LEIA TAMBÉM (CLIQUE NA IMAGEM)

INTRODUÇÃO À FENOMENOLOGIA DE HEGEL


O objetivo deste texto consiste em apresentar uma introdução à Fenomenologia do Espírito de Hegel que possa servir como um roteiro interpretativo para guiar a leitura da obra. Para tanto, esta introdução está estruturada da seguinte forma: 

(1) Questões Metodológicas: Discute a Fenomenologia como a ciência da experiência da consciência, e explica em que consiste o método dialético de Hegel. 

(2) Consciência: discute como a consciência passa por estágios: certeza sensível (imediatismo), percepção (unificação do múltiplo) e entendimento (busca de leis e forças invisíveis). 

(3) Consciência-de-si: trata de como consciência volta-se para si mesma, deseja reconhecimento e passa pela dialética do senhor e escravo, estoicismo, ceticismo e consciência infeliz. 

(4) Razão: discute como a consciência vê o mundo como racional, tenta unificar teoria e prática, passando por formas como razão observadora, legisladora e ativa. 

(5) Espírito: apresenta como o Espírito é a consciência coletiva e histórica. Evolui da eticidade (vida grega), passa pela cultura (alienação), pela liberdade abstrata (Revolução Francesa) até a moralidade moderna. 

(6) Religião: Discute como o Espírito se conhece a si mesmo por meio de representações: religião natural (natureza), arte (forma humana) e revelada (Cristianismo e Trindade). 

(7) Saber Absoluto: trata da culminância do processo, o Espírito sabe que a realidade é sua própria manifestação. Saber filosófico pleno, conceitual e reconciliado. 

 

 

I. QUESTÕES METODOLÓGICAS  

 

Hegel define a Fenomenologia do Espírito como a "ciência da experiência da consciência", isto é, o estudo do modo como a consciência se manifesta e se desenvolve por meio de suas próprias experiências. Ela é, em essência, o estudo de como a mente se revela a si mesma, seguindo o caminho da consciência natural em busca do saber verdadeiro. Trata-se do “caminho da alma, que percorre a série de suas figuras” para se purificar e elevar-se até o espírito, alcançando, por fim, o autoconhecimento. A Fenomenologia é, segundo Hegel, a "exposição do conhecimento como fenômeno", ou seja, uma narrativa da consciência em sua tentativa de conhecer o mundo e a si mesma. Ela descreve as diferentes formas de consciência, mostrando como cada uma, ao revelar suas contradições internas, necessariamente se desenvolve em outra forma mais adequada, até culminar no que Hegel chama de “saber absoluto”. 

Nesse sentido, a obra pode ser lida como a "história detalhada do processo de formação e educação da própria consciência até o nível da ciência", um processo formativo que envolve sofrimento, perda, superação e reconciliação. Originalmente intitulada Ciência da Experiência da Consciência, a obra se caracteriza por seu caráter histórico, já que as figuras da consciência refletem também as experiências e estruturas simbólicas das culturas humanas ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, é dialética, pois a sucessão das formas segue uma lógica interna necessária, conduzindo à realização do saber absoluto. 

Por fim, Hegel também concebe a Fenomenologia como uma propedêutica, um preparo do espírito para o elemento do saber propriamente dito, que se encontra na Lógica ou Filosofia especulativa. Nessa trajetória, ela estuda o espírito em seu “ser-aí” imediato, antes que ele se eleve ao domínio da pura ideia. Essa elevação do espírito à consciência plena de si também se realiza na história universal, que, para Hegel, é a marcha do Espírito no tempo, seu processo de vir-a-ser, no qual diferentes formas culturais e espirituais se sucedem, cada uma carregando em si o impulso da superação e da autossuperação. Ao longo desse caminho, forma-se o que Hegel denomina o "reino dos espíritos", isto é, a sucessão histórica dos povos e das culturas em que o Espírito se efetivou. 

Esse processo histórico, porém, comporta dois aspectos fundamentais. Segundo o seu lado de ser-aí livre, a história aparece como o domínio da contingência, dos acontecimentos empíricos, das decisões humanas, dos conflitos e das rupturas. Já do ponto de vista de sua organização conceitual, ela revela-se como a ciência do saber que se manifesta, isto é, como o desdobramento racional e necessário do Espírito em direção à autoconsciência. Esses dois lados, o empírico e o racional de um lado, o factual e o conceitual de outro, compõem o que Hegel chama de História conceituada (begriffene Geschichte), que é, ao mesmo tempo, recordação e reconciliação do Espírito consigo mesmo. Essa recordação constitui a verdade e a certeza de seu trono, pois, sem esse retorno reflexivo, o Espírito permaneceria como uma abstração vazia, uma solidão sem vida. Como afirma Hegel na Fenomenologia, “o Espírito é aquilo que é, apenas na medida em que sabe o que é”. 

A fenomenologia do Espírito descreve os estágios trilhados pela consciência para alcançar o saber absoluto, o conhecimento das coisas em si mesmas que, ao final das contas, é o conhecimento de si mesmo. O filósofo é aquele que possui o conhecimento desse tipo, mas ele deve fazer mais, deve ser capaz de mostrar os estágios ou passos rumo a esse saber. Existem quatro sentidos termoespíritoem Hegel: (i) espírito subjetivo: consciência individual que se desenvolve desde a alma sensível até a racionalidade e a vontades livres; (ii) espírito objetivo: é o espírito realizado nas instituições sociais, como direito, moralidade, eticidade, onde a liberdade se objetiva; (iii) Espírito absoluto: é o espírito consciente de si mesmo que se manifesta nas formas supremas da arte, da religião e da filosofia; (iv) Espírito final: é o retorno da ideia a si mesma após sua exteriorização na Natureza, como razão concreta que se conhece e se realiza como liberdade. 

