QUEEROCRACIA LIBERTÁRIA
Este ensaio propõe uma visão política e social denominada Queerocracia Libertária, que tenta conciliar dois paradigmas aparentemente antagônicos: o libertarianismo e a Queerocracia. De um lado, o libertarianismo, que se baseia na defesa da liberdade individual, da autopropriedade e dos direitos de propriedade adquiridos legitimamente. De outro, a Queerocracia, conforme apresentada por Comrade Josephine e Luce delire (2023), que visa à coletivização da economia libidinal, à abolição da propriedade privada e a uma reorganização profunda das formas de subjetividade e desejo.
Fundamentos do Libertarianismo
O libertarianismo, especialmente na formulação de Robert Nozick, defende que o livre mercado é intrinsecamente justo e que a tributação redistributiva é moralmente errada, pois viola os direitos individuais. Segundo Will Kymlicka (2002), essa visão é sustentada por três princípios centrais:
(1) Aquisição Justa Inicial: Apropriação legítima de recursos anteriormente não possuídos.
(2) Transferência Justa: Transferências voluntárias (como vendas e doações) são válidas.
(3) Correção de Injustiças: Reparações são necessárias quando há aquisição ou transferência injusta.
Nozick defende que o único Estado legítimo é o Estado mínimo, cujas funções se limitam à proteção contra violência, fraude e à garantia de contratos. Ele ilustra isso com o exemplo de Wilt Chamberlain: se as pessoas escolhem voluntariamente pagar para vê-lo jogar, a renda obtida é moralmente legítima. Tributá-lo para redistribuição, mesmo que beneficie os menos favorecidos, violaria seus direitos de propriedade e sua autonomia como fim em si mesmo, uma leitura que Nozick vincula ao imperativo kantiano.
A Visão da Querocracia
A Queerocracia, por sua vez, parte da crítica de que o neoliberalismo (entendido aqui como o Capitalismo pós-1970, e não como o libertarianismo) constitui um regime de "totalitarismo negativo", um sistema que privatiza até mesmo os afetos e desejos, transformando o gozo em ativo e o corpo em propriedade libidinal explorável. Como alternativa, propõe-se o "Totelitarianismo Rosa, uma forma afirmativa e insurgente de coletivização radical da vida afetiva. Comrade Josephine e Luce deLire (2003) propõem os seguintes elementos centrais:
(1) Redistribuição do capital libidinal: O gozo, a sedução, o prazer e o poder de atrair são vistos, na Queerocracia, como formas de capital desigualmente distribuídas, que devem ser redistribuídas em larga escala, não por meio de bens materiais, mas por meio da manipulação e difusão de estruturas afetivas e simbólicas.
(2) Sabotagem da forma do casal: A monogamia, o casamento e a família nuclear são entendidos como formas de reprodução da propriedade e do desejo privatizado. A Queerocracia visa desestabilizar essa forma social central ao capitalismo afetivo. Portanto, dentro da Queerocracia, a monogamia e a família seriam abolidas.
(3) Intervenção hormonal e desnaturalização do sexo: A transição de gênero, os bloqueadores hormonais e as próteses sexuais são exaltados como tecnologias insurgentes de sabotagem da naturalização sexual binária e da reprodutibilidade heterossexual. Se decidido em assembleia, por exemplo, bloqueadores de testosterona poderiam ser introduzidos na água da população, o que permitiria uma agricultura libidinal.
(4) Tomada dos meios de produção libidinal: Inclui a ocupação simbólica e material de setores como o entretenimento, a pornografia, as redes sociais, a estética digital e a indústria farmacêutica, para reconfigurar a economia do desejo em favor de subjetividades quer.
(5) Reprogramação da sensibilidade e da forma subjetiva: A subjetividade não é considerada um dado, mas uma construção política histórica, o que justifica a reorganização coletiva da percepção, dos afetos e da identidade. A Queerocracia seria o espaço de florescimento de novos modos de subjetividade.
A Querocracia Libertária em um Modelo Panárquico
Essa forma de reorganização não é, no entanto, proposta como um projeto totalitário coercitivo. Uma Queerocracia libertária seria possível dentro de um modelo panárquico, como o defendido por Paul-Émile de Puydt (1860). Sua teoria da panarquia propõe um sistema político baseado na livre concorrência entre governos, onde os indivíduos poderiam escolher livremente o regime a que desejam se submeter, sem precisar mudar de território.
