O CONCEITO DE MENTE - GILBERT RYLE (RESUMO)

 

O que se segue é um resumo do livro The Concept of Mind de Gilbert Ryle. O livro é composto de onze capítulos, sendo eles: 1. O Mito de Descartes; 2. Saber como e saber que; 3. A Vontade; 4. Emoções; 5. Disposições e ocorrências; 6. Autoconhecimento; 7. Sensação e observação; 8. Imaginação; 9. O Intelecto; 10. Psicologia. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original. 

 

I. O MITO DE DESCARTES 

 

De acordo com o que pode ser chamada de doutrina oficial sobre a natureza da mente, todo ser humano tem tanto um corpo quanto uma mente, que estão unidos, mas que se separarão com a morte, de modo que a alma continuará existindo. Os corpos humanos estão no espaço e são sujeitos a leis mecânicas que governam todos os corpos no espaço. Processos corpóreos, por sua vez, são estados que são públicos e externos, enquanto a mente é não-espacial e seus estados são privados e internos. Além disso, enquanto o nosso conhecimento do mundo físico é incerto, nosso conhecimento sobre o que ocupa nossa mente no momento é certo. No entanto, como a mente e o corpo interagem permanece um mistério. 

Acredita-se, a partir disso, que a pessoa é capaz de exercitar de tempo em tempo um tipo especial de percepção denominado como introspeçção, que consiste na pessoa reflectivamente observar, sem qualquer órgão do sentido, os episódios ocorrendo em sua vida interna. Essa auto-observação é, também, geralmente entendida como imune à possibilidade de ilusão, confusão ou dúvida. Por outro lado, uma pessoa não tem acesso direto aos eventos na vida interna de outra pessoa de modo que ela, inclusive, não pode ter certeza de que outras mentes existem. 

Essa doutrina oficial absurda pode ser chamada de “o dogma do fantasma na máquina” que pode ser entendido como cometendo um erro categorial, que ocorre quando interpretamos algo como de uma classe que na verdade não é a que ela pertence. Assim, o erro categorial sobre a mente é pensar que ela faz parte da classe das coisas ou das substâncias ao lado do corpo. Um exemplo de erro categorial ocorre, por exemplo, quando uma criança, após ser apresentados a ela todos os blocos de uma Universidade, pergunta “mas qual desses blocos é a Universidade?”.  É uma família de erros categoriais que dá origem à teoria da vida dupla que supõe que, dado os sentimentos, pensamentos e propósitos de uma pessoa não podem ser descritos em uma linguagem física, eles deveriam ser descritos em uma linguagem mental que é uma contrapartida da física. 

Pode-se falar de um erro categorial cartesiano que pode ter uma de suas origens traçadas em um equívoco cometido por Descartes. Quando Galileu mostrou que os métodos da descoberta científica eram capazes de fornecer uma teoria mecânica de tudo que é espacial, Descartes se encontrou em um conflito. Como um gênio científico, ele não poderia deixar de endossar o mecanicismo de Galileu, por outro lado, como um homem religioso, ele não poderia aceitar o mecanicismo inclusive sobre o ser humano como em Hobbes. O mental não podia ser uma variedade do mecânico. 

Assim, Descartes, embora entendesse que os corpos físicos eram governados pelo mecanicismo, propôs que o mental era um processo não-mecânico. Visto que as leis mecânicas governavam os corpos físicos, então deveria haver leis não-mecânicas que explicavam o funcionamento da mente. Mentes seriam coisas, mas coisas de um tipo diferente das coisas físicas e tinham processos causais semelhantes aos mecânicos, mas diferentes. Essa teoria pode ser chamada de hipótese para-mecânica. Vale destacar, no entanto, que a doutrina oficial, embora seja remetida com Descartes, não foi primeiro formulada por ele nem é exclusiva do cartesianismo. 

 

II. SABER COMO E SABER QUE 

 

Tanto filósofos quanto pessoas comuns tendem a tratar operações intelectuais como o núcleo da conduta mental de modo a definir todos os outros conceitos em termos de conceitos cognitivos. Geralmente, quando nos referimos operações intelectuais temos em mente especialmente operações que consistem em teorizar. No entanto, é importante considerar que há muitas atividades mentais que não são nem operações intelectuais nem efeitos delas. Podemos chamar de doutrina intelectualista, a posição que tenta definir inteligência em termos de apreensão de verdades, ao invés de apreensão de verdades em termos de inteligência. 

Teorizar é uma atividade que a maior parte das pessoas geralmente fazem em silêncio. Eles “veem as teorias pelos olhos da mente”. Boa parte do nosso pensamento ordinário é conduzido por meio de um monólogo interno ou solilóquio silencioso. Guardar nossos pensamentos para nós mesmos é uma realização sofisticada. Foi só a partir da Idade Média que as pessoas aprenderam a ler sem precisar ler em voz alta. Assim, muitos teoristas supuseram que o silêncio no qual a maioria de nós aprendeu a pensar é definido como uma propriedade do pensamento. A combinação das duas suposições, a de que teorizar é a atividade primária do pensamento e a de que teorizar é intrinsicamente uma operação privada, silenciosa ou interna é uma das principais bases do dogma do fantasma na máquina. 