Assim, temos um movimento que aparece como uma tríade Ideia-> Natureza -> Espírito final. A ideia é como uma semente que contém, de modo latente/virtual, toda a realidade ou, de outro modo, contém em si o princípio que gera ou produz tudo que há. Trata-se de um conceito que subsume em si todas as perfeições ontológicas do que dele pode exteriorizar-se. a estrutura do movimento do Conceito em Hegel, que também se baseia na unidade e na diferenciação. Para Hegel, o conceito não é uma mera representação abstrata do objeto, mas a realidade concreta que une as diferenças específicas presentes em cada ser singular. A Ideia é a unidade do ideal e do real, a unidade do conceito e do ser, e, portanto, a unidade entre sujeito e objeto.

  Esse desenvolvimento se dá em estágios cuja sequência é lógica e, por isso, Hegel evita citar eventos históricos reais específicos. Se o desenvolvimento do Espírito tivesse ocorrido em outro lugar, ele seguiria os mesmos passos. A lógica hegeliana não é uma lógica formal tradicional, mas sim a ciência do pensar puro, que é também ontologia: as formas do pensamento são as determinações fundamentais da realidade. Para tanto, Hegel adota metodologicamente a dialética. Em que o conteúdo se move por si mesmo, o pensamento desenvolve-se por suas contradições internas, e não por imposições externas. 

Hegel define a dialética não como um mero artifício lógico, retórico ou expositivo, mas como a própria estrutura interna do pensamento e da realidade. É o movimento interno das próprias coisas, a manifestação da contradição interna da realidade. É o princípio de todo movimento, de toda vida e de toda efetividade, tudo que nos rodeia é um exemplo da dialética em ação. A dialética é o próprio suprassumir-se (Aufhebung) das determinações finitas, o processo pelo qual uma coisa se transforma em sua contradição interna.

       O desenvolvimento dos conceitos é feito por negação, superação e conservação dos momentos anteriores. Essa tríade negação-superação-conservação (Aufhebungsuprassunção). Cada conceito carrega dentro de si sua negação, que é integrada e superada em um conceito mais rico – um movimento que nunca para arbitrariamente, mas segue uma lógica interna do próprio pensar-realidade. o resultado do processo dialético não é apenas negativo, mas um negativo que conserva e supera (negatio determinata). O que emerge não é o nada, mas uma nova determinação mais rica.  

Dialética não deve ser confundida com a tríade tese-síntese-antítese. Esse esquema, usado didaticamente para explicar esse processo não é de Hegel, e pode ser um tanto simplificada. A fórmula "tese–antítese–síntese" não é hegeliana. Foi popularizada por Heinrich Moritz Chalybaus, um filósofo do século XIX que tentou "explicar" Hegel em termos mais acessíveis. Essa explicação, no entanto, reificou e empobreceu o dinamismo especulativo da dialética hegeliana. A verdadeira dialética é imanente ao conteúdo e desenvolve-se conforme as necessidades internas da coisa mesma, não segundo um molde fixo. Essa fórmula simplifica demais um processo que, em Hegel, é vivo, auto-mediado, e intimamente vinculado à lógica do conceito. 

A Ideia, portanto, se exterioriza como Natureza para depois reconciliar consigo mesma como Espírito. A exteriorização em Hegel é o processo pelo qual o sujeito manifesta e objetiva o que é interior a si no mundo externo, tornando-se ser-aí e permitindo que sua essência se torne concreta e acessível. Hegel chama de “figuras”, os diferentes estágios ou formas que a consciência e o espírito assumem em seu caminho dialético rumo ao saber absoluto. Elas representam os momentos pelos quais a consciência passa em suaexperiência de si mesma”. Cada figura revela sua própria inadequação e, por meio de uma “negação determinada”, avança para uma forma mais adequada e complexa. Essas figuras não seguem uma cronologia histórica estrita, mas sim uma “sucessão de paradigmas” ordenada por uma lógica interna. Essas figuras são: consciência, autoconsciência (consciência-de-si), razão, espírito, religião, saber absoluto. 

 

II. CONSCIÊNCIA  
 

Trata-se da consciência em suas formas mais rudimentares de apreensão do mundo externo. Cada forma de consciência, ao se mostrar inadequada, leva a uma "negação determinada" e a uma nova forma de consciência. 

2.1 Certeza Sensível: Trata-se do primeiro conhecimento imediato, o saber da essência como receptividade. O objeto é um "isto" singular e a consciência um "Eu aqui", puro e singular. A tentativa de apreender o "agora" revela sua impossibilidade, pois a linguagem, que expressa o universal, não consegue capturar o singular puro e sensível. O objeto da certeza-sensível é o singular, o "isto" imediato e puro. A consciência é apenas um "Eu" singular que sabe que algo é. 