O que torna o Estado ilegítimo é que ele não é escolhido. Como observa Michael Huemer (2012), o Estado não tem autoridade legítima, visto não ser escolhido, mas imposto coercitivamente. Em The Problem of Political Authority, Michael Huemer (2012) argumenta que a autoridade política é uma ilusão moral, pois não há justificativa plausível para que o Estado possua um direito especial de coagir seus cidadãos. Ele sustenta que ações como impor regras e punir transgressores, se realizadas por indivíduos comuns, são moralmente inaceitáveis, e que o Estado não deveria ser exceção. Com isso, Huemer adota o anarquismo filosófico, rejeitando a obrigação moral de obedecer ao Estado e sugerindo alternativas baseadas na cooperação voluntária.
No panarquismo, por outro lado, as pessoas escolhem de que tipo de sociedade fazer parte. Não há um Estado que coercitivamente impõe a todos no território uma forma de organização social específica. Assim, uma Queerocracia libertária seria uma comunidade política optativa, voluntária e não coercitiva, operando dentro de uma moldura panárquica mais ampla. Puydt acreditava que, assim como se pode escolher uma religião, poder-se-ia escolher entre uma monarquia, uma república, ou mesmo um regime queerocrático. Isso se sustenta sobre três princípios:
a) Liberdade de escolha política como extensão do laissez-faire: Cada indivíduo teria o direito de escolher viver sob o regime político que mais condiz com seus valores, sem interferir na escolha dos outros.
b) Livre associação de estilos de vida e governança afetiva: Cada indivíduo poderia aderir à forma de organização social que quisesse, por exemplo, livremente aderir à Queerocracia, mesmo que ela rejeite os princípios clássicos da autopropriedade, da propriedade privada ou da liberdade negativa.
c) Competição entre governos: A coexistência de regimes diversos estimularia o aperfeiçoamento, a eficiência e a harmonia, inclusive entre sistemas radicalmente diferentes como o libertarianismo e a Queerocracia. As sociedades iriam competir por membros, tornando-se, cada uma, um melhor lugar para se viver conforme os interesses de seus membros. Essa seria a melhor forma de garantir a satisfação dos interesses, maximizando a felicidade.
Enquanto o panarquismo seria a interestrutura, na qual coexistiriam diferentes formas de organização social, a Queerocracia teria uma estrutura interna própria. Cada indivíduo, ao optar pela Queerocracia, comprometer-se-ia com um conjunto de princípios como: (i) compartilhamento de capital libidinal (visibilidade estética, sexualidade, afetos, prazer, tempo); (ii) sabotagem de formas de opressão afetiva (monogamia compulsória, cisheteronormatividade, competição sexual); (iii) reprogramação coletiva de gênero e prazer, com acesso a biointervenções hormonais, próteses e tecnologias queer; (iv) controle compartilhado dos meios simbólicos (mídia, redes sociais, pornografia, arte e estética).
Esses princípios seriam organizados e regulados por assembleias libidinais, laboratórios de transição e prazer e coletivos de gestão simbólica, todos baseados em filiação voluntária e reversível. Na Queerocracia, os corpos seriam modificados, as distinções de gênero seriam abolidas e o patriarcado, bem como a cisheteronormatividade, seriam desmantelados. Ali, não haverá mais homem, nem mulher, nem família, nem mesmo categorizações de identidades com base em gênero ou orientação sexual. Em vez disso, se construiria uma nova forma de subjetivação, um novo ser humano ou um pós-humano.
A segmentação de gênero, segundo Simone de Beauvoir (1949), surgiu da divisão de trabalho resultante da sedentarização da espécie humana, quando uma parte da espécie que engravidava passou a ficar presa ao âmbito da caverna, enquanto aquele que não tinha útero podia caçar livremente. Assim, para usar expressões de Simone de Beauvoir, nasceu a divisão homem (aquele que transcende a vida pela existência no mundo público) e mulher (aquela condenada a reproduzir a vida no mundo privado). A segmentação de gênero é a razão da opressão de gênero e, por isso, só quando o gênero for abolido poderá ser abolida a opressão de gênero.