Teóricos geralmente estão tão preocupadas com a tarefa de investigação teórica que eles geralmente ignoram o saber sobre a execução de tarefas. Pode-se distinguir assim entre “saber que” (conhecimento teórico) de “saber como” (conhecimento sobre como executar tarefas). Ser inteligente é, não só satisfazer um critério, mas saber aplicar tal critério. Isso geralmente é expresso quando se diz que uma ação exibe inteligência, se, e somente se, o agente está pensando sobre o que ele está fazendo enquanto ele faz determinada coisa de tal modo que ele não faria bem o que está fazendo se não estivesse pensando sobre o que faz. Isso não significa, como pode parecer ao mito intelectualista, que a pessoa esteja fazendo duas coisas ao mesmo tempo, pensar e agir, mas sim que a pessoa age de maneira refletida. 

Assim, a lenda intelectualista é falsa. Descrever uma performance como inteligente não implica que haja duas operações. Primeiramente, há muitas classes de performances executadas de forma inteligente que as regras ou critérios que não são formulados. Uma prática eficiente precede a teoria sobre ela, assim é possível para as pessoas agirem inteligentemente quando elas ainda não são capazes de considerar quaisquer proposições sobre como elas deveriam agir. Se para alguém performar uma atividade inteligentemente ela já tivesse que antes saber a teoria sobre como realizar tal atividade, seria logicamente impossível alguém ter primeiramente executado tal tarefa. 

Em segundo lugar, supor que agir inteligentemente precisa primeiro entender a razão para agir assim levanta a questão de como essa aplicação seria possível para a ação particular já que essa razão ou máxima tem inevitavelmente uma proposição de alguma generalidade. A suposição absurda feita pela lenda intelectualista é de que uma performance de qualquer tipo feita de modo inteligente envolve alguma operação interna anterior de planejar o que fazer. No entanto, se planejar inteligentemente já é uma operação, ela teria que pressupor um processo de planejar a planejar e isso levaria a um regresso infinito. Fazer algo inteligentemente não é fazer duas coisas, é fazer uma só coisa de uma determinada maneira. 

A lenda intelectualista está baseada no dogma do fantasma na máquina. Visto que agir geralmente é entendido como um movimento muscular, é comum falar da ação como um processo meramente físico e que não pode ser uma operação mental. Assim, para a lenda, ao falar de algo feito “inteligentemente”, a noção de “inteligentemente” deveria se aplicar, não ao corpo, mas a algo diferente do corpo, que é uma contraparte do corpo. A operação intelectual se daria, então, não na máquina, mas no “fantasma”. Surge, assim, uma bifurcação que tem de um lado causas mentais não observáveis e de outro efeitos físicos observáveis. 

Geralmente falamos como se existisse uma voz falando dentro da nossa cabeça. Quando as pessoas usam a linguagem de algo ocorrendo na mente, elas geralmente estão expressando algo semelhante ao que aparece na metáfora de eventos na cabeça. A partir disso, muitas vezes se supõe que mentes são lugares estranhos ocupados por coisas fantasmagóricas. 

Mas se performar inteligentemente é fazer uma coisa e não duas e se performar inteligentemente é aplicar critérios na conduta da própria performance, ainda é preciso mostrar como esse fator caracteriza aquelas operações que reconhecemos como habilidosas, prudentes e lógicas. Nós geralmente aprendemos como fazer algo por meio da prática e não necessariamente por ter primeiramente formulado na mente certas regras. Desse modo, a habilidade de aplicar regras é o produto da prática. Assim, é tentador argumentar que competências são uma segunda natureza ou disposições adquiridas. Hábitos são, entretanto, um tipo de segunda natureza, mas não o único. 

Pode-se distinguir, assim, hábitos de capacidades inteligentes. Hábitos são formados por meio de exercícios, repetições e condicionamento, enquanto capacidades inteligentes se formam por meio de treinamento, estimulação por meio do criticismo e uso de juízos próprios. Para entender melhor essa distinção é importante compreender a lógica dos conceitos disposicionais. Quando descrevemos um copo de vidro como frágil ou o açúcar como solúvel, estamos usando conceitos disposicionais. Falar da fragilidade do copo de vidro não é dizer que ele está sempre quebrando, mas é dizer que se ele cair ele irá se quebrar em pedaços. 

Possuir uma propriedade disposicional não significa se encontrar em um determinado estado ou sofrer uma dada mudança, mas sim ser passível de estar em um estado particular ou passar por uma determinada mudança quando uma dada condição se realiza. O mesmo é verdadeiro em relação às disposições especificamente humanas, como ser um fumante habitual ou ter determinadas qualidades de caráter. Alguns conceitos disposicionais são conceitos determinados, isto é, cuja atualização tem uma forma específica enquanto alguns são conceitos indeterminados, envolvendo uma série infinita de diferentes proposições hipotéticas. 

