conta pela reflexão filosófica, essas relações já eram pretexto de todo um jogo social. Diferente da vida matrimonial, a relação entre homens e rapazes trata-se de um jogo aberto não preso a uma estrutura relacional. Em torno das relações com os rapazes foram formadas práticas de "corte" entre o amante, a quem cabe toma a inciativa mostrando seu ardor moderadamente e o amado a quem cabe evitar ceder com facilidade.
      Existe um isomorfismo entre a relação sexual com os rapazes, pensada sobre o modelo da atividade e passividade, com as relações sociais entre aquele que domina e aquele que é dominado. De modo que aquele que penetra é associado à superioridade e aquele que é penetrado é associado à inferioridade, restando à mulher o papel de inferioridade.

V. O VERDADEIRO AMOR

       A reflexão filosófica a respeito do amor pelos rapazes comporta um paradoxo histórico. Os gregos atribuíram a esse amor masculino uma legitimidade que lhes dava liberdade nesse domínio, mas ao mesmo tempo, foi a respeito do amor masculino que os gregos formularam a exigência das mais rigorosas austeridades, o ideal de uma “abstinência indefinida”. Vê-se formar, na cultura grega e a respeito do amor pelos rapazes, alguns dos elementos mais importantes de uma ética sexual que o rejeitará em nome precisamente desse princípio: exigência de uma simetria e de uma reciprocidade na relação amorosa, a necessidade de um combate difícil e de muito fôlego consigo mesmo, a purificação progressiva de um amor que só se dirige ao próprio ser em sua verdade, e a interrogação do homem sobre si mesmo enquanto sujeito de desejo.

CONCLUSÃO

      O que se conclui é que no campo das práticas reconhecidas a do regime, a da gestão doméstica, a da corte aos rapazes e a partir das reflexões que tendiam a elaborá-las, os gregos se interrogaram sobre o comportamento sexual como questão moral, e procuraram definir a forma de moderação para tanto exigida. No pensamento grego clássico fica claro que é a relação com os rapazes que constitui o ponto mais delicado e o núcleo mais ativo de reflexão e de elaboração; é aí que a problematização exige as formas de austeridade mais sutis. Ora, no curso de uma evolução muito lenta podemos ver esse núcleo se deslocar: é em torno da mulher que pouco a pouco os problemas irão se centrar.

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