Essa forma de conhecimento representa o estágio mais primordial do conhecimento humano, onde a apreensão é imediata e particular. Pode ser associado aos primórdios da interação humana com o ambiente natural, antes de uma conceptualização mais complexa. Logo, esse estágio se revela como uma forma de conhecimento insuficiente, visto que qualquer expressão linguística que nos permitisse conhecer a coisa além de meros indexais (“isto”, “aqui”, agora”) exige o reconhecimento de uma universalidade. 
2.2 Percepção: A consciência supera a certeza sensível; o objeto é tomado não mais como singular, mas como universal, uma "coisa composta por muitas propriedades". A percepção exige unificação da diversidade em um "uno", gerando contradições entre unidade e multiplicidade. Isso leva à percepção de sua própria inverdade. Pensa-se em propriedades sensíveis como universais, como o "vermelho universal". No entanto, a insuficiência se revela em que a universalidade não pode ser limitada às propriedades sensíveis, como cores, sons ou experiências táteis, pois essas experiências também possuem uma regularidade, isto é, são governadas por princípios universais que não são de natureza sensível. 

O objeto da percepção, por sua vez, não é um mero singular, mas um universal sensível. Ele é apreendido como uma "coisa composta por muitas propriedades", que instanciam diferentes formas sensíveis singulares como suas propriedades. Por exemplo, a rosa percebida não é um mero singular empírico (este aqui e agora), mas sim uma coisa composta por muitas propriedades universais sensíveis: como a cor, cheiro, textura, forma, espinhos etc. Por exemplo, a cor (vermelho, rosa, branco...) da flor é um vermelho que não é apenas este vermelho, mas o vermelho enquanto tal. 

A percepção introduz a possibilidade de erro. É na percepção que começa o mecanismo de correticidade da consciência. Diante das contradições (por exemplo, propriedades conflitantes na Coisa), a consciência percebe que sua apreensão "não é plenamente verdadeira". Desse modo, a percepção usa um critério de verdade para não permitir uma contradição na Coisa, a saber: que a coisa deva ser auto-idêntica. A incompatibilidade de propriedades será tomada como um erro da própria percepção, não algo da Coisa.  

Esse estágio pode ser visto como o desenvolvimento das primeiras formas de classificação e categorização do mundo, talvez presente nas sociedades antigas ao organizar o conhecimento sobre a natureza, animais e plantas de forma mais sistemática, mas ainda baseada em qualidades sensíveis. O surgimento de noções de "coisa" com múltiplas propriedades remete a um nível de abstração presente em diversas culturas antigas. 

2.3 Força e Entendimento: Após a certeza sensível (conhecimento do singular) e a percepção (o objeto como universal de muitas propriedades, mas com contradições entre unidade e multiplicidade), a consciência busca um saber mais profundo. Ela percebe a inverdade da percepção e a necessidade de ir além do fenômeno imediato. O entendimento, então, busca o que explica e fundamenta os fenômenos, visando uma ordem estável que reina além do mundo percebido.  

A percepção se aprofunda na compreensão do objeto como a manifestação de uma "força" subjacente, que é a "exteriorização da unidade na multiplicidade". A força se exterioriza como "fenômeno", que é transitório e impermanente. Diante do "nada" fenomenal, o entendimento postula um mundo suprassensível, um "reino de leis" que se mantém além do fenômeno, buscando uma ordem estável. Este mundo suprassensível leva ao "conceito absoluto ou a infinitude simples ou universal". Quando a infinitude se torna objeto da consciência, a consciência é consciência-de-si. 

A força não é uma entidade escondida atrás dos fenômenos. A força é um processo dinâmico entre dois polos: (i) exteriorização (expansão, manifestação múltipla): a força se realiza e atua como fenômeno, que é o ser da força desenvolvido, é seu ser-posto, nesse sentido, a força se manifesta nas matérias sensíveis (efeitos, propriedades, fenômenos). O "fenômeno" é um aparecer que surge para desaparecer, um "não-ser"; (ii) Interiorização (recalcamento, redobramento da Força - Força Interior): a força, em sua exteriorização, retorna a si mesma, revelando-se como sua própria atividade. 

O termo recalcamento, aplicado à força em Hegel, descreve a dinâmica pela qual a força se manifesta como multiplicidade, mas simultaneamente se conserva em seu interior, como essência fundanteela se oculta para se preservar, mas não desaparece, uma tentativa de dar nome à força que permanece ativa, mas não diretamente visível, mantendo-se como fundamento invisível da manifestação. Enquanto a exteriorização é uma primeira força, a força recalcada (ou interiorizada) é uma segunda força, ou uma força-resposta que, embora invisível, atua solicitando a manifestação da outra. Essa interação produz o que Hegel chama de "jogo de forças", uma estrutura dinâmica onde uma força se manifesta ativamente enquanto a outra atua passivamente ou latentemente, provocando e sustentando o movimento dialético.  

Uma analogia que ajuda a compreender essa relação é a metáfora do ímã. Um ímã não é duas forças separadas, mas uma unidade contraditória de atração e repulsão. A lei é a tentativa do entendimento de fixar a regularidade nesse jogo de forças. O mundo supra-sensível passa a ser o "tranquilo reino das leis". Essa lei, contudo, ainda é fenomênica, ela apenas descreve o comportamento, não dá acesso direto ao "em-si". O "interior das coisas" é concebido como o negativo da força objetiva, um mundo supra-sensível para além da consciência 

O estágio do "Entendimento" é claramente associado ao advento da ciência mecanicista da Idade Moderna (Séculos XVI-XVIII), com figuras como Galileu, Newton e Leibniz. Este período é marcado pela busca de leis universais que regem os fenômenos, indo além da mera percepção das qualidades sensíveis para compreender as forças e mecanismos subjacentes. 

