PENSAMENTO MORAL - RICHARD HARE
O que se segue é um resumo do livro Moral Thinking: its level method and point de Richard Hare. O livro é composto de três partes e doze capítulos, sendo eles: Parte I: Os Níveis do Pensamento Moral: 1. Introdução, 2. Conflitos Morais, 3. O Arcanjo e a prole, 4. Descritivismo e Teoria do Erro; Parte II: O Método do Pensamento Moral: 5. O Sofrimento do outro, 6. Universalização, 7. Comparação interpessoal, 8. Lealdade e desejos mais, 9. Direitos e Justiça; Parte III: O Ponto do Pensamento Moral: 10. Fanatismo e Amoralismo; 11. Prudência, Moralidade e Super-rogação; 12. Objetividade e racionalidade. É importante colocar que este resumo é apenas uma apresentação do texto original de forma compactada, sem paráfrases ou resenhas críticas. A ideia é de que o texto permaneça do autor original.
PARTE I: OS NÍVEIS DO PENSAMENTO MORAL
1. INTRODUÇÃO
A filosofia moral tem como propósito nos ajudar a pensar mais racionalmente em ética. Quando tentamos responder racionalmente a uma pergunta, o primeiro passo consiste em entendê-la corretamente e isso significa compreender as palavras utilizadas na questão. A compreensão de tais palavras envolve entender suas propriedades lógicas. No caso de algumas palavras, como “todos”, suas propriedades lógicas exaurem seu significado, já no caso de outras palavras, suas propriedades lógicas determinam parte de seu significado, como no caso da palavra “azul”. Pode-se argumentar que as palavras mais gerais do discurso moral, como “dever” e “obrigação”, pertencem ao grupo das palavras cujo significado é inteiramente revelado pela análise de suas propriedades lógicas.
Seria, entretanto, errado concluir disso que tudo o que temos de fazer, de modo a pensarmos racionalmente sobre questões morais, é análise lógica. Podemos evitar esse erro se nos voltarmos para a Ética de Kant e o Utilitarismo. Por vezes se pensa que essas duas visões estão em oposição, mas elas na verdade são compatíveis. Isso fica claro se distinguirmos dois elementos no Utilitarismo: (i) elemento formal: consiste nas propriedades lógicas das palavras morais, que consiste no seu caráter de universalização; (ii) elemento substancial: consiste em analisar as preferências daqueles que são afetados pelas ações avaliadas.
Kant ao propor que nossas máximas devem ser universalizáveis está em consonância com o elemento formal do Utilitarismo. Fica claro, também, que a análise lógica não resolve todos os problemas éticos, porque ainda é preciso considerar o elemento substancial, isto é, o interesse das pessoas, o que é uma questão empírica. Portanto, um sistema moral completo depende tanto de teses lógicas quanto de empíricas.
A análise do discurso moral envolve uma questão sobre o significado dos termos morais. Alguns filósofos cometem o erro de achar que palavras morais se referem a uma descrição de fatos ontológicos do mundo. No entanto, uma análise dos termos morais revela que eles envolvem atos de fala de caráter prescritivo, e uma análise lógica de sentenças imperativas revelam que elas não podem ser avaliadas em termos de valor de verdade ou como descrições. Isso não significa que juízos morais não possam conter um elemento descritivo, no entanto, além desse elemento descritivo, juízos morais possuem um elemento prescritivo ou avaliativo.
Assim, o primeiro elemento revelado por uma análise lógica das palavras que usamos no discurso moral é a prescritividade. Além da prescritividade, uma análise lógica das palavras morais revela que elas possuem um caráter de universalizabilidade. Quando dizemos que alguém “deve” ou “está obrigado” em sentido deôntico isso envolve a ideia de que todas as pessoas em situação semelhante deveriam fazer o mesmo.