Pode-se considerar o “saber como” enquanto uma disposição, mas distinta do reflexo ou do hábito. Quando dizemos que alguém sabe fazer algo estamos operando com verbos modais, isto é, sobre aquilo que uma pessoa pode fazer. Trata-se de exercícios que são a observação de regras ou aplicações de critérios, mas que não são duas operações, uma operação teórica de regras e uma operação de colocar máximas em prática. Quando uma pessoa argumenta inteligentemente, por exemplo, não há nenhuma diferença se ela raciocina em silêncio para si mesma ou em voz alta para outros ouvirem. A argumentação em silêncio não é diferente em qualidade da argumentação em público. Argumentar inteligentemente é conduzir uma operação de modo eficiente, não conduzir duas operações. Trata-se de performar uma operação de certa maneira ou com um certo estilo ou procedimento, e a descrição deste modus operandi deve ser feita em termos de epítetos episódicos semi-disposicionais ou semi-episódicos, como “alerta”, “cuidadoso”, “crítico”, “ingênuo”, “lógico” etc. O mesmo se aplica a qualquer outra operação inteligente. 

O “saber-como” está relacionado à aprendizagem. A aprendizagem requer alguma capacidade intelectual. A habilidade de fazer coisas em acordo com instruções necessita entender essas instruções. Quando caracterizamos pessoas por predicados mentais, não estamos fazendo inferências não-testáveis sobre processos fantasmagóricos ocorrendo na consciência. Entender algo é parte de “saber como” de modo que “aprender como” ou melhorar uma habilidade não é como “aprender que” ou adquirir informações. Entender algo é um exercício de uma competência e cometer erros de compreensão é um subproduto de “saber como”. 

Os filósofos contemporâneos têm lidado com o problema do conhecimento de outras mentes. Influenciados pelo dogma do fantasma na máquina, eles acham impossível descobrir qualquer evidência logicamente satisfatória que justifique a crença de que as outras pessoas tenham mente, de modo que o solipisimo sempre aparece como uma ameaça. Quando ouvimos outra pessoa ou vemos o que ela faz não estamos tentando inferir causas ocultas em sua mente nem estamos apenas vendo movimentos externos, mas entendemos o que ouvimos e vemos. Saber que outros também tem uma mente nada mais é do que saber que eles são capazes e estão dispostos a fazer certas coisas que podemos testemunhar. 

 

III. A VONTADE 

 

Tradicionalmente, considera-se que a alma ou mente têm três partes, o Pensamento, o Sentimento e a Vontade, que funcionam em três respectivos modos, cognitivo, emotivo e conativo. A partir disso, existe a doutrina de que a Vontade é uma espécie de faculdade ou órgão imaterial no qual ocorrem processos que são descritos como volições, que é aquilo que move nossos músculos para a ação. As volições seriam operações que ocorrem em algo que é uma contraparte oculta, de modo que a linguagem das volições é a linguagem da teoria para-mecânica da mente. 

Algumas objeções podem ser levantadas contra a doutrina das volições: (i) ninguém na linguagem cotidiana descreve sua própria conduta em termos de volições; (ii) argumenta-se que a noção de vontade é importante para atribuição de responsabilidade, mas ninguém consegue observar as volições de outra pessoa já que elas seriam internas à sua mente, mas se isso é assim ninguém poderia julgar se a ação de outra pessoa foi voluntária e merece louvor ou condenação; (iii) a doutrina das volições pressupõe que a vontade, que é algo imaterial é o que causa movimentos do corpo físico, mas a transição da mente e do corpo envolve um tipo de conexão onde não pode haver uma conexão; (iv) se a volição é uma operação ainda seria preciso perguntar se essa operação é voluntária ou involuntária, se involuntária então a ação que se segue não é de fato voluntária, mas se a volição é voluntária isso levaria a um regresso infinito. 

O chamado Problema da Liberdade da Vontade geralmente deriva do uso da noção de “voluntário”. A ideia de que precisaríamos postular uma Vontade como um fantasma na máquina para garantir que nossas ações são voluntárias vem do medo do bicho-papão do mecanicismo. Alguns físicos pensam que porque encontramos certas leis naturais infalíveis e que nos permitem prever acontecimentos, o mundo físico é determinista. Isso, no entanto, é um equívoco, não é porque, por exemplo, um jogo de xadrez obedece a certas regras que sempre são seguidas (como a de que o cavalo sempre se move em L) ou que um texto bem escrito obedece a regras da gramática, que não pode haver liberdade no jogo de xadrez ou na escrita de um texto. Do mesmo modo, o fato das leis da natureza em sentido metafórico governarem tudo que acontece não significa que elas determinam tudo que acontece. Assim, não é preciso postular uma faculdade não-física para garantir que haja no mundo espaço para a liberdade. 

 

IV. EMOÇÕES 

 

Defensores do dogma do fantasma na máquina veem emoções como experiências internas ou privadas que acontecem no fluxo da consciência. O termo emoções é usado tanto para descrever propensões, como inclinações, humores e agitações, quanto ocorrências, que é o caso dos sentimentos. Para lidar com a discussão sobre emoções é preciso distinguir dois tipos de explicação: (i) explicação causal: é aquele que explica qual evento causou outro evento (exemplo: “o copo de vidro quebrou porque ele foi empurrado e caiu no chão”); (ii) explicação de razão: é aquela que evoca disposições para explicar um evento (exemplo: “o copo de vidro quebrou porque ele é frágil”). 