 
 
III. CONSCIÊNCIA DE SI 

 
          Nesse estágio, a verdade não é mais algo externo, mas a própria consciência. A consciência-de-si se volta para si mesma como objeto do saber, reconhecendo-se como o verdadeiro através de um movimento de exteriorização e retorno. É um retorno a partir do "ser-Outro", que se constitui como uma relação de desejo e encontra satisfação em outra consciência-de-si. O desejo movimenta a consciência a sair de si e ir ao encontro do outro. 

. O desejo é o movimento pelo qual a consciência busca anular a alteridade, ela deseja o outro não apenas para possuí-lo, mas para dissolvê-lo como outro, integrando-o em sua própria identidade. Assim, o desejo é a tentativa de afirmar-se como verdade, negando aquilo que parece colocá-la fora de si. Contudo, ao desejar e consumir objetos, a autoconsciência descobre que eles não podem fornecer uma satisfação duradoura, pois, ao serem destruídos ou absorvidos, deixam de existir como algo capaz de reconhecê-la. Por isso, Hegel afirma que o verdadeiro desejo é desejo de reconhecimento: a autoconsciência só encontra sua verdade plena em outra autoconsciência, que também a reconheça como tal. 

3.1. Independência e Dependência da Consciência de Si - Dominação e Escravidão: A consciência-de-si é na medida em que se coloca para um Outro. A relação com outra consciência-de-si é uma condição necessária. Isso leva a uma luta de vida e morte, onde se arrisca a própria vida pela liberdade. Surgem as figuras do senhor e do escravo. O senhor é o que arriscou a vida, enquanto o escravo teve medo. No entanto, uma inversão: o escravo, pelo trabalho, torna-se independente, e o senhor perde sua independência ao depender do escravo para produzir. 

Esse é um modelo para toda constituição de uma autoconsciência individual. Considere, por exemplo, como um bebê, por volta dos 18 meses de idade, desenvolve sua autoconsciência. Ele só pode fazê-lo a partir de um Grande Outro da linguagem encarnado em uma figura paterna a partir da qual ele constitui seu eu. De igual modo, o bebê forma sua identidade em sua interação com um outro-imagem, que é o seu próprio reflexo no espelho no qual enfrenta uma dialética de luta e reconhecimento.  

O senhor é aquele que arrisca a sua vida e subjuga o escravo, mas ao fazê-lo torna-se dependente do escravo. O senhor considera o escravo não como pessoa, mas como Coisa carente-de-si. O senhor considera o escravo não como pessoa, mas como "Coisa carente-de-si" (sem individualidade própria), e o escravo não conta como um Eu, mas o senhor é o seu Eu. O senhor vê o escravo como um instrumento, negando sua subjetividade, e a identidade do escravo é definida pela vontade do senhor. 

A consciência-de-si, para Hegel, não pode existir isoladamente; ela precisa de um "outro" para se diferenciar e se reconhecer. Esse reconhecimento não é uma identificação amorosa inicial, mas uma luta. A consciência-de-si se constitui como desejo, buscando satisfação em outra consciência-de-si. Para provar que não está apegada a meros objetos materiais (incluindo seu próprio corpo e o do outro), cada consciência-de-si busca a morte da outra, arriscando sua própria vida. 

Porém, essa relação de dominação é instável e sofre uma inversão dialética. O senhor obtém um reconhecimento insatisfatório, pois depende do escravo, que ele considera um "não-Eu". Já o escravo, através do trabalho, transforma a natureza, objetivando sua inteligência e ganhando consciência de sua autonomia e poder. Assim, o escravo se torna senhor de si e das coisas, enquanto o senhor se torna dependente do escravo para sua subsistência. Paradoxalmente, é através do trabalho que o escravo, que foi reduzido a "coisa", começa a constituir seu próprio "Eu". 

No entanto, embora seja um modelo dialético universal para o reconhecimento, ele reflete dinâmicas de dominação e servidão presentes em diversas sociedades, como as sociedades escravistas da Grécia e Roma antigas. Hegel observa que no Oriente, apenas um (o governante) é livre, enquanto na Grécia, "algunsnão todossão livres". O Oriente, em especial China e Índia, encontra-se estagnado nessa etapa, não alcançando uma consciência de liberdade, presos a sociedades baseadas em uma autoridade externa. Só a partir da Pérsia e da Grécia Antiga que a consciência da liberdade é alcançada. 

3.2 Liberdade da Consciência-de-si - Estoicismo, Ceticismo e a Consciência Infeliz: Uma vez superada a dialética senhor-escravo, a consciência-de-si experimenta-se como liberdade que pensa conceitualmente. Como considerado, historicamente, foi na antiga Grécia que o Espírito alcançou essa consciência de liberdade. No entanto, as formas de consciência de liberdade gregas ainda são formas limitadas de conhecimento, pois envolvem, para afirmar a liberdade, alguma forma de rejeição do mundo exterior. De um lado, o estoicismo rejeita o mundo exterior ao tentar não ser afetado por ele, acreditando que o pensamento livre é garantido pela ataraxia. Por outro lado, o ceticismo rejeita o mundo exterior, não por negar sua existência, mas por manter uma atitude cética que suspende o juízo por sua realidade. Por fim, já no contexto da Idade Média, o encontro entre a filosofia grega e a religião cristã resulta em uma consciência infeliz diante da contradição entre o mundo exterior e a postulação de um céu idealizado.  Consideremos cada uma delas:  

3.2.1. Estoicismo: É a manifestação consciente dessa liberdade na História do Espírito. A consciência se eleva acima da vida e busca a "impassibilidade" (ataraxia), afastando-se do mundo. Trata-se de um movimento filosófico que floresceu na Grécia Helenística e em Roma, em um contexto de perda das certezas da pólis e de busca por refúgio interior. 

