INTRODUÇÃO À LÓGICA TRADICIONAL
O objetivo deste texto consiste em apresentar uma introdução à Lógica Tradicional (aristotélica). Chamamos de Lógica Tradicional à lógica silogística desenvolvida especialmente a partir de Aristóteles e aperfeiçoada por autores medievais. Desde já, é importante desfazer o mito, de origem kantiana, de que a lógica aristotélica não teria passado por nenhum desenvolvimento significativo. Tal concepção é refutada, por exemplo, pelos avanços na quantificação dos predicados promovidos por Teofrasto, discípulo direto de Aristóteles. Também não é correto afirmar que a lógica tradicional aristotélica tenha sido o único sistema lógico vigente na Antiguidade e na Idade Média. Merecem menção, nesse contexto, tanto a lógica dos menários quanto a lógica-ontológica da Ars Magna luliana.
A base da lógica tradicional e a
proposição categórica. A proposição é o conteúdo cognitivo de uma sentença que
pode ser verdadeira ou falsa. Uma proposição categórica, por sua vez, é uma
sentença que afirma ou nega diretamente um predicado a um sujeito, sendo sua
fórmula básica S é P, em que S é o sujeito e P é o predicado. As proposições
categóricas podem ser classificadas quanto à qualidade (afirmativa ou negativa)
e quantidade (singular, particular ou plural). Assim, temos os seguintes tipos
de proposições, com exemplos:
(i) Singular afirmativa:
“Este homem é mortal”
(ii) Singular negativa:
“Não é o caso que este homem seja mortal”
(iii) Particular
afirmativa: “Há pelo menos um homem que é mortal”
(iv) Particular negativa:
“Há
pelo menos um homem que não é mortal”
(v) Universal afirmativa:
“Todo homem é mortal”
(vi) Universal negativa:
“Nenhum homem é mortal”
As proposições singulares não são
utilizadas para compor silogismos. Um silogismo é um argumento dedutivo
composto por três proposições categóricas do tipo particular ou universal, e
por três termos: maior, menor e médio. O termo maior é o predicado da
conclusão, o termo menor é o sujeito da conclusão e o termo médio é aquele que
aparece nas premissas, mas não aparece na conclusão. Assim, há quatro tipos de
proposições que podem compor um silogismo:
A:
Universal afirmativa (Todo S é P)
E:
Universal negativa (Nenhum S é P)
I: Particular
afirmativa (Algum S é P)
O: Particular
negativa (Algum S não é P)
Essas
quatro proposições se relacionam da seguinte maneira:
(i)
Relação de contrariedade (A – E): Proposições que podem ser ambas falsas, mas não podem ser ambas verdadeiras.
(ii)
Relação de subcontrariedade (I – O): Proposições que podem ser ambas
verdadeiras, mas não podem ser ambas falsas.
(iii)
Relações de subalternação (A → I; E → O): Se a
proposição subalternante (A ou E) é verdadeira, a subalternada
(I ou O) também será verdadeira.
O inverso não
se garante: a
verdade de I ou O não assegura a verdade de A ou E.
(iv)
Relação de contradição (A – O; E – I): São
proposições que possuem valores de verdade opostos: se uma é verdadeira, a outra é falsa;
se uma é falsa, a outra é verdadeira.
A
imagem abaixo, denominada como “Quadrado das Oposições”, representa essas
relações:
O
Quadrado das Oposições assume o que se denomina de hipótese existencial, ou seja, que o
sujeito do qual se fala existe.
Assim, as proposições categóricas devem ser lidas sob a forma: “Se existe pelo menos um x tal que x seja S…”.
Sem essa suposição, a implicação
veritativa da subalternação (A → I; E → O) não seria garantida: por
exemplo, de “Todo S é P” não se seguiria “Algum S é P”, se S não existisse. Com
base nessa estrutura, também é possível realizar conversões válidas, ou
seja, substituir uma proposição por outra sem alterar seu valor de verdade, dentro das regras da lógica tradicional.
(1) Conversão Simples: é aquela que mantém a quantidade e inverte o sujeito
e o predicado (E–E: “Nenhum S é P” → “Nenhum P é S”; I–I: “Algum S é P”
→ “Algum P é S”);
(2) Conversão por Limitação: reduz a quantidade universal para particular (A → I: “Todo S é P” → “Algum S é P”; E→ O: “Nenhum S é P” → “Algum P
não é S”).
Assim, temos a seguinte tabela das
conversões:
Tipo de Conversão |
Tipo de Proposição |
Forma Original |
Forma Convertida |
(1) Simples |
E-E |
Nenhum S é P |
Nenhum P é S |
I-I |
Algum S é P |
Algum P é S |
|
(2) Por Limitação |
A→I |
Todo S é P |
Algum P é S |
E→O |
Nenhum S é P |
Algum P não é S |
Um silogismo envolve, como
considerado, também três termos. Observe o seguinte caso:
Premissa
1: Todo ser humano é mortal
Premissa
2: Brasileiros são seres humanos.