Explicar algo em termos de disposições requer recorrer a proposições hipotéticas genéricas que são semelhantes a leis (exemplo: “sendo o vidro frágil isso significa que se uma dada condição se realiza, como ele ser empurrado, ele irá quebrar”). Assim, quando perguntamos “por que uma pessoa agiu de determinado modo?” podemos tanto dar uma resposta em termos de uma explicação causal, isto é, que evento levou o agente a agir de um determinado modo, quanto em termo de uma disposição, isto é, qual caráter do agente explica sua ação. Explicações com base em motivos são explicações de razão, dizer, por exemplo “ele se vangloriou por causa da vaidade”, não significa que a vaidade é uma ocorrência que se dá dentro da pessoa, trata-se, não de uma ocorrência, mas de uma disposição. 

Quando falamos de sentimentos geralmente estamos falando de ocorrências. Sentimentos é o que descrevemos por termos como “palpitações”, “arrepios”, “tensões” etc., já inclinações são disposições que explicam o motivo de uma ação, é o caso de termos como “vaidade” e “indolência”. Há, ainda, o que pode ser denominado como agitações, que são estados da mente ou de humores nos quais alguém é descrito como “agitado”, “distraído”, “ansioso”, “irritado” etc.  e que podem ser qualificadas como “violentas” ou “brandas”. Agitações são exemplos de humores e pessoas podem ser descritas como estando por um período de tempo curto ou longo em um humor, como quando dizemos que uma pessoa está “feliz”, “deprimida” ou “cansada”. O humor é algo diferente de um motivo e é algo que é monopolizador, estar em um dado humor é não estar em outro. Agir por um motivo pode ser ainda distinguido de agir por hábito ou de agir automaticamente e motivos não são ocorrências, mas disposições. 

Estar em um humor para agir ou reagir de um dado modo implica não estar em algum outro estado de humor. Humores não são sentimentos, mas podem ser disposições para experimentar certos sentimentos em determinadas situações. Sentimentos estão intrinsicamente conectados com agitações e não estão intrinsicamente conectados com inclinações. Faz parte da lógica da descrição de sentimentos que eles são sinais de agitações e não exercícios de inclinações.  

Outra terminologia é importante são as palavras “prazer” e “desejo”, que geralmente supõe-se que significam sentimentos. É verdade que alguns sentimentos podem ser descritos como sentimentos de prazer ou desejo, mas em alguns casos essas palavras também descrevem agitações ou humores. O termo “prazer” pode ser empregado em dois sentidos, tanto para falar de gostar de fazer algo quanto para descrever um humor ou agitação de deleite e, nesse sentido, prazer, bem como o desejo, não é um sentimento ou um episódio interno que pode ou não ser observado. Por fim, pode-se questionar a tese de que tempos um Acesso Privilegiado às nossas motivações, desejos ou humores, dado que tais coisas não são ocorrências ou experiências para serem acessadas por meio de uma suposta introspecção privilegiada. 

 

V. DISPOSIÇÕES E OCORRÊNCIAS 

 

Muitas palavras que comumente usamos para descrever e explicar o comportamento das pessoas significam disposições e não episódios. Assim, quando descrevemos o comportamento humano muitas vezes fazemos uso de conceitos disposicionais. Todavia, como está em voga a lenda para-mecânica muitas pessoas ignoram como esses conceitos funcionam e acabam descrevendo o comportamento humano em termos de causas ocultas. Sentenças envolvendo conceitos disposicionais geralmente são sentenças hipotéticas ou semi-hipotéticas abertas. Algumas palavras disposicionais são determináveis, isto é, são genéticas enquanto outras são determinadas, isto é, são específicas. Palavras disposicionais como “saber”, “acreditar”, “aspirar”, “esperto” são palavras disposicionais determinadas, elas se referem a habilidades, tendências e propensões. 

Embora sentenças disposicionais não sejam o mesmo que leis elas são semelhantes a sentenças sobre leis. Sentenças sobre leis podem ser verdadeiras ou falsas, mas elas não são do mesmo tipo que sentenças sobre fatos, elas, são, ao invés disso, sentenças hipotéticas que se aplicam a fatos dada a realização de certas condições. Podemos, ainda, distinguir três tipos de sentenças: (i) sentenças sobre fatos; (ii) sentenças sobre argumentos a partir de sentenças factuais para sentenças factuais; (iii) sentenças que são justificativas para argumentos. 

Muitas sentenças disposicionais podem ser expressas por meio de palavras modais, como “poder”, “ser capaz de”, “ser possível que” e podem também aparecer na forma de “se..., então...”. Além de expressarem capacidades e suscetibilidade, sentenças modais podem também expressar tendências, como aquelas presentes em verbos como “iria ocorrer x, se....” ou “regularmente ocorre x, quando...”. É importante ter em mente a distinção entre capacidades e tendências, o que evitaria confusões em epistemologia. Por exemplo, geralmente o verbo “saber” expressa uma capacidade ou habilidade enquanto o verbo “crer” expressa uma tendência ou motivo. 

Existem diferentes tipos de tendências, algumas tendências são hábitos puros e outras são hobbies. Hábitos puros são ações que não são realizadas de modo proposital enquanto hobbies são ações que fazemos porque gostamos de realizá-las. Há também sentenças disposicionais que são de ordem superior, que são comportamentos regulares que são aderências a resoluções ou diretrizes impostas pelo próprio agente sobre si mesmo, sendo exemplos aquelas que foram inculcadas por códigos ou religiões. Nesses casos podem haver comportamentos que são explicados por uma razão de ordem superior, como quando dizemos que algo faz algo em observância à instrução de um comandante. Nesse caso, a pessoa não está fazendo duas coisas (realizar uma ação e obedecer a uma ordem), mas realiza uma coisa que é explicada pelo fato de ela estar obedecendo uma diretriz. 