Alguns filósofos argumentam que o raciocínio moral deveria ser baseado em nossas intuições, o que se denomina como intuicionismo. Contudo, embora intuições desempenhem um papel importante na ética, tomá-las como a base ou fundamento da moral é problemático, já que elas não têm força probativa. Pode-se perguntar, por fim, o que distingue um juízo moral de outros juízos avaliativos. Nesse caso, a resposta é a sobreposicionalidade, no sentido de que um dever moral sempre se sobrepõe a outros deveres. Nesse caso, pode-se dizer que a análise lógica das palavras do discurso moral revela três propriedades: prescritividade, universalizabilidade e sobreposicionalidade.
2. CONFLITOS MORAIS
Pode-se considerar três níveis do pensamento moral: (i) nível intuitivo: consiste nos princípios prima facie gerais; (ii) nível crítico: consiste na reflexão crítica sobre ações morais específicas; (iii) nível metaético: consiste na análise do significado dos conceitos morais. O nível intuitivo corresponde ao Utilitarismo de Regras, pois ele opera por meio de regras gerais, enquanto o nível crítico corresponde ao Utilitarismo de Atos, pois nele se reflete criticamente a especificidades das ações. Desse modo, o Utilitarismo de Regras e o de Atos não são incompatíveis, mas se referem a níveis diferentes do pensamento moral.
A questão das intuições morais envolve uma discussão sobre educação moral. Precisamos levar em conta, quando refletimos no nível crítico, quais intuições queremos inculcar nas pessoas para que elas as utilizem no nível intuitivo. Assim, o raciocínio moral envolve considerar quais princípios ou regras gerais é importante que adotemos e que desejemos que se tornem intuições, quanto uma reflexão crítica sobre quais princípios devem ser escolhidos, bem como decidir entre intuições conflitantes, o que requer raciocinar criticamente.
3. O ARCANJO E A PROLE
Pode-se imaginar um tipo de ser que não precise se guiar por intuições, que seja uma espécie de observador ideal. Esse observador ideal pode ser chamado de arcanjo, e ele pode ser pensado como um ser superpoderoso, de conhecimento sobre-humano e sem fraquezas humanas. Esse arcanjo não dependeria do pensamento intuitivo e faria tudo com base na razão em cada momento do tempo. Por outro lado, nós, pessoas limitadas dependemos de intuições, denominemos seres como nós de prole. Algumas vezes será preciso que pensemos como prole e outra que tentemos nos aproximar ao modo de pensar de um arcanjo.
Precisamos pensar como arcanjos quando estamos selecionando quais princípios gerais devemos adotar e quando precisamos decidir qual princípio seguir quando diferentes princípios adotados entrarem em conflito. Assim, o pensamento crítico tem como objetivo selecionar o melhor conjunto de princípios gerais para uso no pensamento intuitivo e essa seleção precisa levar em conta a utilidade da aceitação desses princípios e resolver conflitos entre eles. Isso envolve pensar quais princípios queremos inculcar por educação e como qualificar esses princípios de modo a considerar exceções ou uma hierarquia entre eles.
Há, ainda, o problema de como diferenciar juízos morais de outros juízos avaliativos, o que é um problema de demarcação. O que faz essa diferenciação é a sobreposicionalidade. Isso significa que quando algo é uma prescrição moral que deve ser seguida ela se sobrepõe a qualquer outra prescrição. Pode haver conflitos entre princípios morais no nível intuitivo e em alguns casos conflitos podem estar relacionados a uma fraqueza da vontade. No entanto, se irmos para além do nível intuitivo, é possível sempre selecionar qual princípio deve sobrepujar outro. A sobreposicionalidade significa que um princípio moral sempre sobrepuja outros princípios quando eles conflitam com ele e, do mesmo modo, se sobrepõe a qualquer outra prescrição não universalizável.
É importante distinguir alguns casos de fraqueza de vontade, que tem a ver com não conseguir resistir à tentação de fazer o que se acredita que não se deve fazer, daqueles casos que o que um princípio moral exige não é o que deve ser feito. Nesse segundo caso, isso não significa que esse princípio deixou de ser moral por poder ser sobrepujado em certo sentido. É importante entender que no pensamento moral de um indivíduo pode-se distinguir duas classes de princípio: (i) princípios morais críticos: princípios prescritivos universais que o indivíduo não permite ser sobrepostos; (ii) princípios de segunda classe: princípios prima facie que, embora possam ser sobrepostos, são selecionados pelo pensamento crítico. Assim, mesmo que um princípio possa ser sobreposto, ele continua sendo um princípio moral se pertencer à classe daqueles selecionados pelo pensamento moral crítico.
