HISTÓRIA DA SEXUALIDADE III: O CUIDADO DE SI (RESUMO)


       O que se segue é um resumo do livro História da Sexualidade III: O Cuidado de Si do filósofo e historiador Michael Foucault. Neste livro Foucault problematiza como a atividade sexual era vista pelos gregos e latinos nos dois primeiros séculos de nossa era. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.

I. SONHAR COM OS PRÓPRIOS PRAZERES 

       Este livro começará com a análise do livro Chave dos Sonhos de Artemidoroum tratado para interpretar sonhos. Artemidoro distingue duas formas de visões noturnas: (i) os sonhos do desejo (enupnia): que são uma expressões dos afetos e, (ii) os sonhos do ser (oneiroi)ele diz o que já é, no encadeamento do tempo e o que se produzirá num futuro mais ou menos próximo. Existem sonhos que são mais claros não necessitando de interpretação e outros que precisam ser decifrados. A decifração dos sonhos se faz por meio da analogia, na aproximação entre o semelhante e o semelhante. 
      Ao considerar os sonhos sexuais, Artemidoro organiza sua análise em torno da distinção de três tipos de atos: (i) atos conformes à lei: comporta os atos conjugais, as relações com um amante, como a relação ativa e passiva, com um outro homem e a masturbação. (ii) atos contrários à lei: envolve os atos incestuosos. (iii) atos antinaturais: envolve os atos sexuais que se afastam daquele fixado pela natureza, isto é, os atos contrários à conjunção face-a-face, na qual o homem fica estendido sobre a mulher, é o caso do sexo oral. Os atos antinaturais incluem ainda relações com os deuses, com os animais, com os cadáveres, a autopenetração e as relações entre duas mulheres.  
       Para Artemidoro, o sonho sexual pressagia o destino do sonhador na vida social, além disso, na própria prática interpretativa o sonho é analisado como um cenário social. A interpretação dos sonhos sexuais implica a sua decomposição e análise em seus elementos (personagens e atos) que são, por natureza, elementos sociais de modo que os sonhos sexuais servem de prognóstico do destino social daquele que sonho. Por exemplo, se alguém sonha que está fazendo sexo no papel ativo isso pode significar que ele ocupará um lugar de domínio da sociedade, enquanto sonhar que se ocupa o lado passivo da relação sexual pode significar o contrário.

II. A CULTURA DE SI 

    Nos textos dos dois primeiros séculos encontram-se uma desconfiança diante dos prazeres, uma insistência sobre os efeitos de seu abuso sobre o corpo e para a alma, uma valorização do casamento e das obrigações conjugais, uma desafeição com relação às significações espirituais atribuídas ao amor pelos rapazes. Essas exigências de austeridade sexual parecem estar relacionadas com o desenvolvimento daquilo que pode ser chamado de “cultura de si”, na qual foram intensificadas e valorizadas as relações de si para consigo mesmo.         
       Tal cultura se fundamenta no princípio de cuidar de si mesmo e mantém uma relação estreita com o pensamento e a prática médica. Na cultura de si, o aumento do cuidado médico foi expresso por uma atenção particular e intensa com o corpo. Além disso, na cultura de si, o autoconhecimento e o autoexame ocupam um lugar importante. O objetivo comum dessas práticas de si pode ser caracterizado pelo princípio do bem geral da conversão de si. Esta relação consigo diz respeito ainda a uma ética do domínio, alguém que conseguiu, finalmente, ter acesso a si próprio é, para si, um objeto de prazer. 