De acordo com o mito dos dois mundos, algumas coisas ocorrem no mundo física, enquanto outras ocorrem no mundo mental e são chamadas de “ocorrências mentais”. Alguns argumentam que essa visão de dois mundos seria fundamental para explicar a distinção entre, por exemplo, apenas balbuciar e falar algo com sentido. No entanto, essa distinção pode ser explicada tendo em mentes conceitos de atenção, isto é, conceitos que clarificam a diferença entre falar algo de qualquer modo e falar algo prestando atenção no que se está falando. Geralmente é essa noção de prestar atenção que está presente quando se faz uso do termo “consciência”. 

Realizar algo prestando atenção não consiste em fazer duas coisas, sendo uma delas a realização da própria ação e outra um processo de teorização. Geralmente se pensa esse processo de teorização como um contemplar ou observar a própria ação e esse tipo de compreensão equivocada deriva em parte da tradição intelectualista, segundo a qual teorizar é uma função essencial da mente e a contemplação seria a essência do teorizar. Quando falamos de prestar atenção, trabalhar com conceitos disposicionais simples não é suficiente, pois quando aplicamos um conceito de atenção a uma pessoa também dizemos algo de caráter episódico, isto é, que a pessoa se encontra em um estado de mente específico. 

Para lidar com conceitos que envolvem tanto um aspecto disposicional quanto episódico podemos falar de sentenças semi-hipotéticas ou sentenças categoriais híbridas. Essas sentenças têm a forma “x teria feito aquilo que ele fez”. Dizer que alguém realizou algo de modo consciente ou atento é dizer que tal pessoa estava pronta para a tarefa que ela realmente realizou. Isso significa que tal pessoa faria as coisas que fez, bem como, se necessário, muitas outras coisas que ela faria se dela fosse requerido, de modo que conceitos de atenção expressam um certo estado de mente caracterizado por uma prontidão a atender a certos requerimentos, como responder pelo propósito de sua ação. 

Outra classe de palavras episódicas que merecem atenção são os verbos de realização. Verbos de realização são aqueles que quando empregados implicam que um dado objeto foi alcançado com sucesso, é o caso de verbos como “vencer”, “curar”, “encontrar”, “convencer”, “provar” etc. Eles são diferentes de verbos que designam tarefas que podem ou não ser realizadas com sucesso. Quando alguém diz que tem consciência do que fez, por exemplo, isso não significa que tal pessoa realiza uma tarefa infalível, mas sim que tal expressão é um verbo de realização.  

Esses verbos não descrevem performances privadas ou processos ocultos. Assim como ao dizer que alguém “venceu” uma luta não poder admitir dizer que a pessoa “falhou em vencer” não significa que a pessoa era infalível, dizer que uma pessoa está consciente de seus próprios estados mentais não poder significar que ela está enganada sobre o que ela está consciente, não significa que a pessoa é infalível em relação aos seus próprios estados mentais. 

 

VI. AUTOCONHECIMENTO 

 

Tradicionalmente se considera que não estamos conscientes de tudo o que ocorre em nossas mentes, contudo, geralmente se distingue senciência, que seria uma consciência constante, de introspecção, que seria uma percepção interna não-sensorial. A doutrina tradicional também postula que a consciência e a introspecção são infalíveis a partir da teoria de que temos um Acesso Privilegiado aos nossos próprios estados mentais. O termo consciência na linguagem cotidiana geralmente é empregado nos seguintes sentidos: (i) se dar conta de algo; (ii) estar preocupado com algo; (iii) estar ciente das próprias qualidades; (iv) ser sensciente ou ter a capacidade de sentir; (v) estar atento a uma sensação. 

A maneira como epistemólogos fazem uso do termo consciência parece derivar de uma noção protestante de consciência, como se a consciência fosse uma espécie de luz moral. Nesse sentido, geralmente a consciência é descrita a partir de metáforas como “iluminação”, “auto-luminosidade”, “fosforescência” etc. Essa noção de consciência depende do dogma do fantasma da máquina, porque geralmente concebe a autoluminosidade da consciência como uma espécie de ocorrência que se dá em um mundo diferente do físico. 

Contudo, pode-se apresentar algumas objeções a essa noção de consciência que não dependem de rejeitar o dogma do fantasma da máquina: (i) ninguém que já não esteja comprometido com essa teoria filosófica da consciência justifica suas afirmações sobre fatos dizendo que ele as encontrou a partir da consciência ou por meio de uma consciência direta e imediata; (ii) usar o verbo conhecer no sentido de estar conscientes de meus estados mentais é usar incorretamente esse verbo, conhecer é saber que algo é o caso, conhecer não é o mesmo que observar algo; (iii) pessoas se equivocam sobre os próprios estados mentais, como estarem errados sobre suas próprias motivações e sentimentos ou sobre se estão acordadas ou sonhando; (iv) se estar consciente de uma ocorrência mental é também uma ocorrência mental, então cairíamos em um regresso infinito, já que poderíamos falar de estar consciente de estar consciente sobre algo. 