Um princípio moral precisa, ainda, ser um que se ele deve ser aplicado a uma situação específica, ele também deve ser aplicado a todas as situações que sejam semelhantes a ela de modo relevante. Não é necessário que haja uma similaridade exata e é o próprio princípio que determina quais fatores contam como relevantes para se considerar as situações similares.
4. DESCRITIVISMO E TEORIA DO ERRO
O descritivismo consiste no erro de achar que os termos morais consistem na descrição de fatos ontológicos na realidade. Algumas pessoas, adotando o descritivismo e supondo que esses fatos não existem, chegaram à conclusão de que todos os juízos morais são falsos, o que é a chamada Teoria do Erro. No entanto, se analisarmos juízos morais em termos de atos de fala, concluímos que eles possuem uma força prescritiva. Tanto os naturalistas, que supõem que os fatos morais ontológicos são fatos naturais, quanto os intuicionistas, que entendem que fatos morais ontológicos não são naturais, cometem a falácia descritivista.
O descritivismo também é um erro cometido pelo velho subjetivismo. De acordo com o velho subjetivismo, juízos morais são equivalentes em significado a uma pessoa relatar certos estados psicológicos. No entanto, essa forma de subjetivismo foi revisada de modo a ter uma versão não-descritivista, que é o emotivismo. O emotivismo é a tese segundo a qual juízos morais são expressões de estados psicológicos, ao invés de descrições. A Teoria do Erro, por sua vez, adota o descritivismo, mas afirma que todos os juízos morais são falsos.
John Mackie utiliza os seguintes argumentos para defender a Teoria do Erro: (i) argumento da estranheza: se fatos morais existem, eles seriam ontologicamente estranhos e diferente de tudo que conhecemos que existe; (ii) argumento da relatividade: pessoas discordam consideravelmente entre si sobre o que é certo e errado, o que indica não haver fatos morais.
Pode-se considerar, no entanto, a seguinte avaliação da teoria de Mackie: (i) ele está certo em dizer que não existem fatos ou propriedades morais objetivas no sentido de algo que é descrito pelo discurso moral, no entanto, ele supõe que esses juízos morais são todos falsos por isso, enquanto o correto seria dizer que a força prescritiva dos juízos morais não deve ser avaliada em termos de valor de verdade; (ii) ele está certo em discordar do velho subjetivismo, para o qual juízos morais são verdadeiros na medida em que descrevem estados psicológicos, mas ele está errado em supor ainda que juízos morais são essencialmente descritivos, ao invés de terem uma força prescritiva; (iii) enquanto Mackie entende que as pessoas quando fazem juízos morais cometem um erro factual, uma posição mais aceitável é dizer que as pessoas, quando fazem juízos morais, não pretendem descrever fatos da realidade, mas prescrever o que deve ser feito.
PARTE II: O MÉTODO DO PENSAMENTO MORAL
5. O SOFRIMENTO DO OUTRO
O método da Ética consiste no método do pensamento crítico, que se trata de pensar criticamente e racionalmente sobre questões morais. Utiliza-se as propriedades lógicas dos conceitos morais a fim de construir argumentos morais. A ética, portanto, se relaciona com o pensamento racional, sendo a racionalidade uma qualidade do pensamento dirigida a responder questões à luz dos fatos. Para tanto, é preciso levar em conta tanto o elemento de universalidade das prescrições morais quanto as informações obtidas pela descrição dos fatos. É preciso, assim, selecionar quais fatos são relevantes para pensar uma dada questão moral e experimentar quais princípios melhor se aplicam às circunstâncias consideradas, levando em conta o critério de universabilidade.