Conclusão:
Logo, brasileiros são mortais.
Evitei o exemplo clássicos de
premissa 2 (“Sócrates é mortal”), porque como essa proposição é singular, ela
não pode compor um silogismo em sentido próprio. O termo menor é o sujeito da
conclusão, nesse caso “brasileiros”, enquanto o termo maior é o predicado da
conclusão, ou seja, “mortal”. “Ser humano”, por sua vez, é o termo médio, na
medida em que aparece em ambas as premissas, mas não na conclusão. É o termo médio
que permite a conexão entre o termo menor e o maior, que será explicitada na
conclusão. Para facilitar, podemos agora adotar as seguintes variáveis (S:
termo menor; P: termo maior; M: termo médio). A conclusão de todo silogismo, na
lógica aristotélica tradicional, sempre será “S é P”. Nesse caso, o argumento do exemplo acima
segue a forma:
Premissa
Maior (A): Todo M é P.
Premissa
Menor (A): Todo S é M.
Conclusão
(A): Logo, todo S é P.
Como esse argumento é formado por
três proposições categóricas universais afirmativas, ele é chamado de A-A-A. Os
medievais, para facilitar a memorização das fórmulas válidas de argumentos, deu
a eles nomes que possuem as vogais de cada silogismo. A esse silogismo, deu-se
o nome de BÁRBARA. Podemos representar
o silogismo BÁRBARA por um diagrama de venn da seguinte maneira:
Nesse
contexto, chamamos de figuras, os quatro possíveis arranjos dos três termos
(menor, maior e médio) em silogismos:
Figura |
Disposição dos Termos |
1ª Figura |
Premissa Maior: M – P Premissa Menor: S – M Conclusão: S – P |
2ª Figura |
Premissa Maior: P – M Premissa Menor: S – M Conclusão: S – P |
3ª Figura |
Premissa Maior: M – P Premissa Menor: M – S Conclusão: S – P |
4ª Figura |
Premissa Maior: P – M Premissa
Menor: M – S Conclusão:
S – P |
Diferentes combinações dos tipos de proposições categóricas (A, E, I, O) permitem o total de 64 modos: (4 (premissa maior)×4 (premissa menor)×4 (conclusão)=64 modos). Modos são as formas possíveis de organização lógica de um silogismo categórico, de acordo com o tipo das proposições que o compõem (A, E, I, O), respeitando a estrutura da figura silogística. No entanto, apenas alguns modos por figura são válidos logicamente. Um módulo é válido logicamente quando, sendo as suas premissas verdadeiras, sua conclusão é necessariamente verdadeira. Os silogismos válidos da primeira figura são:
Modo |
Forma |
Nome Mnemônico |
A – A –
A |
Todo M
é P Todo S
é M Logo,
todo S é P |
BARBARA |
E – A –
E |
Nenhum
M é P Todo S
é M Logo,
nenhum S é P |
CELARENT |
A – I –
I |
Todo M
é P Algum S
é M Logo,
algum S é P |
DARII |
E – I –
O |
Nenhum
M é P Algum S
é M Logo,
algum S não é P |
FERIO |
A validade desses quatro modos se baseia em dois princípios fundamentais: (i) dictum de omni: “O que se afirma de todo M se afirma de S”, ou seja. Se uma propriedade ou característica é afirmada para todo o termo médio (M), então essa mesma propriedade pode ser transferida para o sujeito (S) da conclusão, porque tudo que é verdadeiro para M também vale para o conjunto que inclui S; (ii) Dictum de nullo: O que se nega de todo M se nega de S”, ou seja, Se uma propriedade é negada para todo o termo médio (M), essa negação pode ser transferida para o sujeito (S), porque nada que pertence a S pode ter essa propriedade que é negada para todo M. A primeira figura é não derivada, canônica ou fundamental, no sentido de que ela não é derivada de outra figura.