O termo introspecção, por sua vez, é um termo técnico geralmente utilizado para denotar uma espécie especial de percepção, uma percepção interna e que por meio da introspecção temos um acesso privilegiado e infalível a nossos próprios estados mentais. No entanto, o fato de que uma pessoa conhece de modo melhor suas próprias ocorrências é uma diferença de grau, não de tipo, uma pessoa se encontra em uma posição melhor de analisar a si mesmo do que de analisar o outro, já que pode sempre observar seus próprios comportamentos, mas tanto nosso conhecimento sobre o outro quanto sobre nós mesmos consiste em se dar conta de como nós nos comportamos ou como o outro se comporta. 

Por fim, ao falar da consciência e da introspecção como forma de autoconhecimento, alguns empregam a noção de “eu” ou “self”. Pode-se falar de uma elusividade sistemática do conceito de “eu”, já que esse conceito expressa alguma instância enigmática que pretende dar conta de uma espécie de identidade pessoal contínua. O termo “eu”, no entanto, pertence à classe das palavras indexicais, que são aquelas que indicam uma coisa, episódio, pessoa, lugar ou momento particular. O fato de que “eu” parece um pronome especial ocorre porque com ele eu só posso identificar a mim mesmo que sou o falante, enquanto outros pronomes como “tu”, “ele” ou “ela” podem indicar pessoas diferentes a depender do contexto. “Eu”, no entanto, não designa um tipo de ser, ele é apenas um indexical que indica a quem se refere uma sentença. 

 

VII. SENSAÇÃO E OBSERVAÇÃO 

 

Pode-se distinguir as sensações entre aquelas que são ligadas a órgãos sensoriais daquelas que não são ligadas a órgãos sensoriais. Geralmente descrevemos sensações particulares com base em como objetos comuns regularmente se mostram, são sentidos, vistos ou ouvidos por pessoas normais. Por vezes, se fala de sensações como se fossem observações, no entanto, sensações devem ser distinguidas de observações. Diferente de observações, sensações não podem ser corretas, nem incorretas. Enquanto observar consiste em tentar encontrar ou descobrir algo, ter uma sensação, como uma dor de cabeça, não é descobrir algo nem falhar em descobrir algo. 

É importante dizer ainda que não há nada mental sobre sensações. Ter uma sensação não é uma qualidade do intelecto ou do caráter, já que animais meramente sencientes possuem sensações. Portanto, é um equívoco falar de sensações como se fossem constituintes privados observáveis. Sensações não são nem observáveis nem inobserváveis, elas não são em nenhum sentido objetos de observação. Observação implica ter sensações, mas ter sensações não implica observação. As propriedades que descobrimos por meio da observação, como tamanho, formato, temperatura, cor e cheiro, não podem ser atribuídas às sensações. Assim, o fato de só a pessoa que tem uma dada sensação poder dar conta dessa sensação em primeira pessoa também não significa que só essa pessoa pode observar suas sensações enquanto os outros não, porque sensações não consistem em observar ou não observar algo. 

Alguns defendem, no entanto, a chamada Teoria dos Dados dos Sentidos, segundo a qual cada sensação está relacionada a um dado que é a aparência de algo, assim, por exemplo, a visão está relacionado a um dado visual que é a aparência momentânea de algo. A partir disso, alguns dizem que temos uma intuição direta ou uma consciência imediata com esses dados dos sentidos. Essa teoria comete o erro de pensar a sensação como se fosse observar, perceber ou descobrir algo. Ter uma sensação não consiste em encontrar-se em uma relação cognitiva com um objeto sensível ou ter um discernimento não-inferencial de um objeto sensível. Não existe tal objeto, como se existisse a coisa no mundo externo e a aparência fenomênica da coisa que é o dado sensível. 

Baseado na Teoria dos Dados dos Sentidos, defende-se que ter uma sensação visual consiste em intuir palhetas de cores, assim, ao invés de dizer “eu vejo um objeto azul” supõe-se que o que queremos dizer é “eu vejo uma expansão de azul”. Isso pode ser ilustrado pela doutrina histórica das qualidades secundárias, segundo a qual dizer, por exemplo, que um objeto é azul é dizer algo, não sobre o objeto, mas sobre a sensação da pessoa de modo que as qualidades secundárias, aquelas relacionadas à sensação, seriam algo subjetivo. 

Com base nisso, alguns acabaram por adotar uma teoria chamada de fenomenalismo, para o qual falar de um objeto é falar do conjunto de dados sensoriais que o compõem. Novamente, o erro da Teoria dos Dados dos Sentidos e do fenomenalismo está em pensar a sensação como se fosse observação. A verdade é que falar em “objeto sensível” é uma expressão sem sentido e absurda, ter uma sensação não é descobrir algo. Além disso, argumenta-se que não podemos estar enganados sobre nossas sensações, de que aquilo que é intuído de modo imediato não pode estar errado. Contudo, o motivo pelo qual uma sensação não pode estar errada não é que ela é uma intuição infalível, mas sim que ter uma sensação não é intuir ou observar algo.  