3.2.2 Ceticismo: Realiza a liberdade de forma mais radical, negando o mundo. Contudo, ao negar tudo, esvazia a consciência-de-si, levando à autocontradição e à "cisão de si consigo mesma". A consciência é dupla, presa ao mundo que nega. Também floresceu na Grécia Helenística e em Roma, representando uma resposta de desespero em face de um mundo hostil, levando a uma atitude puramente negativa. 

3.2.3 Consciência Infeliz: Surge da cisão do ceticismo, descobrindo a nulidade de sua vida particular, mutável, em oposição a uma "certeza de si imutável e simples". Busca ascensão ao Imutável, que aparece como o Deus distante do Judaísmo, depois na figura do Cristo encarnado, e por fim, no próprio Espírito. A consciência tenta unificar-se com o Imutável através do fervor devoto, do trabalho de santificação e do ascetismo, mas permanece insatisfeita. Esse modo de consciência é xplicitamente associado por Hegel à Idade Média, simbolizando a dolorosa cisão entre o humano e o divino no Cristianismo medieval, com a busca por reminiscências históricas de Cristo e a volta dos cruzados. O Imutável distante pode ser relacionado ao Deus do Judaísmo. 

 
 
IV. RAZÃO 

 
         Nessa figura, a consciência afirma sua própria singularidade como toda a realidade, assumindo a certeza de ser o fundamento de tudo que aparece. A razão é espírito quando essa certeza se eleva à verdade. Razão é, portanto, o estágio em que a consciência e a autoconsciência se reconciliam, e a certeza subjetiva da consciência-de-si se eleva ao nível da verdade objetiva. A Razão representa a convicção de que o que aparece como outro tem a mesma estrutura fundamental da consciência-de-si, isto é, que tudo no mundo é, em última instância, racional e pode ser compreendido como expressão do espírito.  

Por isso, Hegel define a Razão como o fundamento de tudo o que aparece no mundo, não apenas como faculdade cognitiva, mas como a própria estrutura da realidade. Nesse sentido, ela é uma razão ampliada, capaz de abarcar todas as criações e formas do espírito humano ao longo da história, como arte, religião, direito, moralidade, ciência e política, buscando nelas o sentido que revela a liberdade e a racionalidade imanente ao real. A Razão é também a capacidade de discernir o incondicionado e o infinito, distinguindo-se do entendimento, que opera apenas no domínio do finito e do condicionado.  

Ao alcançar esse estágio, a consciência torna-se livre não apenas no pensamento, mas também na prática, pois a Razão, segundo Hegel, é o que liberta os indivíduos da submissão aos acontecimentos aleatórios da natureza, tornando-os capazes de reflexão crítica sobre sua situação e as forças que os condicionam. Desse modo, a liberdade torna-se possível apenas com o desenvolvimento da Razão, que é, ao mesmo tempo, a verdade da consciência-de-si e o início da espiritualização plena do saber. Dentro da figura da Razão, há uma série de momentos dialéticos, ou seja, diferentes modos pelos quais a razão tenta realizar a identidade entre si mesma e o mundo: 

4.1. Razão Observadora: A consciência observa o mundo real como racional, buscando leis e conceitos tanto na natureza quanto na consciência humana. No entanto, ela falha em encontrar-se plenamente na natureza, passando então a observar a consciência-de-si, investigando suas leis lógicas e psicológicas. Nesse contexto, Hegel cita a fisiognomia e a frenologia, falsas ciências que estavam em voga na época, e que ilustram a tentativa da razão observadora de conectar o interior (a alma, o caráter) ao exterior (as feições, o crânio), culminando na absurda ideia da consciência-de-si como “osso”. 

4.2. Razão Ativa (Reino da Eticidade): A razão passa a considerar sua própria atividade espiritual, buscando efetividade na vida ética de uma comunidade. Nesse processo, destacam-se diversas formas de racionalidade prática e teorias éticas: 

4.2.1. O prazer e a necessidade (Hedonismo): A ação visa o prazer, mas o prazer se revela como um movimento transitório e insaciável, que continuamente passa de objeto em objeto. 

4.2.2. A lei do coração e o delírio da presunção (Sentimentalismo): A moral baseada nos sentimentos individuais pretende valer como lei universal, mas fracassa ao não conseguir fundamentar uma normatividade comum. 

4.2.3. A virtude e o curso do mundo: A crença na virtude como sacrifício da individualidade enfrenta o realismo do mundo. Hegel ilustra essas figuras morais com personagens literários como Dom Quixote (Cervantes), Fausto (Goethe) e Os Bandidos (Schiller), situando-as entre o Renascimento e o Romantismo, períodos marcados pela busca do indivíduo por expressão e realização. 

4.2.4. A individualidade que é para si real em si e para si mesma: A consciência alcança o conceito de razão como certeza de ser toda a realidade, afirmando-se como sujeito absoluto. 

4.2.5. A coisa mesma: O sujeito entra na prática objetiva; a ação resulta em obra. A "coisa mesma" é a essência espiritual que supera os momentos passageiros da ação, sendo a realidade efetiva do agir racional, tanto individual quanto coletivo. 

