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O DIREITO DE PROPRIEDADE COMO LIMITADOR DO PODER CIVIL EM JOHN LOCKE


 I. INTRODUÇÃO 


Este artigo segue em linhas gerais as ideias apresentadas por Locke (1978) em seu Segundo Tratado sobre o Governo. A tese fundamental de John Locke no Segundo Tratado sobre o Governo é a de que a vida, a liberdade e a propriedade são direitos naturais do homem e que o Estado surge para proteger esses direitos. O objetivo deste texto consiste em mostrar como o direito à propriedade estabelece os limites do poder civil.

Isso significa, pois, que o campo de atuação do Estado é limitado, já que ele deve respeitar os direitos naturais. Em suas análises, Locke parte inicialmente da crítica da doutrina do direito divino, criticando as teorias de Robert Filmer. Filmer defendia que os reis possuem um direito que foi transmitido desde Adão, principiando em uma função delegada ao homem pelo próprio Deus. Contra isso, Locke postula que nenhum ser humano tem direito sobre o outro. Ele declara enfaticamente que não existe qualquer lei na natureza ou lei positiva de Deus, que determina que alguma raça ou família possa ter a menor pretensão de reivindicar uma suposta herança de um mandato adâmico para governar sobre os outros. 

Considerando, assim, que o poder político não possui uma origem em um direito divino, Locke se propõe a investigar a verdadeira origem do poder de governar. O poder político pode ser definido como o direito de fazer leis com suas penas a fim de regular e preservar os direitos naturais. O papel do poder político é, pois, preservar a propriedade, a vida e a liberdade e empregar a força, caso necessário, para executar as leis que garantam tais direitos. O Estado, entretanto, tem um papel voltado mais para o exterior do que para o interior. No interior das fronteiras de uma nação entende-se que a liberdade já está presente, o Estado, entretanto, se ergue para defender a comunidade de dano exterior e até mesmo para levar a liberdade para nações que ainda não são livres.

Para trabalhar os limites do poder civil dados em consequência do direito à propriedade, este trabalho consiste nas seguintes partes: (i) o estado de natureza; (ii) o estado de guerra; (iii) a questão da propriedade e; (iv) sobre a sociedade civil.


II. O ESTADO DE NATUREZA 


Locke considera o estado de natureza como originalmente pacífico, como uma condição de liberdade e igualdade dentro dos limites da natureza. Trata-se de uma situação original na qual nenhum ser humano tem jurisdição sobre o outro. No estado de natureza, quando um indivíduo viola a lei da natureza, todos têm o direito de castigar o ofensor a fim de restringir a transgressão e prevenir sua repetição. Essa punição deve ser proporcional ao ato transgressor, por isso, no caso do homicídio, o assassino pode ser legitimamente punido com a morte. 

O indivíduo que transgride a lei da natureza revela ter abandonado os princípios da natureza, de modo a se tornar alguém prejudicial. É por isso que sua ação precisa ser castigada e aqueles que foram prejudicados por sua ação devem receber algum tipo de reparação.  Além do direito de castigar, há, destarte, o direito de reivindicar reparação. Aquele que foi prejudicado pode exigir que se efetue a reparação o dano que lhe foi causado.  Como consequência, o prejudicado tem o poder de se apropriar dos bens do transgressor. Ao fazer isso, o indivíduo está apenas trabalhando de acordo com o direito de autopreservação.


III. O ESTADO DE GUERRA 


Diante do exposto, surge a questão de por que, afinal de contas, aparece o estado civil. Se o estado de natureza é um estado de paz, liberdade e igualdade parece que não há razão pela qual os homens o abandonem para se unirem em uma organização artificial. A resposta para isso está em que, para Locke, existe um estado intermediário entre o estado natural e o estado civil, que vem a ser o estado de guerra. 

O estado de guerra é uma condição de destruição e inimizade que surge do fato de que alguns, no estado de natureza, usam sua liberdade para violar as próprias leis da natureza. Consequentemente, há uma transformação do estado de paz em um estado em que certos indivíduos arrogam para si o direito de destruir o outro. Desse modo, enquanto no estado de natureza os indivíduos vivem conjuntamente em harmonia com a razão, no estado de guerra, os indivíduos fazem uso declarado da força para destruir o outro. No entanto, como ainda não há Estado no estado de natureza não há autoridade a qual os que guerreiam entre si possam recorrer. Daí que surge a necessidade de um contrato  que delegue ao Estado esse papel de executar as leis, proteger os direitos naturais e punir aqueles que violam tais direitos.


IV. A QUESTÃO DA PROPRIEDADE


Locke considera a propriedade um direito natural do homem e esse direito à liberdade deve ser mantido mesmo no estado  associado a ele está o direito à vida e a liberdade. civil. Isso significa que a liberdade de consentimento deve ser preservada no estado civil. O valor sagrado dessa liberdade envolve, por parte de Locke, uma condenação da escravidão. O ser humano não possui o poder da própria vida e, por isso, não pode consentir em ser escravizado. Isto é, o ser humano tem liberdade para consentir, mas não tem liberdade para abrir mão da própria liberdade. Desse modo, nenhuma pessoa pode transferir a outra pessoa o poder sobre a própria vida.

O homem deve, ao contrário, fazer uso de seu poder de forma racional a fim de tirar o maior proveito de sua vida. Cada indivíduo já possui naturalmente a propriedade de si mesmo e de sua força de trabalho. A força de trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, é sua primeira propriedade. Essa força deve ser usada pelo indivíduo para juntar bens suficientes para ter uma vida boa e nenhum outro pode tomar isso que ele juntou. Os bens que alguém junta só pode ser repartido com outros quando o trabalhor já tiver atendido suas necessidades básicas e houver bastante e igualmente de qualidade para todos e quando essa repartição é consentida pelo proprietário. 