Pensar uma questão moral requer considerar os efeitos possíveis da ação em referências aos interesses ou preferências daqueles que são afetadas por tal ação. Visto que princípios morais devem ser universais, é preciso prestar atenção igualmente às preferências iguais daqueles afetados pela ação. Considerar as preferências daqueles afetados por uma ação requer considerar, não só o que acontece com alguém, mas como é para aquela pessoa ser afetada por tal ação. Isso envolve levar em conta tanto o estado afetivo, como experimentar o sofrimento, quanto o estado cognitivo, de saber que se está sofrendo. Pelo menos no caso dos seres autoconscientes, os dois estados sempre andam juntos, não se pode de fato estar sofrendo sem saber que se está em sofrimento, e saber que se está em sofrimento significa estar experimentando o sofrimento.
Além do estado afetivo e cognitivo, o sofrimento envolve um estado conativo, que consiste no fato de que se alguém está sofrendo, esse alguém tem um motivo para querer que esse sofrimento acabe. É importante, no entanto, aqui, não confundir sofrimento com dor. É possível sentir dor sem sofrer ou desejar sentir dor, mas é autocontraditório dizer que alguém está em sofrimento, mas não tem um motivo para querer que ele acabe, mesmo que esse motivo seja sobreposto por outros motivos.
Ao pensar nas preferências daqueles que são afetados por uma ação, precisamos nos imaginar no lugar deles. Na situação imaginada devemos considerar como seria estar na pele de outra pessoa tendo as preferências dela. Isso é diferente de imaginar o que nós iríamos preferir se estivéssemos na pele de outra pessoa. Quando se está em questão considerar os interesses, o termo “Eu” assume um caráter prescritivo. “Eu”, nesse caso, não aparece meramente como um termo descritivo, visto que identificar eu mesmo com alguma outra pessoa consiste em se identificar com suas prescrições. Assim, dizer “se fosse eu naquela situação”, com uma representação completa da situação incluindo as preferências da pessoa nela, consiste em aceitar as prescrições sobre o que deveria ser feito à pessoa.
Pensar, no entanto, a questão de se colocar no lugar do outro com suas preferências envolve algumas dificuldades:
(1) O problema de descontar o futuro: alguns defendem que ao considerar preferências, devemos dar menos peso às preferências futuras do que às preferências presentes pelo simples fato de elas serem futuras, no entanto, essa não parece uma boa razão pois devemos imaginar as preferências futuras como presentes; apesar disso pode ser racional descontar o futuro não por causa do futuro em si, mas por causa da imprevisibilidade;
(2) O problema da preferência de então-para-então: quando se discute preferências podemos distinguir o que preferimos agora que seja o caso no futuro de algo que iremos preferir no futuro. O primeiro tipo se denomina como preferência agora-para-depois, e o segundo tipo denominamos de preferência depois-para-depois. Pode ser que agora eu prefira que no futuro aconteça X, mas depois no futuro eu não irei preferir que X aconteça. Há. Ainda, o que pode ser denominado como preferência depois-para-depois, que consiste nas preferências que temos em um momento futuro sobre o que aconteceria em algum outro momento futuro. Ao considerar essas preferências, é importante levar em cota o requerimento da prudência, que significa que devemos levar em conta as preferências que as pessoas manterão no futuro se elas forem prudentes no sentido de maximizarem a satisfação das preferências presentes e futuras. Desse modo, devemos assumir que, quando se trata de universalizar nossas prescrições, temos que considerar apenas as prescrições e preferências dos outros as quais eles manteriam se forem sempre prudentes.
6. UNIVERSALIZAÇÃO
Juízos morais expressam em formas de prescrições nossos interesses e eles devem ser universalizáveis no sentido de que eles impliquem que devemos fazer o mesmo julgamento para todas as circunstâncias idênticas em suas propriedades universais. Se eu entendo que eu devo fazer algo a alguém, eu preciso estar comprometido com a visão de que a mesma coisa deve ser feita a mim se eu tivesse na mesma situação que a pessoa, incluindo tendo as mesmas características pessoas e estados motivacionais.