4.2.6. A razão legisladora: A consciência acredita possuir imediatamente a verdade do justo e do bom, mas as leis que produz são ainda contingentes e subjetivas. 

4.2.7. A razão examinando as leis: Por fim, a razão desiste de legislar e passa a examinar as leis já existentes, validando-as na medida em que não incorrem em contradição. 

 
 
V. ESPÍRITO  
 

Em Hegel, o estágio do Espírito marca um ponto crucial: a substância, agora consciente de si mesma, se manifesta como um mundo. Isso significa que o Espírito se revela em sua efetividade autêntica, constituindo um mundo objetivo e social no qual a consciência individual se reconhece na coletividade. As figuras anteriores (Consciência, Consciência-de-si, Razão) são compreendidas como momentos abstratos do Espírito, analisados isoladamente. O desenvolvimento do Espírito ocorre por meio dos seguintes momentos dialéticos, que refletem a complexa trajetória histórica e existencial da humanidade: 

5.1 O Espírito Verdadeiro (Mundo Ético): 

Neste estágio, o Espírito se manifesta de modo mais harmonioso e integrado, representando a vida ética de um povo. Essa vida é caracterizada pela polaridade entre duas leis: (i) lei humana, que rege a comunidade e o Estado; (ii) lei divina, que habita a esfera da família. No entanto, a ação ética pode gerar culpa e delito, quando se privilegia uma dessas leis em detrimento da outra, revelando a contradição interna dessa aparente harmonia. Hegel ilustra genialmente os conflitos dessa fase com a tragédia grega. A dissolução da eticidade da pólis culmina no surgimento do Estado de Direito, no qual prevalece a "absoluta multiplicidade dos indivíduos", cada qual valendo igualmente como pessoa jurídica. 

É importante mencionar que Hegel faz uma distinção entre eticidade e moralidade. A moralidade (Moralität) é associada à Modernidade, em que a moralidade é a esfera da vontade subjetiva, da consciência individual e do dever, relacionada fortemente à filosofia de Kant, onde a "consciência-de-si sabe o dever como a essência absoluta". O indivíduo se autolegisla, buscando agir de acordo com um imperativo categórico que ele mesmo reconhece como universal. Por outro lado, a eticidade (Sittlichkeit) é a vida ética concreta de um povo, a substância ética de uma comunidade. Não se trata de uma moralidade abstrata ou de princípios universais que o indivíduo impõe a si mesmo, mas sim dos costumes, das leis não escritas, das instituições e das tradições que são vividas e aceitas naturalmente pelos membros de uma sociedade, e é associada ao mundo grego.  

Embora seja uma esfera de harmonia, a eticidade não está isenta de contradições. Os conflitos surgem quando um choque entre diferentes leis éticas (por exemplo, a lei da família e a lei do Estado), como "genialmente ilustrado pela tragédia grega" (Antígona é o exemplo clássico hegeliano, onde a lei divina da família se choca com a lei humana do Estado). A dissolução dessa eticidade da pólis leva ao surgimento do Estado de Direito. 

5.2. O Espírito Alienado de Si Mesmo (A Cultura) 

Neste momento, o mundo espiritual se apresenta como um mundo de alienação. O ser-aí da efetividade deriva de uma perda de essência, pois o Espírito não se reconhece mais em sua própria criação, experimentando-a como algo estranho e exterior. É importante notar que alienação não deve ser confundida com exteriorização. A exteriorização (Entäußerung) em Hegel é o processo pelo qual o sujeito manifesta e objetiva o que é interior a si no mundo externo, tornando-se ser-aí e permitindo que sua essência se concretize e se torne acessível. Esse movimento possibilita que o sujeito se reconheça e se enriqueça por meio dessa objetivação, ampliando sua autoconsciência e sua relação com a realidade. 

Entretanto, essa exteriorização pode assumir duas formas: (i) extrusão positiva: é aquela em que há reconhecimento e fortalecimento do sujeito; (ii) alienação (Entfremdung): é aquela na qual o sujeito perde o reconhecimento de si mesmo naquilo que exteriorizou. Nessa condição, a objetivação torna-se estranha e hostil, gerando distanciamento e perda da essência do sujeito. 

A alienação se manifesta em duas direções principais: (i) primeiramente, na efetividade exterior, onde a consciência já não reconhece o mundo como resultado de sua própria atividade; (ii) em seguida, na esfera da fé, que projeta um mundo suprassensível “essencialmente outro” em relação à consciência-de-si; e na pura intelecção (Aufklärung, Iluminismo), que combate essa fé, reduzindo-a à superstição. 

5.3 A Liberdade Absoluta e o Terror 

Este momento histórico é particularmente crítico. O Iluminismo, enquanto figura da intelecção pura, triunfa sobre a fé e culmina na Revolução Francesa, onde a luta por liberdade absoluta degenera no reino do Terror. Para Hegel, a Revolução é um clímax histórico da busca humana por liberdade. Contudo, essa liberdade, por ser abstrata e sem mediação, conduz à destruição: ignora a "disposição do povo" e é incapaz de fundar uma ordem política e social estável. 

Hegel via na Revolução Francesa tanto algo positivo quanto negativo. Positivamente, a revolução representa o triunfo da liberdade contra a monarquia absolutista. No entanto, dialeticamente, a negação deveria vir acompanhada da conservação para que seja genuína superação. Contudo, a Revolução Francesa buscou sepultar o antigo mundo sem dele nada conservar, mirando em uma liberdade abstrata. Daí que negativamente, tal revolução resultou em um reino de terror, em que a razão foi tornada um deus e, pelo uso da guilhotina, o antigo regime foi sacrificado no altar da Razão.  