É possível, contudo, por meio de
inferência, derivar dos modos da primeira figura, outros modos válidos de
outras figuras. A tabela abaixo apresenta todos os modos válidos:
Figura |
Modo Válido |
Forma |
Nome Mnemônico |
1ª |
AAA |
Todo M
é P Todo S
é M; ∴ Todo S é P |
Barbara |
EAE |
Nenhum
M é P; Todo S
é M; ∴ Nenhum
S é P |
Celarent |
|
AII |
Todo M
é P; Algum S é M; ∴ Algum S é P |
Darii |
|
EIO |
Nenhum
M é P; Algum S
é M; ∴ Algum S não é P |
Ferio |
|
2ª |
EAE |
Nenhum
P é M; Todo S
é M; ∴ Nenhum S é P |
Cesare |
AEE |
Todo P
é M; Nenhum S é M; ∴ Nenhum S é P |
Camestres |
|
EIO |
Nenhum
P é M; Algum S
é M; ∴ Algum S não é P |
Festino |
|
AOO |
Todo P
é M; Algum S
não é M; ∴ Algum S não é P |
Baroco |
|
3ª |
AAI |
Todo M
é P; Todo M
é S; ∴ Algum S é P |
Darapti |
IAI |
Algum M
é P; Todo M
é S; ∴ Algum S é P |
Disamis |
|
AII |
Todo M
é P; Algum M
é S; ∴ Algum S é P |
Datisi |
|
EAO |
Nenhum
M é P; Todo M
é S; ∴ Algum S não é P |
Felapton |
|
OAO |
Algum M
não é P; Todo M
é S; ∴ Algum S não é P |
Bocardo |
|
EIO |
Nenhum
M é P; Algum M
é S; ∴ Algum S não é P |
Ferison |
|
4ª |
AEE |
Todo P
é M; Nenhum
M é S; ∴ Nenhum S é P |
Camenes |
IAI |
Algum P
é M; Todo M
é S; ∴ Algum S é P |
Dimaris |
|
AEO |
Todo P
é M; Nenhum M é S; ∴ Algum S não é P |
Camenos |
|
EAO |
Nenhum
P é M; Todo M
é S; ∴ Algum S não é P |
Fesapo |
|
EIO |
Nenhum
P é M; Algum M
é S; ∴ Algum S não é P |
Fresison |
Para ilustrar como os modos das demais figuras podem ser derivados
da primeira, façamos a derivação da validade de dois modos da figura 2 a partir de modos da figura 1. Há duas formas de derivação principais: usando conversão simples e usando redução ao absurdo. A conversão por limitação não deve ser usada para esse caso, pois embora ela possa preservar o valor de verdade da proposição, ela não garante a de todo silogismo. Considere, por exemplo, a derivação de Cesare a partir de Celarent usando conversão simples. Celarent
possui a seguinte forma:
Premissa maior: Nenhum M é P (E: M-P)
Premissa menor: Todo S é M (A: S-M)
Conclusão:
Nenhum S é P (E: S-P)
Se aplicarmos a conversão simples
(E-E) na premissa maior, ela pode ser substituída por “Nenhum P é M”, assim
temos:
Premissa
maior: Nenhum P é M (E: P-M)
Premissa
menor: Todo S é M (A: S-M)
Conclusão:
Nenhum S´é P (A: S-P)
Essa
estrutura segue a forma da segunda figura:
Premissa Maior: P – M
Premissa Menor: S – M
Conclusão:
S – P
Visto que
é um EAE da segunda figura, essa fórmula é Cesare. Para faciliar, os argumentos
podem ser escritos da seguinte forma que nos permite saber tanto a figura
quanto o modo
PeM
SaM
SeP
Agora,
para ilustrar outra derivação, façamos a demonstração do silogismo Baroco
(segunda figura) a partir do silogismo Barbara (primeira figura), utilizando a
técnica da redução ao absurdo. A Redução ao absurdo, também chamada de prova
por contradição, é um método de inferência que consiste em assumir o contrário
do que se quer provar, ou seja, supor que a afirmação é falsa. A partir dessa
suposição, desenvolve-se uma cadeia lógica de raciocínios. Se essa cadeia levar
a uma contradição lógica, algo impossível ou falso, como afirmar e negar a
mesma coisa ao mesmo tempo, então a suposição inicial (de que a afirmação era
falsa) está errada. Portanto, a afirmação que se queria provar deve ser
verdadeira.
O
silogismo Barbara tem a seguinte forma:
MaP
SaM
SaP
Por sua
vez, o silogismo Baroco apresenta a forma:
PaM
SoM
SoP
Para
provar a validade do Baroco, utilizaremos a redução ao absurdo. Suponha que as
premissas do Baroco (PaM e SoM) sejam verdadeiras, mas que sua conclusão (SoP)
seja falsa. Como "Algum S não é P" (SoP) é do tipo O, sua negação
(contraditória) é "Todo S é P" (SaP), que, por essa suposição, é
verdadeira. Agora, observe as duas proposições verdadeiras:
Todo P é
M (PaM)
Todo S é
P (SaP)
Essas
duas proposições podem formar um silogismo Barbara, se reorganizarmos os termos
assim:
M=> P
𝑃=> 𝑀
S=>S
Ou seja:
Premissa
maior (MaP): Todo P é M (PaM)
Premissa
menor (SaM): Todo S é P (SaP)
Conclusão
(SaP): Todo S é M (SaM)
Aplicando
Barbara, concluímos, portanto, que: Todo S é M (SaM). Mas isso contradiz a
premissa menor original do Baroco, que é "Algum S não é M" (SoM).
Portanto, chegamos a uma contradição entre SaM e SoM. Por redução ao absurdo,
isso significa que a suposição de que a conclusão do Baroco é falsa dada a
verdade das premissas, está errada. Logo, Barroco é um silogismo válido, isto
é, a verdade de sua conclusão se segue necessariamente da verdade de suas
premissas.
Comentários