Podem surgir problemas de conflitos de interesses, isto é, um interesse meu pode entrar em conflito com o interesse de outra pessoa que será afetada por minha ação. Nesse caso, é preciso considerar que devemos nos imaginar como estando no lugar da pessoa com os interesses dela como se fossem meu. Nesse caso, o interesse da outra pessoa se torna meu interesse e conflito de interesses passa a ser como o de dois interesses meus. Nesse sentido, deve-se lidar com conflitos de interesses entre pessoas assim como eu lidaria com dois interesses meus em conflito.
7. COMPARAÇÃO INTERPESSOAL
Geralmente se objeta que o Utilitarismo possui o problema de requerer que façamos comparações das utilidades para diferentes pessoas e isso é complicado quando é preciso considerar a comparação de graus de preferência. A questão da comparação interpessoal apresenta os seguintes problemas:
(1) Problema do ceticismo sobre outras mentes: geralmente se objeta que nem sequer temos como saber que outros seres também possuem experiência consciente. No entanto, parece que podemos utilizar algum argumento por analogia, no sentido de que é razoável supor que outros seres tão semelhantes a nós são também similares a nós em possuir experiência consciente.
(2) Problema de se colocar em outra situação: argumenta-se que se imaginar no lugar de outra pessoa com as propriedades e preferências dela exigiria que deixássemos de ser nós mesmos. No entanto, o que se exige aqui não é que alguém deve ser exatamente outra, mas que ela deve se imaginar como se fosse a outra.
(3) Problema da comensurabilidade das utilidades interpessoais: alguns argumentam que o Utilitarismo está comprometido com o problema moral prático de ter de fazer cálculos complexos e elaborados de utilidade envolvendo comparações entre pessoas. No entanto, esse problema pode ser resolvido relembrando a distinção entre os dois níveis do pensamento moral: o intuitivo e o crítico. Na maioria das vezes na vida prática é melhor que nos guiemos por nossos princípios ou intuições, seria até mesmo perigoso se sempre tivéssemos que fazer elaborados cálculos antes de decidir o que fazer. É somente em momentos específicos e talvez só no caso de algumas pessoas, que será preciso se dedicar ao raciocínio crítico elaborado.
(4) Problema da cardinalidade: por vezes argumenta-se que as utilidades não podem ser mensuradas como se fossem quantidades absolutas que se somam. Parece que não se pode calcular utilidades como se houvesse uma escala cardinal das forças das preferências, com o zero representando a ausência de preferências. No entanto, pode-se responder a isso dizendo que aquilo que o Utilitarismo de preferências requer é que comparemos a força das preferências e não a soma de prazer ou felicidade.
8. LEALDADE E DESEJOS MAUS
Alguns argumentam que o Utilitarismo está comprometido com conclusões que geralmente são contraintuitivas. Sempre é possível citar casos imaginários complexos em que o Utilitarismo parece levar a uma conclusão que quase todo mundo acharia errada. No entanto, esse tipo de objeção pode ser respondido levando em conta a distinção entre os dois níveis do pensamento moral: o intuitivo e o crítico. Se a pessoa está no nível crítico, no qual está raciocinando sobre moralidade de modo crítico, então ela não pode recorrer ao que parece contraintuitivo, porque esse é justamente o nível em que as nossas intuições estão sendo avaliadas. Além disso, casos imaginários que provavelmente nunca ocorrerão no mundo real não servem de bom parâmetro para lidar com questões morais. Nesses casos, pode ser importante pedir que a pessoa especifique mais detalhes do caso imaginário de modo a mostrar que ele não é algo que aconteceria no mundo real.
Por exemplo, alguns argumentam que o Utilitarismo não nos permite dar qualquer peso para os deveres que geralmente existem para com pessoas com quem temos algum laço maior, como nossos familiares e amigos. Parece contraintuitivo que uma pessoa deve dar o mesmo peso para os interesses de um estranho e de um filho seu. Parece, pois, que no Utilitarismo não há o devido espaço para a lealdade que devemos ter para com pessoas próximas.