Além disso, quando falamos de perceber algo estamos usando um verbo de realização, assim como não faz sentido em falar que uma pessoa não teve sucesso em vencer uma corrida, não faz sentido falar que uma pessoa percebeu ou observou algo tendo falhado em ter observado. O fato de um médico não poder curar sem sucesso não significa que médicos são infalíveis, é apenas que é contraditório usar um verbo de realização como “curar” e ao mesmo tempo dizer que o tratamento não teve sucesso. 

 

VIII. IMAGINAÇÃO 

 

Imaginação evidentemente é uma operação mental, no entanto, tradicionalmente se descreve exercícios de imaginar como se consistisse em ver algo na mente ou como visualizar mentalmente certas imagens que são concebidas como ideias que seriam entidades existindo no mundo mental. Pode-se distinguir ver de visualizar, uma pessoa pode ver coisas somente quando seus olhos estão abertos, mas pode visualizar imagens com os olhos da mente mesmo quando seus olhos estão fechados. Quando estamos falando de imaginação usamos aspas ao utilizar verbos como “ver”, “ouvir” etc. E isso mostra que “ver” não é realmente um ver de fato, como erroneamente se supõe. 

De acordo com a Teoria do Status Especial das Imagens, ao visualizar algo na mente uma pessoa está vendo uma imagem que não está fisicamente diante dos seus olhos, mas que é um fenômeno observável não-físico. A noção de que a mente é um lugar em que imagens mentais são vistas é uma noção equivocada. Além disso, é um equívoco pensar que existe algo como uma faculdade da imaginação, que seria como que um órgão da mente que nos permite ver imagens mentais assim como vemos pinturas. 

Por vezes se distingue termos como “fazer de conta”, “fingir” e “supor” algo. Geralmente falamos de “fingir” como algo que pode ser mais ou menos convincente e para falar de performances realizadas de modo deliberado, enquanto falamos de “imaginar” ou “supor” como um fazer de conta que resulta de um impulso involuntário. Além disso, fingir geralmente envolve movimentos musculares visíveis, enquanto imaginar é um fazer de conta que não podemos observar de fora. É importante considerar que de fato ver algo é diferente de “ver” ou visualizar algo mentalmente. Uma pessoa pode ter dúvidas sobre aquilo que está vendo diante dos seus olhos enquanto não faz sentido dizer que algo está imaginando algo sem estar certa sobre o que está imaginando. Fica claro assim que “ver” com os olhos da mente não é realmente um ver.  

Imaginar é, na verdade, utilizar nossos conhecimentos de um determinado modo, trata-se, portanto, de uma habilidade de aplicar conhecimentos aprendidos. Conseguir imaginar algo é fazer uso do conhecimento aprendido a partir de lições perceptuais. Isso envolve fazer uso de nossa memória. Podemos distinguir dois sentidos de memória, de um lado a memória das lições que aprendemos e de outro a memória no sentido de relembrar um episódio passado da vida. Há uma semelhança entre memória e imaginação, porque podemos só lembrar de algo ou imaginar de algo com base naquilo que já vimos, ouvimos ou sentimos, de modo que em ambos os casos fazemos uso do que aprendemos por meio das percepções. É importante considerar também que o verbo “recordar” geralmente é utilizado como um verbo de realização, de modo que recordar já significa trazer com sucesso algo à mente. 

 

IX. O INTELECTO 

 

Tradicionalmente o Intelecto é pensado como uma espécie de órgão especial da mente pelo qual apreendemos verdades. Relacionado ao Intelecto, fala-se em Entendimento quase como uma casa ou editora publicadora e de Razão como sendo uma espécie de mestre ou professor que nos guia e ensina. Outro conceito relacionado ao Intelecto é o de pensamento, que às vezes é empregado no sentido de supor ou acreditar e outras no sentido de considerar algo com atenção. Pensar é geralmente concebido como um processo intelectual que é, por excelência, uma operação na qual lidamos com símbolos, como palavras e sentenças. Assim, costuma-se pensar em tarefas intelectuais como aquelas em que performamos conteúdos que geralmente aprendemos por meio da escolarização. 

Pode-se, no entanto, distinguir dois sentidos do termo pensamento. Por vezes falamos de pensamento como o próprio engajar em pensar e em outras como o resultado da ação de pensar. Pensar é geralmente relacionado ao trabalho de teorizar, isto é, com a construção de teorias. Ao pensar teoricamente estaríamos como que preparando nossa mente para falar ou escrever algo didaticamente. É importante considerar que a construção de teorias não é algo que se restringe àquilo que se faz em um gabinete, como o trabalho do filósofo, do matemático ou do teórico do direito. Algumas teorizações dependem de um trabalho prático e ainda podemos falar de teoria como se referindo a qualquer investigação sistemática, como é o caso do antropólogo ou do historiador. Uma pessoa pode expor uma teoria tanto para si mesmo em um solilóquio quanto para outros por meio de uma aula ou livro e não há diferença em tipo entre as duas coisas. 

Epistemólogos fazem uso de diversos conceitos clássicos como “julgar”, “raciocinar”, “inferir”, “deduzir”, “apreender”, “concluir”, “generalizar”, “abstrair” etc., mas dificilmente esses termos descrevem algo que está de fato ocupando uma pessoa em um dado momento de modo que por vezes tais termos soam como anedotas biográficas. Além disso, esses processos epistêmicos são tomados como processos cognitivos privados, mas dificilmente alguém pode relatar experimentar esses processos em sua mente de modo que tais expressões tem um caráter mítico. Essas expressões, na verdade, estão geralmente sendo mal-empregadas se as usamos como descrevendo processos ou ocorrências mentais. Na verdade, é quando lemos um livro publicado por um teórico que encontramos coisas como inferências, argumentos, raciocínios ou deduções de modo que esses termos se aplicam mais corretamente à caracterização das partes de uma teoria publicada. 