A razão fundamental para escolher a Queerocracia é que só ela permite a superação de todas as formas de opressão, pois não poderá haver uma sociedade verdadeiramente livre enquanto existir um mundo segmentado em formas binárias de gênero. Somente a subversão de toda a ordem social instituída pode levar à genuína emancipação da comunidade LGBTQIAP+. Consideremos, contudo, algumas objeções à proposta de uma Querocracia libertária, bem como a resposta a essas objeções:
Objeção 1: A Queerocracia é coletivista e, por isso, antilibertária por essência.
Resposta: Acusa-se a Querocracia de ser uma forma de fascismo queer e, portanto, um coletivismo totalitário, oposto aos princípios do libertarianismo. Em um sistema panárquico, a Queerocracia constitui apenas uma entre diversas opções institucionais, à qual ninguém é obrigado a aderir. Sua proposta de coletivização do desejo aplica-se exclusivamente aos indivíduos que consentem voluntariamente com suas premissas afetivo-políticas. A adesão é livre, e a desfiliação garantida, preservando assim o fundamento libertário da não interferência.
Objeção 2: Intervenções hormonais e redistribuição do gozo violam direitos individuais.
Resposta: Tais práticas, no interior da Queerocracia, são orientadas pelo princípio do consentimento ampliado, que incorpora dimensões afetivas, eróticas e comunitárias da vontade. Nenhum indivíduo externo é afetado, e os participantes têm plena liberdade de entrada e saída. A autonomia individual, longe de ser negada, é reconfigurada a partir da centralidade do afeto, do cuidado mútuo e da deliberação compartilhada. Políticas como intervenções hormonais são decididas coletivamente em assembleias libidinais, espaços de deliberação democrática sobre a gestão do gozo e da libido enquanto bens comuns afetivos, sempre dentro dos limites éticos estabelecidos pela própria comunidade.
Objeção 3: A coexistência de múltiplos regimes no mesmo território geraria caos.
Resposta: Paul Émile de Puydt (1860) já havia demonstrado, com sua analogia entre regimes políticos e religiões, que diferentes formas de organização normativa podem coexistir num mesmo espaço físico sem comprometer a ordem. Assim como a diversidade religiosa é compatível com a paz social, também a diversidade de regimes políticos pode sê-lo, desde que sustentada por mecanismos claros de adesão, registro, jurisdição e desvinculação. No modelo panárquico, essa pluralidade institucional é harmonizada pelo Princípio da Não-Agressão, que estabelece um horizonte ético comum para a convivência entre comunidades distintas. A Queerocracia, nesse contexto, emerge como uma experiência político-afetiva legítima entre outras possíveis: voluntária, delimitada e pacífica.
A Queerocracia libertária, embora pareça à primeira vista uma contradição em termos, pois conjuga coletivismo afetivo com liberdade individual, pode ser concebida dentro de um modelo panárquico, onde cada indivíduo opta voluntariamente por sua forma de vida política e libidinal. Tal regime não pretende ser universal nem imposto, mas sim uma proposta experimental de convivência radical, estética e simbólica, voltada àqueles que desejam se libertar da economia neoliberal do desejo. Como diria Puydt (1860), o verdadeiro problema da política moderna não é “qual regime é o melhor?”, mas sim: quem tem o direito de escolher o próprio regime de vida? A Querocracia, neste cenário, é uma das possíveis respostas, e é a melhor resposta para aqueles que querem viver sem opressão de gênero.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos, vol. 1. [S. l.: s. n.], 1949.
JOSEPHINE, Comrade; DELIRE, Luce. Full Queerocracy Now!: Pink Totaliterianism and the Industrialization of Libidinal Agriculture. e-flux journal, n. 139, abr. 2023. Disponível em: https://www.e-flux.com/journal/139/519528/full-queerocracy-now-pink-totaliterianism-and-the-industrialization-of-libidinal-agriculture/
HUEMER, Michael. The Problem of Political Authority: An Examination of the Right to Coerce and the Duty to Obey. 1. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2012.
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2002.
DE PUYDT, Paul-Émile. Panarquia. 1860. Disponível em: https://www.panarchy.org/depuydt/1860.es.html. Acesso em: 10 jul. 2025.
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