5.4. O Espírito Certo de Si Mesmo (A Moralidade) 

Este estágio representa o ponto mais elevado até então: a consciência-de-si reconhece o dever como essência absoluta. A vontade, agora esclarecida, incorporou a totalidade da objetividade do mundo. Hegel analisa criticamente os postulados da razão prática de Kant, que são considerados contraditórios. A consciência moral se defronta com a indiferença da natureza frente à felicidade, e com a oposição entre sensibilidade e dever. 

Desse impasse surge a figura da “boa consciência” (Gewissen) ou da “bela alma”, que, embora dotada de certeza imediata do dever, muitas vezes se limita a julgar e criticar o mundo sem agir efetivamente. Quando, enfim, passa à ação, o mal e a hipocrisia se revelam inevitáveis. A superação dessa contradição se dá pela concessão do perdão pela consciência universal. 

 

VI. RELIGIÃO 

 

A seção da Religião corresponde à consciência de si do Espírito, isto é, ao conhecimento do Espírito por si mesmo, mas que ainda ocorre no modo da representação, e não do conceito puro. A religião mostra como o Espírito, em sua vivência religiosa, determina sua própria essência. Hegel apresenta as seguintes formas de consciência religiosa:

6.1 Religião Natural: Na fase da religião natural, a essência divina é apreendida de forma imediata e objetiva, ou seja, ainda não mediada pela autoconsciência. A consciência humana projeta o divino diretamente na natureza, percebendo manifestações da divindade em elementos naturais como a luz, os astros, as plantas e os animais. Hegel identifica diversas formas dessa religiosidade:  

(1) religião da luz: associada ao culto solar e à figura luminosa do divino, como no zoroastrismo persa, onde aparece, pela primeira vez, um princípio universal, uma lei que transcende o capricho individual, marcando o início da consciência da liberdade. 

(2) Religião das plantas e dos animais: formas mais primitivas, onde a divindade é vista em seres vivos específicos; representa um estágio anterior de exterioridade da consciência. 

(3) Religião do artesão: exemplificada por monumentos como pirâmides, obeliscos e templos, sobretudo no Egito e na Mesopotâmia. Aqui a consciência já dá forma ao divino por meio da atividade produtiva, indicando um passo em direção à interiorização e ao trabalho espiritual. 

6.2 Religião da Arte: O divino deixa de ser representado por objetos naturais e passa a ser expresso na forma do indivíduo humano. Surge o culto à forma idealizada, manifesta nas obras de arte (estátuas, templos, poesia). Corresponde à Grécia Antiga, onde a arte é a expressão mais elevada do sagrado. Nesse contexto, a religião se expressa por meio de obras de arte espirituais (Epopeia, Tragédia, Comédia), formas superiores da arte, em que a linguagem revela o divino. A tragédia e a comédia são formas estéticas fundamentais na Grécia. 

6.3 Religião Revelada: É a forma suprema da religião. Nela, o divino se revela como Si mesmo encarnado, isto é, Deus feito homem (Cristo). Deus é reconhecido como Espírito. Ela apresenta três momentos: (i) o Pai (substância pura); (ii) o Filho (consciência-de-si singular); (iii) O Espírito (consciência universal na comunidade religiosa). Hegel está descrevendo a dinâmica do Conceito (Begrif), que é a forma mais elevada do pensamento e da realidade em seu sistema. Ele a compara a um "jogo" para enfatizar que, embora o Conceito se exteriorize e ponha um "Outro" (o mundo, a natureza, a diferença), esse "Outro" não é fundamentalmente estranho ou separado dele. Pelo contrário, esse "Outro" é um momento necessário da própria autoconstituição do Conceito. Hegel usa, portanto, a doutrina cristã da Trindade como uma analogia perfeita para ilustrar essa ideia: 

(1) Deus-Pai: Representa o Conceito em sua unidade original, a Ideia em si e para si, ainda não exteriorizada. É o momento da essência eterna, anterior à criação, onde tudo está contido de modo implícito. 

(2) Deus-Filho: Corresponde à exteriorização da Ideia, o momento em que o Conceito se torna outro de si, encarnando-se no mundo finito. O Filho, como Logos, é a manifestação de Deus no mundo, e é nesse movimento que Deus se torna objetivo. No entanto, o Filho é também o retorno da exterioridade à unidade: Deus se faz homem (encarnação) e, por meio do Filho, a alienação é superada, pois o Logos é consciência de si na alteridade. 

(3) Espírito Santo: É o momento da reconciliação, em que o Conceito retorna plenamente a si mesmo a partir da alteridade. O Espírito é a unidade restaurada entre o Pai e o Filho, ou seja, entre o universal e o particular, agora elevada a um novo patamar: o do Espírito que se sabe livre e presente na comunidade espiritual (a Igreja). Trata-se do estágio em que o Espírito Absoluto se realiza plenamente na consciência da liberdade. 