Para lidar com o problema devemos levar em conta a distinção entre os dois níveis, no nível intuitivo parece que concordamos que uma mãe deve ter um interesse especial por seu filho, já no nível crítico parece ser um bom raciocínio que esse é um tipo de intuição que deve ser inculcada. Se as mães tivessem uma propensão para cuidar de modo igual de todas as crianças do mundo, incluindo estranhas, parece que as crianças não receberiam o cuidado adequado que recebem. Portanto, não é verdade que não há espaço no Utilitarismo para termos um cuidado especial para com aqueles que nos são próximos.
Outro problema levantado contra o Utilitarismo tem a ver com a distinção entre bons e maus desejos. Algumas pessoas têm desejos ou preferências por coisas ruins e parece que o Utilitarismo requer que demos o mesmo peso para os desejos de uma pessoa perversa e de uma pessoa boa. Por exemplo, talvez toda a sociedade romana tivesse seus desejos sádicos satisfeitos em ver algumas pessoas sendo devoradas por leões nas arenas. Deve o Utilitarismo levar em conta a satisfação desse tipo de preferência?
O Utilitarismo ao raciocinar moralmente precisa levar em conta alternativas, por exemplo, não haveria outro modo dos romanos satisfazerem seus desejos, como no caso de presenciarem outros esportes menos violentos? O sadismo de massa existe, mas não é necessário que ele exista e faz parte do Utilitarismo se opor a prazeres que causam danos. O pensamento crítico geralmente resultará em princípios gerias que diferenciem entre desejos bons e maus, prazeres elevados e prazeres menos elevados.
Mais um caso em que alguns argumentam ser o Utilitarismo contraintuitivo é a experiência imaginária da máquina de prazer. De acordo com esse caso imaginário, é dada a uma pessoa a escolha de viver no mundo real com todos os seus problemas ou entrar em uma máquina que cria uma realidade artificial na qual a pessoa vive de modo prazeroso e parece que Utilitarismo apoiaria a ideia contraintuitiva de que as pessoas deveriam viver em máquinas assim. É importante lembrar, no entanto, que nem toda forma de Utilitarismo trabalha com a ideia de maximizar o prazer, na verdade, o tipo de Utilitarismo considerado aqui leva em conta as preferências. Nesse caso, o que seria levado em conta é o que as pessoas iriam preferir pensando racionalmente e estando bem-informadas. Pode ser o caso, por exemplo, de que algumas pessoas prefiram apenas usar essas máquinas de modo ocasional e continuar vivendo a vida real.
9. DIREITOS E JUSTIÇA
Existe uma ideia de que há uma conexão necessária entre a ideia de dever e de direitos. Alguns entendem que se os direitos de uma pessoa foram infringidos ela necessariamente sofreu uma injustiça. Assim, todos os direitos estariam baseados na justiça. No entanto, é importante considerar que uma pessoa pode ter um direito infringido sem sofrer uma injustiça e isso está relacionado a uma distinção entre dever e obrigação. Direitos envolvem obrigação, mas não necessariamente dever.
Pode-se considerar que há três sentidos de direito: (i) direito de fazer algo no sentido daquilo que não tenho nenhuma obrigação de não fazer; (ii) direito de fazer algo que os outros têm obrigação de não me impedir; (iii) direito de ter o que os outros têm obrigação de positivamente me garantir. É importante também distinguir direitos legais, aqueles que são garantidos pela lei, de direitos morais, que são aqueles exigidos pela ética. Pode-se considerar que direitos e obrigações são noções que dizem respeito ao pensamento do nível intuitivo e, nesse sentido, são governados por princípios prima facie. Isso significa que discutir direitos é uma questão sobre quais direitos serão permitidos pelo sistema de princípios selecionados pelo pensamento crítico.
O método pelo qual decidimos quais direitos as pessoas devem ter consiste em selecionar os princípios morais que devem ser utilizados no nível intuitivo, incluindo princípios sobre direitos considerando a utilidade da aceitação desses princípios, isto é, levando em conta quais princípios e direitos que, se forem aceitos pela sociedade, será melhor para os interesses imparcialmente considerados das pessoas na sociedade. Existe, no entanto, uma exceção, isto é, há um direito que não pertence ao nível intuitivo. Esse direito consiste no direito de igual consideração de interesses. Trata-se de um direito que se pode mostrar que todos possuem a partir de um raciocínio puramente lógico. O direito de igual consideração de interesses nada mais é que algo que decorre do caráter universalizável da ética. De acordo com esse direito, “todos contam por um e ninguém por mais de um”. Isso significa que devemos ter igual consideração pelos interesses de cada pessoa.