       III. EU E OS OUTROS 

      Na Grécia e em Roma, o casamento era um ato privado que não exigia a intervenção dos poderes públicos, no entanto, progressivamente o casamento foi tomando lugar no interior da esfera pública nessas sociedades. Muitos textos mostram que a vida matrimonial na época do Império Romano é interrogada como um modo de vida cujo valor não é exclusivamente ligado à casa (oikos), mas sim a um modo de relação entre dois parceiros, além disso, esses textos mostram que o homem deve regular sua conduta não somente a partir de funções domésticas, mas a partir de um papel relacional em relação à sua mulher inserindo-se em um jogo de reciprocidade. 
       No contexto, político, ocorrem importantes transformações no mundo grego e romano. Primeiro, há uma relativização do poder em dois sentidos: (i) mesmo se, pela própria origem alguém está destinado aos cargos públicos, é bom dedicar-se a esse cargo por um ato livre e pessoal de vontade; (ii) com exceção do príncipe, o poder é exercido no interior de uma rede onde se ocupa uma posição de mediação na qual sempre se é governante e governado. Segundo, defende-se que para que uma cidade seja bem governada, é necessário que o governante seja virtuoso. Terceiro, entende-se que o essencial da atitude que convém ter a respeito da atividade política deve ser relacionado com o princípio geral de que o que se é não se é pelo cargo que se ocupa, mas um princípio ao mesmo tempo singular e universal.  
       Através dessas mudanças na prática matrimonial e no contexto político, a reflexão sobre o uso dos prazeres que estava diretamente ligada ao domínio de si, da casa e dos outros, sofrerá modificações. A partir daí as relações serão reestruturadas e se darão de outras formas.  

IV. O CORPO 

        Na época dos flavianos e antoninos, a Medicina era um corpo de saber e regras que buscava definir uma maneira de viver, um modo de relação refletida consigo e com o próprio corpo, propondo, assim, sob a forma de um regime, uma estrutura voluntária e racional de conduta. É neste contexto marcado pela solicitude com o corpo e com a saúde que a Medicina coloca a questão dos prazeres sexuais. 
      Galeno considerava as relações sexuais como uma forma de superar o obstáculo da imortalidade pela possibilidade da geração. Esta forma de superar o obstáculo da imortalidade faz funcionar três elementos: (i) os órgãos sexuais que servem para a fecundação; (iiuma capacidade de prazer que é extraordinária e muito vívida e (iiidesejo que existe na alma de se servir dos órgãos sexuais.  
       Para Galeno, o ato sexual por seu mecanismo faz parte da família das convulsões de modo a fazer uma analogia entre a epilepsia e o ato sexual. Além disso, ele acredita poder haver uma relação de causalidade entre os atos sexuais e as convulsões de modo que convulsões podem provocar espasmos sexuais e atos sexuais fora do momento oportuno podem gerar convulsões. Assim, ao mesmo tempo que as relações sexuais são compreendidas como uma forma de superar a imortalidade por meio da reprodução, elas são situadas em relação a um conjunto de doenças. Observa-se, desse modo, no pensamento médico uma ambivalência que por um lado valoriza positivamente os prazeres sexuais e por outro compreende as práticas sexuais como patológicas. Além disso, havia entre os médicos uma tendência de atribuir efeitos positivos à abstenção sexual. 
      Os atos sexuais são assim submetidos a um regime cauteloso, embora não essencialmente normativo, em relação ao qual pode se considerar quatro variáveis: (i) a do momento útil para a procriação: o ato sexual deveria ser praticado com precaução para que que a reprodução e a primogenitura tivessem boas condições; (iia da idade do sujeito: as relações sexuais são perigosas se forem praticadas quando se é muito jovem ou muito velho. (iiia do momento favorável: existem estações e horários do dia em que se deve abster dos atos sexuais e outros em que tais práticas são aceitáveis. (iva do temperamento individual: para se ter uma natureza apta ao coito convém-se  submeter-se a todo um regime de exercícios adequados e de alimentação. 
      No entanto, não é só com o corpo que o regime proposto para os prazeres sexuais se ocupa, a alma tem seu papel com o qual os médicos se preocupam. A alma precisa corrigir-se para que possa conduzir o corpo corretamente. Os médicos discutem três elementos pelos quais o indivíduo corre o risco de ser arrebatado para além de suas necessidades atuais: (i) o movimento do desejo: o corpo pode ser levado por um desejo que não tenha correlativo na alma ou a alma pode ir além das necessidades do corpo, para evitar isso deve haver uma subordinação estrita dos desejos da alma à necessidade do corpo. (ii) a presença das imagens: existem imagens que podem excitar na alma desejos além da necessidade do corpo de modo que a luta contra estas imagens é necessária para a garantia da boa conduta sexual. (iii) o apego ao prazer sexual: o prazer sexual pode ser buscado com excesso de modo que o prazer não deve ser a razão pela qual se patica o ato sexual, mas sim algo que acompanha o ato sexual. 