No entanto, embora todos sejam naturalmente iguais, o emprego da força de trabalho pode dar aos indivíduos direitos distintos sobre diferentes porções de terra. A posse de uma parte da terra pode variar a depender do modo como a pessoa se dedicou ao trabalho. É o trabalho que produz uma diferença de valor e é o trabalho que extrai da terra as forças produtivas. O trabalho proporciona desse modo, o direito à propriedade, especialmente da propriedade da terra e do que dela se retira. Com o tempo, o aumento da produção possibilita, por sua vez, as trocas, o que gera a necessidade do dinheiro.


V. SOBRE A SOCIEDADE CIVIL


Algumas vezes Locke recorre à Bíblia a fim de justificar algumas de suas noções. De acordo com o livro de Gênesis, quando o homem foi criado, Deus declarou que não era bom que o homem vivesse só. Por isso, o Criador fez a mulher e estabeleceu já no paraíso, que o homem deve deixar pai e mãe e se unir à sua mulher. Essa instituição precede a Queda, isto é, antecede o estado de guerra e inimizade. A organização civil, com a presença do Estado, só faz sentido após a Queda, quando homens usam seu livre arbítrio para o mal. Entretanto, já existe certa instituição familiar antes mesmo da organização civil, ainda que após a organização civil a família ganhe uma nova forma. No estado civil, há na família o pátrio poder, resultando no fato de que, antes de atingir plena liberdade, todo indivíduo deve primeiro submeter-se aos seus pais.

De todo modo, o homem possui uma inclinação natural para vida em comunidade, sendo o casamento heterossexual, aquele capaz de reprodução, a primeira forma de sociedade. O objetivo do casamento é a continuação da espécie. A família é, assim, uma instituição sagrada, é mais uma esfera que limita os poderes do Estado. É a família também que garante a transmissão da propriedade por meio da herança. Quando um indivíduo acumula, pela força de seu trabalho, mais do que é necessário para si mesmo, ele tem o direito de transmitir esse excedente para seus filhos. 

A sociedade civil existe para assegurar que seus membros tenham suas propriedades garantidas de modo que a sociedade estabelece-se quando os indivíduos renunciam ao poder de punir, passando-o à mão de toda comunidade. Locke critica, a partir disso, o absolutismo monárquico, considerando que ele é incompatível com uma sociedade civil adequada, já que é o monarca, não a comunidade, que tem o poder de executar as leis. O poder limite é, assim, limitado também pela própria comunidade.

O objetivo principal da união dos indivíduos em comunidades é a preservação da propriedade. A propriedade limita os poderes do Estado. Sua extensão encontra sua barreira nos direitos naturais dos indivíduos. Mesmo o poder legislador (o poder de fazer leis), que para Locke é o poder supremo, tem limites.  O poder legislativo não pode arrogar para si o poder de governar por meio de decretos arbitrários, mas está obrigado a respeitar leis fixas promulgadas por juízes autorizados. Além disso, o poder supremo não pode tirar de qualquer pessoa parte de sua propriedade sem o consentimento dela. Por fim, o poder legislativo não pode transferir o poder de elaborar leis a quem quer que seja, ou colocá-lo em qualquer outro lugar que não o indicado pelo povo. 

Mesmo o poder legislativo está subordinado aos poderes da comunidade. O povo possui um poder ainda mais supremo para afastar ou alterar o poder legislativo quando este age de maneira contrária ao que lhe cabe. Quando o poder legislativo deixa de representar a vontade pública e passa a agir pela sua própria vontade particular, então os  indivíduos estão autorizados à desobediência civil.


V.I CONSIDERAÇÕES FINAIS


Locke possui uma doutrina do Estado como uma instância que surge para garantir certos direitos naturais, a saber, a liberdade, a vida e a propriedade. O Estado, portanto, tem o papel de preservar tais esferas, tendo limites para seu campo de atuação. O poder do Estado é um poder limitado especialmente pelo direito à propriedade. O Estado não pode fazer o que bem entender e, caso haja contrariamente à sua função, age de forma ilegítima. Nossa obediência às autoridades é condicional, depende que o Estado cumpra seus deveres adequadamente. 

Em todas as esferas da sociedade relacionadas a propriedade, liberdade e vida, o Estado não pode impor-se. O Estado está limitado pelo próprio propósito de sua instituição.  O poder do Estado está guardado e limitado por causa de certos direitos naturais que o precedem.  Nem a economia, nem a família, nem a liberdade podem ser constrangidas a adequar-se ao favor do Estado. O Estado nunca pode tornar-se uma máquina tirânica que fere a liberdade e autonomia do homem. O intervencionismo do Estado na economia, na família e na propriedade deve ser, pois, condenado. 

O Estado também não tem uma função social de corrigir desigualdades, já que as desigualdades surgidas do emprego diferencial da força de trabalho por cada indivíduo, é justa. A liberdade não pode ser violada em nome da igualdade. Toda vez que o Estado interfere naquilo que ele deve apenas proteger, ele fracassa. Sua função é apenas garantir o funcionamento harmonioso da sociedade, é proteger a propriedade, não violá-la.


REFERÊNCIA:

LOCKE, John. “Segundo tratado sobre o governo”. In: J. Locke. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1978.


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