Além da noção de direitos, outra noção importante é a de justiça. É importante distinguir dois tipos de justiça: (i) justiça formal: consiste na exigência da imparcialidade e do caráter universalizável da justiça; (ii) justiça substancial: diz respeito a certos conteúdos da justiça que devem ser acomodados às diferentes sociedades e situações. A justiça formal não é contingente e não pode ser sobrepujada por algum princípio, uma pessoa comete uma injustiça formal quando aplica juízos morais diferentes para situações que são idênticas. A justiça substancial, que varia a depender da sociedade e das circunstâncias, envolve tanto a justiça judicial, que consiste nas decisões feitas no contexto das cortes do poder judiciário, quanto a justiça distributiva, que consiste em políticas sociais e econômicas.
Quando se discute justiça substancial, é importante considerar que mesmo que o método para raciocinar sobre quais princípios adotar seja utilitarista, os princípios selecionados podem não ser utilitaristas. Pode ser que os direitos, o código penal e as políticas sociais e econômicas de uma sociedade cuja aceitação mais atenderá aos interesses das pessoas de um ponto de vista imparcial não sejam utilitaristas. Quanto à justiça distributiva, é importante levar em considerações princípios como o da redução da utilidade marginal, que implica que o incremento de dinheiro para uma pessoa pobre lhe traz mais utilidade do que o mesmo incremento para uma pessoa rica, bem como a importância de adotar um igualitarismo moderado ou gradualismo, segundo o qual uma sociedade mais justa socialmente é construída por meio de reformas graduais, ao invés de por meio de revoluções violentas ou rupturas drásticas.
III. O PONTO DO PENSAMENTO MORAL
10. FANATISMO E AMORALISMO
Ao discutir ética, precisamos lidar com a questão do porquê deveríamos seguir a moral. Chamamos de amoralista, uma pessoa que é relutante em pensar moralmente, seja em geral ou em ocasiões particulares. Por sua vez, chamamos de fanático aquele que se prende rigidamente a princípios ou intuições morais sem aceitar exceções. Pode-se classificar os fanáticos em dois grupos: (i) fanático puro: é aquele que é capaz de pensar criticamente e deseja fazer isso, mas mantém opiniões diferentes daqueles do raciocínio utilitarista; (ii) fanático impuro: é aquele que é incapaz de pensamento crítico e não deseja fazer isso. Os fanáticos puros se dividem, por sua vez, em dois grupos: (i) aqueles que não podem ser movidos de suas opiniões por meio de argumentos; (ii) aqueles que adotam opiniões diferentes do utilitarismo, mas que são compatíveis com o utilitarismo. Pode-se considerar que o primeiro tipo de fanático puro é impossível de existir; o segundo tipo de fanático puro é possível de existir, mas não existe; e todos os fanáticos que existem no mundo real são fanático impuros.
As raízes do fanatismo se encontram no intuicionismo e na recusa do pensamento moral crítico. É o caso das pessoas que pensam que princípios devem ser seguidos sem flexibilidade, geralmente como resultado de uma educação na qual foi dito que regras não admitem exceções. Essas regras são geralmente baseadas em sentimentos fortes que a pessoa acredita que nunca devem ser contrariados. Por vezes se considera que o fanatismo apresenta uma dificuldade para o utilitarismo, porque o fanático poderia aceitar os argumentos lógicos do pensamento crítico e ainda assim rejeitar conclusões utilitaristas. No entanto, isso só seria um problema se fosse realmente possível que uma pessoa fanática bem-informada e que pensa racionalmente fosse capaz de rejeitar prescrições utilitaristas. Como o utilitarismo decorre da análise lógica dos conceitos morais, não é possível aceitar essa lógica e ainda assim rejeitar o utilitarismo.