V. A MULHER 

       Nos dois primeiros séculos a arte da existência matrimonial apresenta algumas novidades: (i) mesmo continuando a dizer respeito à casa, valoriza-se cada vez mais a relação pessoal entre os dois esposos, (iio princípio de moderação na conduta de um homem casado se situa mais nos deveres de reciprocidade do que no domínio sobre os outros e (iii) o casamento, na forma de um vínculo de simetria, passa a conferir um lugar relativamente mais importante aos problemas das relações sexuais entre esposos. Assim, nessa arte de estar casado a mulher é valorizada como outro por excelência, mas o marido deve reconhecê-la também como formando uma unidade com ele. 
       Através das reflexões sobre o casamento nos dois primeiros séculos, especialmente em textos estoicos, a relação entre os esposos passa a ser definida como: (i) uma relação dual: a dualidade conjugal é encontrada ao longo da existência humana em todos os seus aspectos sendo uma constituição originária que a natureza lhe deu.  (2) uma relação universal: o vínculo matrimonial é a regra universal, sua obrigação se baseia tanto em que o casamento é natural quanto no fato de que o casamento é um dever que o homem tem enquanto membro de uma comunidade. (3) uma relação singular: o vínculo matrimonial é pensado como mais estreito e mais fundamental do que qualquer outro.  
      Embora seja raro o princípio de que o sexo é legítimo somente no casamento, existe a perspectiva de que o casamento constitui para o ser humano o único quadro legítimo da conjunção sexual de modo que o casamento demanda o monopólio do prazer. Três traços fundamentais marcam a ética da existência conjugal desenvolvida por alguns moralistas da época imperial: (i) um princípio monopolístico: nada de relações sexuais fora do casamento; (iiuma exigência de des-hedonizaçãoque as conjunções sexuais entre esposos não obedeçam a uma economia do prazer; (iiiuma finalização procriadora: que as conjunções sexuais tenham por objetivo o surgimento de uma progenitura.  

IV. OS RAPAZES 

          Com a intensificação do valor da atividade sexual nas relações conjugais começa-se a interrogar de modo cada vez mais dubitativo os privilégios antes reconhecidos em relação ao amor pelos rapazes. Por exemplo, Plutarco em seu Diálogo sobre o amor esforça-se para constituir uma erótica unitária organizada sobre o modelo da relação marido-mulher, buscando mostrar que o amor encontra no casamento sua realização perfeita de modo que ele não poderia tomar lugar, pelo menos em sua forma completa, na relação com os rapazes. No texto os Amores atribuído a Luciano, há dois discursos, um em defesa das mulheres e outro dos rapazes em que o discurso a favor do amor pelos rapazes vence o debate, no entanto, a época desses textos manifesta um declínio em relação à valorização do amor pelos rapazes. 

CONCLUSÃO 

      Pode-se perceber que no refinamento das artes de viver e o cuidado de si, são esboçados alguns preceitos bem próximos daqueles que serão formulados nas morais posteriores, como o entendimento de que a atividade sexual encontra sua realização natural e racional no casamento. No entanto, estes preceitos ainda são diferentes daquilo que será encontrado mais tarde no Cristianismo que definirá outras modalidades de relação consigo. 



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