Aplicar esses conceitos, como o de inferência, a ocorrências mentais para-mecânicas revela alguns equívocos. Primeiramente, é importante considerar que entender o significado de um conceito não é inferir algo a partir de uma causa não observável. O próprio fato de que nós entendemos uma expressão revela que entender não consiste em tentar inferir algo oculto que está dentro da mente de alguém e que não temos acesso. Em segundo lugar, é importante considerar que dizer algo com significado e consciente desse significado não é realizar duas tarefas, mas é dizer algo de um dado modo, isto é, com propósito ou de modo cuidadoso. 

Ao falar de inferência é importante, ainda, distinguir aprender a usar um argumento de aprender novas verdades usando um argumento. Ter um argumento implica que uma pessoa conseguiu um argumento e é só quando uma pessoa tem um argumento que ela pode usar esse argumento. Uma pessoa utiliza um argumento quando ela diz ou escreve esse argumento e usar um argumento é um ato mental que envolve o exercício de competências intelectuais. Mas não se trata de um ato mental como algo oculto ou obscuro, dizer um argumento para si mesmo não é essencialmente diferente de expor esse argumento em público em voz alta ou por escrito. 

Epistemólogos do raciocínio tendem, no entanto, a descrever as operações mentais de teorização a partir de metáforas da visão. Assim, entender um argumento ou raciocínio por vezes é descrito como enxergar suas conclusões ou implicações e por vezes o processo de teorização é descrito como uma espécie de contemplação. Embora essa metáfora possa ser apropriada para alguns casos, ela não é adequada para outros. Essa metáfora pode dar a ideia equivocada de que enxergamos as implicações de um argumento e, então, tiramos uma conclusão. Ao contrário, apenas após termos formulados um argumento é que podemos examiná-lo e compreender suas implicações. 

A lógica formal também revela alguns equívocos em relação à compreensão do que significa raciocínios. Infelizmente, inicialmente os lógicos tomaram como modelo a geometria como se o conhecimento consistisse, como em livros de geometria, de derivar certas conclusões a partir de determinados axiomas. A partir disso, epistemólogos concluíram erroneamente que a construção de teorias segue um modelo geométrico de raciocínio em que entender a implicação de um argumento é enxergar, contemplar ou conseguir acompanhar certas demonstrações. 

É comum também que se defenda uma primazia do intelecto, sendo o intelecto concebido como o que há de mais nobre e como aquilo que governa o exercício de todas as demais capacidades mentais. É verdade que o intelecto tem uma primazia cultural, visto que é aquilo que está relacionado àqueles que receberam uma melhor educação. Mas o fato de que damos muita importância ao intelecto pode ser explicado quando entendemos que o desenvolvimento intelectual é uma condição para que realizemos bem nossas ocupações e interesses, mesmo as mais básicas. 

Além disso, epistemólogos possuem uma tendência de entenderem que ter uma mente significa ter uma Consciência ou uma Razão que é como uma voz que nos ensina verdades e nos dá instruções. No entanto, o fato de uma pessoa, por exemplo, conseguir “ouvir” na própria cabeça as instruções sobre gramática latina não significa que essa pessoa tem na mente uma espécie de “Voz da Gramática Latina” que lhe ensina latim. 

Pode-se perguntar, dado o que foi considerado aqui, qual papel cabe, então, à Epistemologia enquanto uma área da filosofia que se dedica à teoria do conhecimento. Podemos considerar dois sentidos em que podemos falar de Epistemologia: (i) Teoria das Ciências: consiste no estudo sistemático das estruturas das teorias construídas; (ii) Teoria da aprendizagem: consiste no estudo de como aprendemos, descobrimos e inventamos coisas. Nesse sentido, a epistemologia não precisa trabalhar com descrever raciocínios enquanto ocorrências mentais privadas, mas pode se dedicar a considerar a estrutura das teorias científicas (Gramática da Ciência ou Lógica da Ciência) e desenvolver uma filosofia da aprendizagem (Metodologia da Educação ou Gramática da Pedagogia). 

 

X. PSICOLOGIA 

 

Algumas pessoas podem acusar as teses defendidas aqui como sendo uma forma de “Behaviorismo”, que é um termo comumente utilizado para descrever uma determinada perspectiva em Psicologia. O Behaviorismo, em psicologia, tendo abandonado o dogma do fantasma na máquina manteve, no entanto, a ideia de um mundo físico mecanicista. Isso revela como uma lenda ou mito nem sempre é algo ruim. O mito do fantasma na máquina permitiu que a psicologia evitasse uma compreensão mecanicista do ser humano. Ao abandonar o mito cartesiano do fantasma na máquina, os behavioristas caíram no mito hobbesinano do mecanicismo. A psicologia, no entanto, é mais bem compreendida como um programa aberto, que não tem uma demarcação clara ou uma unidade rígida.  



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