Outro caso que parece apresentar dificuldades para a ética é o caso do amoralista, que é aquele que ou se abstém de fazer juízos morais ou só faz juízos morais indiferentes, e ele pode fazer isso para todos os casos (amoralista universal) ou para casos particulares (amoralista particular). No entanto, é difícil que o amoralismo particular não leve ao universal, porque distinguir entre casos em que se deve fazer juízos morais daqueles em que não se deve, já seria adotar um certo sistema moral.
Contudo, é importante constatar que parece não haver nada logicamente inconsistente em decidir se abster de fazer juízos morais e isso pode representar uma deficiência para uma teoria ética baseada na lógica. A possibilidade do amoralista reforça, no entanto, a ideia do prescritivismo, pois fazer juízos morais envolve um elemento prescritivo, e o amoralista pode entender todo o aspecto descritivo dos juízos morais e ainda assim se abster de fazer de fato um juízo moral, já que se refreia de fazer juízos prescritivos.
11. PRUDÊNCIA, MORALIDADE E SUPER-ROGAÇÃO
Alguns entendem que podemos dizer que devemos ser morais porque é prudente agir eticamente. Assim, viver moralmente seria interessante para nós. Ao considerar a prudência, é importante pensar em princípios prudenciais e esses princípios estão relacionados à ideia de virtude. Pode-se, no entanto, distinguir dois tipos de virtudes: (i) virtudes morais instrumentais: são aquelas necessárias para que se tenha sucesso em qualquer tarefa, ainda que o objetivo de tal tarefa não seja ética, é o caso da coragem, do autocontrole e da perseverança; (ii) virtudes morais intrínsecas: são aquelas virtudes que estão necessariamente vinculadas a uma vida ética. Sempre que possível é importante considerar que é prudente viver eticamente e a educação pode ser utilizada para inculcar nas crianças disposições e sentimentos para uma vida moral.
Uma outra discussão em ética diz respeito à ideia de super-rogação, que consiste em fazer algo bom, mas que está para além de nossos deveres ou obrigações. O Utilitarismo de atos parece implicar que não existem atos de super-rogação já que sempre devemos fazer o que é o melhor de ser feito e isso tornaria a ética extremamente exigente. A distinção entre os dois níveis do pensamento moral ajuda a resolver esse problema. Embora no nível do pensamento crítico façamos uso do Utilitarismo de atos, o pensamento intuitivo se guia pelo Utilitarismo de regras. No nível intuitivo, podemos distinguir subníveis de princípios prima facie: (i) subnível geral: diz respeito aos princípios comuns a todos; (ii) subnível particular: diz respeito aos princípios comuns a papéis particulares, como aqueles que devem orientar, por exemplo, a prática dos médicos; (iii) subnível singular: aqueles princípios que orientam decisões ou vocações pessoais, como a de dedicar a própria vida à caridade. Os princípios gerais e particulares fazem parte de nossos deveres ou obrigações, enquanto os individuais consistem naquilo que denominamos como super-rogação.
12. OBJETIVIDADE E RACIONALIDADE
A palavra objetivo pode ter diferentes sentidos: (i) aquilo que é observável publicamente; (ii) aquilo que diz respeito a fatos que existem independentes da mente; (iii) aquilo que é imparcial e não sujeito a vieses particulares. Visto que juízos morais são prescrições e não descrições de fatos objetivos ou publicamente observáveis, a ética é objetiva no terceiro sentido, isto é, no sentido de ser imparcial e universalizável. Ao caráter de imparcialidade do pensamento moral, está relacionado a ideia de racionalidade, que consiste em pensar criticamente baseado em lógica e fatos.
A Ética exige de nós adotar um prescritivismo racional universal. Isso significa que, ao preferir o que preferimos, a moralidade requer de nós que acomodemos a nós mesmos às preferências dos outros e isso tem o efeito de que quando nós pensamos moralmente e fazemos isso racionalmente, iremos preferir as mesmas prescrições morais sobre assuntos que afetam outras pessoas.
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