Para Hegel, a verdade da religião cristã está em sua capacidade de expressar, em forma de representação (Vorstellung), a mesma verdade que a filosofia expressa em forma de Conceito. A doutrina trinitária ilustra a dialética hegeliana de unidade-diferença-unidade reconciliada, onde o "Outro" é um momento necessário para o autoconhecimento do Absoluto O Cristianismo, especialmente desde o Império Romano, é o ápice dessa forma. No entanto, ele primeiro aparece como consciência infeliz na Cristandade medieval. É a Reforma Protestante que marca um ponto crucial, pois proclama o “direito da consciência individual” e a “liberdade do Espírito” no contexto do Mundo Germânico. Lutero, diante do poder papal, declara não se submeter a nada que não seja sua própria consciência. O luteranismo é a expressão da verdadeira consciência religiosa da liberdade.

 
VII. SABER ABSOLUTO 

 
O Saber Absoluto é o espírito que se sabe como espírito. Recapitula e reúne todos os movimentos e figuras anteriores, que são as etapas do "vir-a-ser" do espírito. A História é a marcha do Espírito no tempo, um movimento lento de sucessão de espíritos, cuja meta final é o saber absoluto. Representa o reino dos espíritos, onde um sucede ao outro e assume o reino do mundo. Não é um período histórico específico, mas a culminação do desenvolvimento do Espírito. Para Hegel, é o momento em que a história (o desenvolvimento da ideia de liberdade) alcança sua "consumação". A rememoração do espírito absoluto, a verdade e a certeza de seu trono são alcançadas.  

É importante mencionar que Saber Absoluto para Hegel não significa saber tudo no sentido de onisciência factual ou de ter conhecimento de todos os detalhes empíricos do universo. O Saber Absoluto é o espírito que se sabe como espírito. É a culminação do desenvolvimento do Espírito, o ponto onde a filosofia atinge a plena autoconsciência e a reconciliação do saber com a verdade. Trata-se da mente (Geist) que entende que a realidade é sua própria criação. É um saber conceitual de si. 

Além disso, o fato de o Espírito exteriorizar-se para conhecer a si mesmo não significa que Hegel via Deus como um ser ignorante. A ideia de que Deus seria "ignorante" e precisaria se manifestar para se conhecer é uma interpretação equivocada de sua filosofia. Pelo contrário, a perfeição de Deus (o Absoluto, a Ideia Absoluta) é tal que Ele já é o saber pleno e a autoconsciência em si e para si. Não se trata, pois, de uma ideia que "chega a se conhecer" ao final de um processo de ignorância. A Ideia Absoluta é o pensamento que se pensa a si mesmo. Ela já é a forma pura do conceito que intui seu conteúdo como a si mesma. 

Quando a Ideia Absoluta se exterioriza na Natureza (a "Ideia em seu ser-outro"), isso não ocorre porque Deus "precisa" se manifestar para adquirir conhecimento ou porque lhe falta algo. Pelo contrário, é um ato de pura atuosidade e liberdade. É dessa liberdade de se exteriorizar que surge a nesciência ou ignorância. Deus, que tem todo o conhecimento, decide livremente aparecer em formas limitadas de consciência, que podem ser ignorantes. A ignorância, portanto, é consequência, não a razão do processo. 

Para Hegel, Deus, como a Ideia Absoluta, é o conhecimento pleno e a autoconsciência perfeita desde a eternidade. Sua manifestação na Natureza e no Espírito não é um sinal de ignorância ou carência, mas sim uma expressão de Sua liberdade, perfeição e da dinâmica inerente do Conceito, que se desdobra e retorna a si mesmo em uma totalidade rica e autoconsciente. O "Saber Absoluto" é a compreensão filosófica desse processo, onde a mente humana atinge a consciência de que a realidade é, em última instância, a própria mente (Geist) que se autoconstitui. 

É um equívoco comum identificar o estágio final do Espírito Absoluto com o Estado prussiano da época de Hegel. Embora Hegel tenha reconhecido certos avanços institucionais na Prússia, ele não a considerava a realização última do Espírito. Na verdade, Hegel mantinha uma visão crítica sobre o estado geral do povo alemão, que, segundo ele, permanecia demasiadamente preso às preocupações imediatas da vida cotidiana. Por isso, não conseguiam elevar-se à compreensão racional e universal do Espírito. 

Essa fixação no trivial impedia o povo de transcender seu espírito local, mergulhando-o numa espécie de ignorância espiritual que o tornava alheio às formas mais elevadas da cultura e da liberdade. Isso contrasta profundamente com a noção de um povo que encarnaria o Espírito Absoluto em sua manifestação mais plena, ou seja, um povo consciente de sua liberdade e universalidade. Preocupado com essa limitação, Hegel buscou meios de educar e formar o espírito do povo. Portanto, para ele, o espírito popular prussiano ainda precisava ser elevado à razão. 

 

 

 

Comentários

FAÇA UMA DOAÇÃO

Se você gostou dos textos, considere fazer uma doação de qualquer valor em agradecimento pelo material do blog. Você pode fazer isso via PIX!

Chave PIX: 34988210137 (celular)

Bruno dos Santos Queiroz

VEJA TAMBÉM

O MITO DA LIBERDADE - SKINNER (RESUMO)

CULTURA E SOCIEDADE - ANTHONY GIDDENS

TEXTOS BÍBLICOS ABSURDOS

20 MITOS DA FILOSOFIA

SER E TEMPO (RESUMO)

AMOR LÍQUIDO - ZYGMUNT BAUMAN (RESUMO)

O SER E O NADA (RESUMO)

SOCIOLOGIA DO CORPO - ANTHONY GIDDENS (RESUMO)

TRANSTORNO OBSESSIVO - COMPULSIVO (TOC) - TIPOS, CAUSAS, INTERPRETAÇÕES E TRATAMENTO